Edição 346 | 04 Outubro 2010

''Opção ecológica'': reconhecer o grito de toda a Criação junto ao grito dos pobres

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Moisés Sbardelotto | Tradução: Moisés Sbardelotto

 

IHU On-Line – O “Tempo para a Criação” deste ano se somou à campanha 10:10:10, que busca transformar o dia 10 de outubro de 2010 na data com o maior número de ações positivas de pessoas e organizações contra as mudanças climáticas da história. Que motivação teológica cada pessoa pode ter para mudar seus hábitos cotidianos pela proteção do meio ambiente?

Guillermo Kerber – A pergunta é particularmente pertinente, porque a “mudança dos hábitos cotidianos” pode ser expressão de uma mais profunda “conversão”. A crise ecológica, em seu componente das mudanças climáticas humanamente induzidas, requer uma profunda conversão em vários níveis. Por um lado, é necessário mudar o paradigma dominante de desenvolvimento que implica em crescimento ilimitado, consumismo e irresponsável geração de resíduos. Esse paradigma, vivido pelas sociedades ricas e as elites dos países pobres é o modelo para os bilhões de pobres em todo o mundo, o que é duplamente perverso, já que destrói a natureza e coloca como objeto de desejo (na maioria dos casos, inalcançável) das massas populares um fim que, por si só, é iníquo.

Por outro lado, é necessária uma “conversão” individual, a metanoia dos Evangelhos, uma mudança de mentalidade, uma mudança de valores, uma mudança de atitudes, uma mudança de vida. Gestos simples, de acordo com os contextos, podem veicular essa mudança. Por exemplo, mudar as lâmpadas elétricas de filamento pelas lâmpadas de baixo consumo, privilegiar a mobilidade ecológica (transporte público, bicicletas etc.) em vez do automóvel, reduzir as viagens de avião, cuidar do consumo de água potável etc. Reciclagem do lixo se tornou fundamental em todas as grandes cidades. Em alguns casos, foi geradora de emprego para os hurgadores  [catadores].

Os países, nos níveis estadual e nacional, devem, por sua vez, promover políticas que fomentem as energias renováveis (eólica, solar, geotérmica etc.), o transporte público, o consumo de produtos alimentícios locais etc. A maioria dessas políticas requer fortes investimentos econômicos que os países ou estados pobres não dispõem. A discussão em nível internacional do Fundo de Adaptação das Nações Unidas envolve a garantia de que a transferência de tecnologia seja acessível aos países pobres. O 10:10:10, o dia 10 de outubro de 2010, é um movimento mundial que busca, com esse número, unir várias manifestações de conscientização e de ação contra as mudanças climáticas. No ano passado, igrejas de todo o mundo tocaram os sinos 350 vezes no dia 13 de dezembro, quando se realizava a Conferência sobre as Mudanças Climáticas em Copenhague. Trezentos e cinquenta se refere ao número máximo de partes por milhão de CO2 na atmosfera para evitar seu aquecimento. Neste ano, o Conselho Mundial de Igrejas convida igrejas e comunidades a se unirem criativamente ao 10:10:10.

IHU On-Line – À luz teológica e bíblica, como podemos compreender conceitos como “justiça climática” ou “ecojustiça”?

