Edição 346 | 04 Outubro 2010

''É preciso parar os relógios e anunciar um ‘tempo para a criação''

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Moisés Sbardelotto

 

IHU On-Line – Diversos analistas afirmam que a crise climática é, no fundo, uma crise espiritual e ética, com graves implicações sociais. Como a senhora, a partir da teologia, analisa as mudanças climáticas? Perdemos nossa capacidade de “conviver”?

Nancy Cardoso Pereira – A crise climática é, no fundo, uma crise climática mesmo, comprometendo as condições objetivas e subjetivas de reprodução de todas as formas de vida. Nesse sentido, não há uma crise e outra. O que estamos aprendendo é que nossas formas de espiritualidade têm uma profunda conexão com a saúde do todo, dos sistemas de vida.
Aprendi a orar assim com Ivone Gebara: “Graças a Deus, choveu no sertão. Graças a Deus, o milho brotou. Graças a Deus, o gado não morreu. Graças a Deus, estou curada. Deus, como chuva, milho, gado vivendo, cura... Deus, como esmola, ajuda, pão. Deus, como pedindo em mim, pedinte nos outros (as). Deus, como comida. Deus, como carência, sem omnipotência nem ciência... Deus, como trabalho, casa, companheiro... quebra minha solidão, grita comigo, suspira comigo, busca comigo”.

Nossa convivência com a natureza se dá no supermercado, disciplinada pela ordem das prateleiras, promoções e produtos. Ou consumimos a natureza na forma do turismo, no consumo da paisagem prêt-à-porter. Já nem estranhamos nossa alienação em relação à terra e às águas, ao território, ao planeta. Nosso corpo pessoal, desconectado do corpo social e do corpo do mundo, espera ser redimido pelas promessas do consumo num complexo mecanismo de alienações erótica, ecológica e econômica. Sem terra somos todos, as maiorias, e já nos acostumamos e aceitamos a racionalidade da propriedade privada como natural e essencial.
A crise espiritual e ética é também uma crise do modelo de apropriação do mundo pelas regras da propriedade privada que é antiética e idolátrica, porque coloca fora da história e da sociedade as legitimidades de posse do mundo. O desejo de conviver precisa se articular, então, com a ruptura da ordem da propriedade na afirmação dos direitos da terra e o direito dos povos.
Esta outra convivência dos corpos sociais com o corpo do mundo está bem expressa no sumak kawsay e nos modos de vida – tradicionais e contemporâneos – dos povos indígenas. Esse desejo de conviver nesse sentido não é um chamado ao passado, um romantismo utópico, mas é fruto de lutas e consensos que vão sendo construídos a partir de outros modos de vida e relação.

IHU On-Line – O “Tempo para a Criação” deste ano também se soma ao Ano da Biodiversidade, proposto pela ONU para 2010. Em ecossistemas tão ricos e variados como os presentes no Brasil, qual seria, em sua opinião, a nossa responsabilidade ética e espiritual perante essa herança compartilhada?

Nancy Cardoso Pereira – O Ano da Biodiversidade da ONU é muito importante, mas as contradições dos espaços da política internacional nem sempre permitem que se possa discutir e intervir em processos de pirataria e exploração. Não há contradição entre a luta política contra o capitalismo e a busca da espiritualidade. Nas contradições e tradições das lutas latino-americanas por terra-pão-liberdade, vamos reformatando os nomes e as relações do projeto popular como exercício sempre necessário.

Repito com Mariátegui : “A burguesia entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria, da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não reside na sua ciência e sim na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, tal como escrevi num artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa”.
As palavras novas e antigas não podem ser simplesmente justapostas, mas precisam dessa paixão capaz de soletrar ecofeminismo ou ecossocialismo. Essas lutas se expressam na prática da defesa das sementes crioulas. Assim a conversa concreta sobre biodiversidade precisa nomear e enfrentar as empresas gigantes do setor (Monsanto, Syngenta, Bayer, CropScience (ex-Aventis), DuPont e Dow AgroSciences).
O testemunho que vem dos camponeses do Haiti é importante: diante da notícia de que a Monsanto doará 60 mil sacos de sementes (475 toneladas) de sementes de milho híbrido e sementes de vegetais, alguns deles tratados com pesticidas altamente tóxicos, o Movimento Camponês de Papay comprometeu-se com a queima de sementes da Monsanto e apelou para uma marcha de protesto contra a presença da corporação no Haiti, o que aconteceu em 4 de junho de 2010, Dia Mundial do Ambiente. A entrada de sementes da Monsanto no Haiti é considerada pelos camponeses e camponesas um ataque muito forte na pequena agricultura, sobre os agricultores, sobre a biodiversidade e as sementes crioulas, e sobre o que resta do ambiente no Haiti.

IHU On-Line – Outro eixo de trabalho do “Tempo para a Criação” é a campanha 10:10:10. Que motivação teológica cada pessoa pode ter para mudar seus hábitos cotidianos em prol do meio ambiente?

Nancy Cardoso Pereira – Quando se chama para uma espiritualidade de redes e de totalidades com a natureza, não nos desfazemos do compromisso da luta política nem nos conformamos com as chamadas comportamentais isoladas. Os pequenos passos são vitais, mas precisam se relacionar com práticas comunitárias e escolhas estruturais da vida em sociedade.
Assim, fechar a torneira enquanto se escova os dentes, enfrentar a Syngenta e a Aracruz e denunciar a bancada do agronegócio em sua fúria devoradora de florestas são ações positivas que exigem mudança de hábitos cotidianos. Espero que o 10:10:10 expresse essas alternativas, em especial a partir da Conferencia Mundial de los Pueblos sobre el Cambio Climático y los Derechos de la Madre Tierra  que aconteceu em abril de 2010 em Cochabamba. De modo sintético o debate em torno do II Manifesto Ecossocialista aponta para a ação intensiva em alguns sistemas:
• no sistema energético, substituindo os combustíveis fósseis que são responsáveis pelo efeito estufa (petróleo, carvão) por fontes limpas energéticas como a eólica e a solar;
• no sistema de transporte, reduzindo drasticamente o uso de caminhões e de carros particulares, substituindo-os com transporte público grátis e eficiente;
• nos padrões atuais de consumo, baseados no lixo, na obsolência inata e na competição desbravada. 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição