Edição 346 | 04 Outubro 2010

Água, sagrada e saudável para toda a Criação

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Moisés Sbardelotto | Tradução Walter O. Schlupp

 

IHU On-Line – Em um artigo recente (Water – Holy and Wholesome? [Água – santa e salutar?] , vocês discutem a santidade e a sanidade da água. Poderiam explicar melhor essas ideias?

John Gibaut – A expressão holy [santo] e wholesome [saudável, salutar] é um jogo de palavras em inglês. Junto com a palavra health [saúde], holy [santo] e whole [íntegro] derivam do termo anglo-saxônico hal, que está presente em todas as três palavras. Pode-se compará-lo ao termo latino salus, que igualmente significa saúde assim como salvação.
Nossa intenção ao usar esses termos e fazer esse jogo de palavras era fazer uma conexão entre água tanto como holy [sagrada] quanto wholesome [saudável]. Essa conexão argumenta que, contra uma compreensão simplista, algumas águas (água benta, água batismal) são santas, ao passo que a água do lago, do mar ou mesmo da torneira não seriam. Ou, inversamente, que a água usada liturgicamente não é tão saudável e proporcionadora de vida como a água que bebemos e usamos para lavar e para fins sanitários. Considerar toda a água como santa e salutar tem implicações práticas para o modo como a água é usada na liturgia e para a forma como os cristãos se comportam em relação à água que usam no seu dia a dia.
Uma questão litúrgica em jogo aqui é a seguinte: a “água benta” é santa por ter recebido a bênção litúrgica? Ou será que a dimensão litúrgica identifica e celebra a santidade já inerente à água como dom de Deus? Em nosso artigo, Maike e eu argumentamos em favor deste último entendimento.

Maike Gorsboth – O que também nos inspirou foram as histórias que mostravam a desconexão entre a água “santa” ou “benta” (holy) que usamos na liturgia – que reflete como a água é central para a vida – e a água insalubre (unwholesome), que é a realidade diária para bilhões de pessoas. Exemplo disso foi uma matéria na imprensa sobre fiéis que, num culto na Rússia, adoeceram depois de tomar água do lago que consideravam ter sido abençoada. Uma jovem teóloga da África nos contou outra história de um batismo por imersão que ela presenciara no Quênia. A congregação teve que pagar a um fornecedor particular uma quantia considerável para comprar água para o batismo, e no final do culto houve um tumulto entre as pessoas que queriam usá-la com os seus animais. Achamos profundamente perturbador ver, a partir dessas histórias, como a realidade da água insalubre penetra na experiência de Deus das pessoas na oração e no culto por meio da água.

IHU On-Line – No mesmo texto, vocês afirmam que “existe uma inter-relação entre as crenças ligadas à água na principal tradição religiosa ocidental, o cristianismo, e as atitudes de abuso da água ao longo dos séculos”. Como vocês analisam essa inter-relação?

Maike Gorsboth – Devo dizer que não fizemos uma análise sistemática dessa relação entre crenças cristãs e o uso e o abuso da água. Nesse sentido, nossa intenção foi, antes, fazer uma declaração que provoque a reflexão, sem a pretensão de que ela tenha fundamento científico. Entretanto, acreditamos, sim, que a forma pela qual usamos a água na oração e no culto, assim como a forma como refletimos sobre ela teologicamente, influencia efetivamente sobre a forma como percebemos – e usamos – a água de um modo geral.

John Gibaut – Depende de como se entende o termo “analisar”. Em se tratando de uma análise quantificável e mensurável, vamos ficar devendo. Mas uma percepção a partir da teologia litúrgica é que o modo como rezamos molda a forma como cremos, que molda a forma como agimos ou procedemos. Em outras palavras, a experiência dá forma aos horizontes de sentido, os quais, por sua vez, dão forma à práxis. A convicção em nosso artigo é de que um uso empobrecido da água na vida litúrgica da Igreja, particularmente no tocante ao batismo, gera uma compreensão frágil ou até instrumental da água, que resulta numa avaliação precária do lugar de toda a água, assim como, de modo correspondente, numa falta de compromisso com as questões ambientais e de justiça em torno da água hoje.

Maike Gorsboth – Em algumas tradições cristãs, o uso da água foi minimizada – a água faz parte das nossas práticas litúrgicas, mas se usa muito pouco dela. Ela fica muito reduzida a um “mero” símbolo que praticamente não percebemos mais como a força que dá vida e que tira vida, a qual, ao mesmo tempo, ela é e simboliza. Não se trata apenas da valorização e do uso consciente da água, mencionados por John, mas também, até certo ponto, de uma experiência sensorial reduzida da água no culto. Não vemos as correntes e as piscinas de água bíblicas, mas somente algumas gotas, não ouvimos o murmúrio da água viva, mas somente um gotejar, sentimos apenas um chuvisco que não nos molha.
Será que essa experiência ainda consegue comunicar o poderoso simbolismo da água como fonte de toda a vida? Ou, voltando à sua pergunta anterior, será que ela nos leva a “encontrar Deus”? Ao mesmo tempo, será que um uso mais consciente – e talvez mais abundante – da água pode não apenas enriquecer a nossa experiência litúrgica, mas também nos tornar mais conscientes sobre como usamos e abusamos desse precioso elemento em outras situações?

John Gibaut – Talvez um paralelo interessante: quando a Eucaristia era entendida como uma refeição, usando pão de verdade e generosas quantidades de vinho, era inegável a conexão entre o alimento eucarístico e o alimento para os famintos. A linguagem eucarística que envolve os milagres da alimentação em todos os quatro evangelhos aponta para a mesma direção. Por isso, Paulo se escandalizou na Primeira Carta aos Coríntios, onde os ricos eram servidos primeiro, e os pobres, de jeito nenhum.

Na medida em que a experiência da eucaristia como refeição diminui a partir do final do período patrístico até o cristianismo medieval, o pão da eucaristia se torna cada vez menor, até se tornar a “hóstia” que conhecemos hoje. A conexão consciente entre a alimentação eucarística e a alimentação dos famintos praticamente se perde. Com certeza, ainda havia um número significativo de cristãos, particularmente os das comunidades monásticas, que assumiam o cuidado dos enfermos, dos pobres e dos famintos, mas dificilmente se poderá dizer que essa era a visão robusta das primeiras comunidades cristãs.
Da mesma forma, a igreja primitiva praticava o batismo por imersão como norma. Porém, por várias razões históricas e culturais – como o movimento para países nórdicos, o aumento do batismo infantil como norma, uma prática clínica do batismo a ser celebrado poucos dias após o nascimento –, passou-se à prática de se derramar ou aspergir água no batismo. A quantidade de água era a mínima possível. Como tal, o rito de batismo não mais conseguia explicar-se a si mesmo e precisava de uma explanação substancial. Essa justificação teológica apontava para um uso instrumental da água. A água deixava de ser sagrada em si mesma e era usada para outra finalidade. Em contraste, São Paulo havia entendido que a água era intrínseca à natureza do batismo. Além disso, as bençãos da água se tornaram cada vez mais complexas e não apenas “eucaristizavam” a água mediante uma ação de graças, mas também a “exorcizavam”, a fim de purificá-la para a finalidade sagrada do batismo.
Nesse ponto, a água claramente havia deixado de ser entendida como sagrada por direito próprio, mas era considerada algo incapaz de portar graça sacramental por causa de sua própria natureza. Ocorre uma desconexão entre a “água benta” e a outra água. Santo e saudável acabam sendo desconectados.

O uso desestimado da água na oração litúrgica suscita outro tipo de entendimento da água na teologia sacramental, que encara a água não como dom de Deus, mas como algo a ser usado para nosso benefício: no caso do batismo, o dom da salvação. A copiosa beleza da água abundante é conhecida pelo cristianismo primitivo e da era patrística, com os batistérios enormes e lindos, construídos visando o batismo por imersão, geraram uma certa apreciação da maravilha que é a água. O uso medieval da água, que continua caracterizando boa parte do cristianismo ocidental de hoje, sugere uma visão minimalista, senão, no fim, destrutiva da água. Embora eu possa muito bem tratar a água benta com grande respeito e reverência, minha experiência litúrgica dessa água não se traduz na minha experiência de outras águas, como a água do lago ou da torneira. Uma experiência litúrgica de toda a água como sagrada me levou ao menos a uma apreciação mais holística e salutar da santidade de toda a água.

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