Guillermo Kerber – É importante reconhecer, como expressei antes, que a justiça climática é um aspecto da justiça ecológica e da ecojustiça. Dieter Hessel , por exemplo, afirma que a justiça ecológica envolve a solidariedade com outras pessoas e criaturas na comunidade da Terra, refletindo um profundo respeito pela diversidade da Criação; a sustentabilidade ecológica, isto é, de modos de vida e de trabalho ambientalmente adequados que possibilitem que a vida floresça e que utilizem tecnologias apropriadas social e ambientalmente; a suficiência como um padrão com níveis mínimos e máximos para um consumo equitativo; e a participação social justa nas decisões políticas. Mas, além disso, enquanto justiça, na justiça ecológica e climática é importante aplicar os critérios da justiça distributiva, da justiça restauradora e da justiça das vítimas.
A justiça distributiva envolve a garantia da equidade na distribuição dos recursos atmosféricos. Nessa dimensão da justiça, a consideração da dívida climática, recentemente desenvolvida conceitualmente, oferece critérios relevantes. A dívida climática afirma que, por um lado, os países industrializados mantêm uma dívida de emissões e de adaptação com os países pobres por causa de suas excessivas emissões (no passado e na atualidade) e por causa de sua contribuição desproporcional aos efeitos das mudanças climáticas. Por outro lado, a dívida climática é também uma dívida com respeito à Terra, que foi destruída irreparavelmente.
A justiça restauradora foi desenvolvida, sobretudo, em relação à justiça familiar e juvenil e tem como chaves o protagonismo da vítima no processo, a relação vítima/vitimário, o envolvimento da comunidade na transformação do conflito. Ela foi utilizada como fundamento teórico de diversas Comissões de Verdade e Reconciliação. No âmbito da justiça climática, essa dimensão da justiça sublinha particularmente os direitos das vítimas das mudanças climáticas.

A justiça das vítimas parte do princípio de que, como diz o filósofo espanhol Reyes Mate , sempre houve vítimas, mas até agora elas eram invisíveis, porque eram consideradas como o preço obrigatório da marcha da história. Agora, se tornaram visíveis, e isso significa que entendem sua situação não como algo natural ou inevitável, mas sim como uma injustiça que espera respostas. As vítimas das mudanças climáticas também começam a ser visíveis e a exigir seus direitos. Se, em relação aos direitos civis e políticos, os princípios dos direitos das vítimas incluem o direito ao conhecimento, o direito à justiça, o direito à reparação, o que envolveria os direitos para as vítimas das mudanças climáticas? Em nível teológico, o teólogo alemão Jürgen Moltmann, quando fala da justiça das vítimas, apela à justiça criadora de Deus, que, para além de uma justiça retributiva, reconhece o direito das vítimas. Em suma, a ecojustiça ou a justiça climática são aspectos particulares da justiça que não podem ser consideradas isoladamente, mas sim em relação estreita com a justiça social, em especial pelo efeito que as mudanças climáticas terão nos grupos vulneráveis e com a justiça econômica, pela vinculação que existe entre mudanças climáticas, sistemas econômicos e modelos de desenvolvimento.

IHU On-Line – Em artigo recente, intitulado “Ecologia e nova cosmologia: implicações teológicas” (disponível em http://migre.me/1qs11), o senhor afirma que “um cristianismo ecológico enfatiza que o próximo inclui também seres humanos e não humanos”. Como fundamentar e viver hoje esse modelo de cristianismo?

Guillermo Kerber – O exemplo de São Francisco, mencionado mais acima, nos abre a essa perspectiva. Dentro da tradição cristã, há uma vertente mística e profética que supera o dualismo grego, que tanto influenciou nossa civilização dominante atual e que contribuiu para a destruição da criação. Não é crível, por um lado, um cristianismo que proclama que o mandamento novo é o “amor ao próximo” e, ao mesmo tempo, “odeia” na prática o resto da Criação, submetendo-a, explorando-a, destruindo a riqueza da biodiversidade. Não é crível, por outro lado, um cristianismo “místico” ou, melhor dito, pseudomístico, que insiste em experiências espirituais (?) extraordinárias e relega o pobre que sofre ao nosso lado. Lamentavelmente, na história da Igreja, temos exemplos de ambos. A mística profética holística, para chamá-la de alguma forma, teve expressões várias. Na América Latina, no meu modo de ver, refletiu-se, por exemplo, nos Salmos, Vida en el Amor e outros escritos de Ernesto Cardenal , que também podem ser catalogados como mística política.
Mas, no mundo atual, não podemos ficar somente em nossa tradição cristã. Outras religiões nos ensinam também outro modo de relacionamento com a natureza, sublinhando que nós, seres humanos, somos parte dela. Esse ensinamento sobreviveu, apesar da brutal perseguição, nos povos indígenas  da nossa Abya-Yala , no reconhecimento e veneração à Mãe Terra, a Pachamama das religiões andinas.
E além da nossa América, outras religiões – religiões africanas, o budismo, o hinduísmo – oferecem pistas para reinterpretar o nosso relacionamento com toda a criação.

