Edição 346 | 04 Outubro 2010

''É preciso parar os relógios e anunciar um ‘tempo para a criação''

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Moisés Sbardelotto

 

IHU On-Line – A senhora também explica como o capital, o mercado e o patriarcado moldaram grande parte da história religiosa, especialmente cristã, também com relação ao meio ambiente. Que perspectivas teológicas nos auxiliam a superar essa tríade?

Nancy Cardoso Pereira – A falsa conexão entre mulher e natureza nas teologias patriarcais deixam ver o projeto comum de dominação sobre a natureza e sobre as mulheres que se perpetua, ainda hoje, de forma mais ou menos sofisticada nos monólogos teológicos dos senhores teólogos. A visão da natureza como recurso ilimitado que pode ser sempre tirado e tirado se articula com o trabalho da mulher/doméstica que é trabalho não-pago e movido a sacrifício. Estas são as duas formas básicas de extração de mais-valia, de acumulação básica. O cotidiano das maiorias, de modo especial, e das maiorias de mulheres, em particular, é de alienação e violência de seus corpos na relação com o corpo do mundo – também alienado e violentado.

A superação/enfrentamento desse sistema de controle-disciplina-exploração não se dá pelo elogio da natureza feminina, ou pela celebração de uma suposta proximidade da mulher com/na natureza. O desafio é de identificar ou criticar os modelos históricos e econômicos de subserviência e a prática política cotidiana (macro, micro). A superação possível está na busca conjunta (de classe e de gênero e de etnias...) por outras formas de bem-viver. A teoria, o método e as carnes desta teologia estão no real vivido das maiorias.

Retomo a fala de Ivone Gebara: “A vida cotidiana é o real vivido e é a partir dele que temos que tentar buscar o bem comum”. A preguiça com que muitas teologias neopatriarcais entre nós descartam a Teologia da Libertação  se dá exatamente pela segunda milha que o caminho com os empobrecidos e empobrecidas exige de nós: da recriação no cotidiano das relações de poder homem/mulher (na Igreja!, na teologia!, nos movimentos!, na vida!), do compromisso nos processos de luta de classes e suas novas formatações, na criação de estilos de vida que neguem e resistam ao capitalismo e sua febre de consumo.
Os teólogos não se arriscam com uma teologia que não garanta mais para eles mesmos – como classe e gênero – os mecanismos de controle e poder do antropocentrismo e do patriarcalismo. Preferem o caminho reformista da teologia que se acomoda na academia ou nas variações de uma teologia pública (sem luta de classes!).

Hoje, parte do cristianismo inserido no capitalismo de consumo desistiu de fazer as perguntas honestas e radicais que o evangelho de Jesus nos faz... As respostas às dramáticas necessidades das maiorias pobres do planeta se expressam em projetos assistencialistas e caritativos que preferem seguir garantindo as necessidades da sobrevivência das institucionalidades, inclusive as igrejas.
Uma outra parte de cristãos não incluídos plenamente no capitalismo e mesmo as maiorias excluídas respondem com teologias da prosperidade, que é também uma teologia da propriedade que coloca as necessidades sociais na dimensão do individualismo das trocas com a divindade, o mercado. Não há uma resposta organizada às necessidades..., mas sim uma objetivação do sujeito, de modo a inseri-lo nos mecanismos de consumo. Aqui, Leonardo Boff é profeta capaz de se reinventar na compreensão de que o paradigma opressão/libertação aplica-se tanto para as classes dominadas e exploradas como para a Terra e suas espécies vivas.

IHU On-Line – Uma das datas chaves do Tempo para a Criação é o dia 4 de outubro, dia de Francisco de Assis, na tradição católica. Como podemos compreender, teologicamente, a pobreza voluntária e a relação com a natureza vividas por Francisco?

Nancy Cardoso Pereira – “A irmã água, a qual é muito útil e humilde e preciosa e casta!”, cantada por Francisco de Assis, hoje está sequestrada pelas indústrias como Nestlé, Coca-cola e Suez. A irmã água, igualada na humildade e castidade de uma virgem, acaba sendo presa fácil dos projetos tempo-dinheiro. A dimensão de utilidade e preciosidade se expressa na forma da água-mercadoria e na privatização do que o capitalismo chama de “recursos hídricos” e que os movimentos populares e camponeses insistem em chamar de água: bem comum... sempre irmã!
Desafiam-nos a poesia/profecia de vida de Dom Cappio, na defesa do Rio São Francisco, e na luta das mulheres da Via Campesina, na defesa da biodiversidade e da água na Bolívia ou em Uganda. Também na cantoria do Gogó da Comissão Pastoral da Terra – CPT que nos convida a “colher a água” e lembrar dos passarinhos: “Você ainda vai lembrar dos passarinhos / E dos bichinhos que precisam de beber / São dons de Deus, nossos irmãos, nossos vizinhos / Fazendo isso honrará a São Francisco”.

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