Edição 346 | 04 Outubro 2010

A Criação como dom a ser reconhecido e agradecido

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Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

 

IHU On-Line – Como o impacto das mudanças climáticas desafiam as nossas igrejas hoje? Qual é o papel dos cristãos nesse contexto?

Peter Pavlovic – As mudanças climáticas nos lembram que podemos facilmente destruir o que nos é dado. Elas nos lembram a fragilidade da Criação. Lembram-nos também de que nem tudo no mundo está em nossas mãos. A despeito da tecnologia sofisticada e a despeito da ciência de alto nível de que a humanidade dispõe, não temos condições de parar os furacões, as enchentes e as catástrofes naturais associadas à mudança climática contínua. A mensagem cristã pode desempenhar um papel muito significativo no enfrentamento do desafio da mudança climática. Há alguns anos, a comunidade ecológica e os políticos do mundo foram lembrados por uma matéria da revista Stern, altamente conceituada, dos custos decorrentes da opção de não fazer esforços suficientes para prevenir a ameaça das mudanças climáticas. Essa matéria foi um alerta para muitos políticos que não colocam o meio ambiente e as mudanças climáticas em sua agenda cotidiana.

A mensagem central da matéria era muito clara e simples: é necessário trabalhar na prevenção e na mitigação das mudanças climáticas agora, pois, do contrário, será muito mais custoso fazer isso mais tarde. Os custos adicionais foram calculados na casa dos bilhões. Não há dúvida quanto ao papel positivo que essa matéria desempenhou para estimular esforços políticos no sentido de mitigar a mudança climática. A linguagem econômica que os políticos entendem e a urgência com que a mensagem foi formulada foram valores que contribuíram para que a matéria fosse altamente valorizada. Ainda assim, é importante ir além disso. Em outras palavras, a matéria da Stern é uma conclamação a reagir às mudanças climáticas com base no medo. Particularmente, trata-se do medo de que as mudanças climáticas vão causar desastres e catástrofes ambientais, trata-se do medo de que a proteção do meio ambiente vai custar quantias astronômicas no futuro, e que por isso precisamos agir. A abordagem cristã tem de apresentar algo diferente. Cuidar do meio ambiente, respeitar a Criação e protegê-la é, antes de qualquer coisa, nossa tarefa, mas não por causa do medo. Somos conclamados a proteger a Criação como presente que nos foi dado, a partir do respeito e da alegria. O que é diferente nesse quesito é a motivação. Creio que essa motivação nos leva a um tipo diferente de ação do que a motivação baseada no medo.

IHU On-Line – Afirma-se que a crise climática é, no fundo, uma crise ética e até espiritual, com graves implicações sociais. Está de acordo? Há uma crise em nossa capacidade de conviver com os demais seres da Criação?

Peter Pavlovic – A compreensão de que a crise climática tem uma dimensão ética está bem disseminada atualmente. A maioria das pessoas envolvidas nas discussões sobre as mudanças climáticas não a negam nem encontram nada de novo nela. A questão verdadeira, entretanto, é a seguinte: de que ética estamos falando? Qual é a relação entre a espiritualidade e nossas ações diárias? Por exemplo: é ético o suficiente que uma empresa, que produz poluentes significativos, pague uma quantia, ainda que uma quantia elevada, como sua única reação séria à degradação ambiental e às mudanças climáticas subsequentes causadas por sua contribuição para a destruição da atmosfera, para que sejam plantadas algumas árvores em algum lugar distante do globo, sem fazer quaisquer esforços substanciais para reduzir a poluição que causa? Será que o dano ao meio ambiente pode ser compensado por essa espécie de “investimento”? Será que uma sensação boa pode ser comprada dessa forma? De que tipo de ética estamos falando? Na ótica da empresa, essa espécie de ação talvez seja vista como uma forma boa, transparente e até ética de lidar com as mudanças climáticas. Mas será que nós compartilhamos essa espécie de ética? Será que essa ética se baseia nos princípios com os quais concordamos?

Esse exemplo simples demonstra que as mudanças climáticas não são uma mera “questão ecológica”. A reação eficaz às mudanças climáticas tem de ir além dos círculos dos especialistas em meio ambiente. As mudanças climáticas são, em grande parte, uma questão de justiça, uma questão que diz respeito à relação entre países industrializados e países em desenvolvimento, assim como uma questão que diz respeito à relação entre as gerações. Será que temos um direito de explorar e destruir a Criação de tal maneira que ela não possa mais ser restaurada para as gerações que virão depois de nós?
As mudanças climáticas são o sinal de um consumo exagerado de uma parte da humanidade, são um sinal da ausência de respeito pelos limites naturais, a prova do egoísmo e da busca de nosso próprio proveito. Elas são consequência do orgulho humano. Se esse tipo de análise está correto, então está claro que basear-se apenas na ciência e tecnologia moderna e cada vez melhor não será suficiente para buscar formas eficazes de responder às mudanças climáticas. Só a cooperação e a interação de várias espécies de abordagem, incluindo esforços das ciências socais, da ética e da educação, podem ser bem-sucedidas nesse sentido. Não se deve negligenciar o papel da espiritualidade nesses esforços. As igrejas e religiões têm de desempenhar um papel substancial nesse processo.

IHU On-Line – Em 2010, o “Tempo para a Criação” se soma à campanha 10:10:10. Que motivação espiritual, bíblica ou teológica cada pessoa pode ter para mudar seus estilos de vida em prol do meio ambiente?

Peter Pavlovic – Enfatizar a variedade e a riqueza dos subsídios bíblicos é um recurso chave numa abordagem cristã do cuidado da Criação. A argumentação cristã tem de ir além da referência limitada ao livro do Gênesis. Alguns desses subsídios, como os Salmos e os profetas, já foram mencionados. Deve-se dar ao Novo Testamento um papel igualmente forte para o desenvolvimento de uma abordagem cristã da Criação.
Alguns conceitos bíblicos importantes, como, por exemplo, o dom, a resposta ao dom e a justiça dão diretrizes para todos os cristãos. Uma compreensão adequada desses termos inclui não apenas falar sobre a Criação, mas, ao mesmo tempo, aceitar a Criação, honrá-la e valorizá-la, não como categoria abstrata, mas como algo que encontramos, usamos e necessitamos em nossa vida cotidiana. Para os cristãos, cuidar da Criação é uma questão muito pessoal.

IHU On-Line – Este ano também é o Ano da Biodiversidade, declarado pela ONU. Qual a nossa responsabilidade ética e espiritual, como cristãos, perante a Criação, especialmente em regiões tão biodiversas como o Brasil?

Peter Pavlovic – Criados juntamente com todas as criaturas, os seres humanos estão integrados na teia da vida na Terra. Somos dependentes das plantas e dos animais, nomeados pastores para cuidar da água doce e das florestas. E, assim, os seres humanos têm responsabilidade pelas demais criaturas, para que elas não sejam exterminadas, para que possam continuar vivendo em seu habitat, para que haja um equilíbrio justo entre os direitos das pessoas e os direitos dos animais. Estar cientes de que somos criados junto com outras criaturas nos permite viver numa atitude de admiração pelo que Deus criou e quer atingir. Se nos esquecermos disso, destruiremos a base de nossa própria vida.

Os cristãos no mundo todo podem fazer sua parte para sustentar a biodiversidade, oferecendo um lar para os animais e plantas em seus próprios prédios, campos, prados e florestas. Eles também podem apoiar o desenvolvimento de diretrizes e de leis que mantenham a variedade que temos. Antes de tudo, entretanto, eles podem ser um exemplo ao cuidar dos animais que vivem na natureza ao nosso redor e desfrutar a riqueza e a beleza da Criação que nos é dada. É isso que une os cristãos em sua abordagem da Criação no Brasil e na Europa, bem como no mundo inteiro.

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