IHU On-Line – No mesmo texto, você diz que “toda a criação deve ser liberta, começando pelas comunidades mais vulneráveis, os pobres, os índios, levando em conta também as culturas e as espécies que estão desaparecendo”. E sugere que isso seja feito por meio de “um diálogo com a nova cosmologia e a ecologia”. Em que sentido?

Guillermo Kerber – A criação que geme (Romanos 8, 22), da qual falava mais acima, anseia pela libertação. Uma libertação escatológica, que não deve ser localizada no além da história, mas que é, senão, o “já, porém ainda não” em plenitude, como um dos mistérios com os quais a teologia lida. O desenvolvimento da ciência atual reconhece, há mais de um século (lembremos o Princípio de indeterminação  de Heisenberg , no auge do século XX, ou a Teoria da Relatividade Geral  de Einstein  em 1915), que a ciência não pode ter pretensões absolutas de veracidade. O ensaio e o erro, as teorias da verificação são as formas como a ciência avançou, como mostraram os filósofos da ciência. Mas houve também na história verdadeiras revoluções científicas que implicaram em uma mudança de paradigmas (Kuhn).
Hoje, estaríamos assistindo a uma dessas mudanças, afirmam os que proclamam o advento de uma nova cosmologia, como nova forma de entender o mundo, o universo e o ser humano como parte dele. Byrro Ribeiro  e Passos Videira , por exemplo, afirmam que noções filosóficas e teológicas são incorporadas na discussão da nova cosmologia construída sobre achados científicos fundamentalmente da matemática, da física e da astronomia. E o historiador Thomas Berry  vincula a ecologia e a nova cosmologia com um novo relato, uma nova narração que correspondam ao novo momento histórico que a humanidade vive. Para Berry, estamos entrando agora em um novo período histórico, período que poderíamos designar como a era ecológica.

Gregory Bateson , um dos meus autores favoritos nesse campo, a partir da epistemologia e da cibernética, apela a uma mudança na forma pela qual compreendemos a realidade, a abrir-nos a uma ecologia da mente. Esta complementa a ecologia biológica e a ecologia social e profunda. A primeira, como ciência, já tem quase 200 anos no estudo do organismo vivo e seu entorno. A segunda, para além das controvérsias entre partidários da ecologia social e partidários da ecologia profunda (por exemplo, Bookchin  versus Naess ), incorpora o ser humano na equação ecológica. A ecologia da mente, por sua parte, propõe uma mudança no paradigma epistemológico dominante. Para o teólogo uruguaio Juan Luis Segundo , que utilizava muito Bateson em seus círculos de estudo, este ajuda a compreender a dinâmica do conhecimento científico, a relação entre teologia e ciência e contribui com a “libertação da teologia”, o título de uma das obras de Segundo. À medida que aprofundamos as implicações da ecologia e da nova cosmologia, percebemos que é imprescindível uma aproximação holística que inclua a Criação no processo de libertação. Leonardo Boff, acertadamente, como disse antes, coloca o grito da terra junto com o grito dos pobres. Escutar os dois gritos, ou talvez, melhor, um grito que é o eco do outro, é o ponto de partida para uma experiência espiritual que, por suas implicações éticas, traduz-se em uma ação cidadã, social e política.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a crise climática? Há responsáveis? Perdemos nossa capacidade de “conviver”?

Guillermo Kerber – É verdade que a crise climática tem várias dimensões: ambiental, econômica, política, social, cultural. É verdade também que a crise climática, como parte da crise ecológica, está intimamente vinculada a outras crises: a crise da água, a crise alimentar, a crise econômico-financeira dos últimos anos. Essas crises estão inter-relacionadas. Por isso, é ingênuo, senão perverso, tentar resolver uma só sem atacar as outras. Lamentavelmente, esse foi o caso da crise econômico-financeira. Em 2008-2009, tivemos a ocasião de responder de outra forma, alentando, por exemplo, as energias renováveis, buscando soluções sustentáveis etc. Mas a resposta foi a que conhecíamos há décadas: um impulso à produção, ao consumo, em síntese, à destruição da terra e ao aumento da brecha entre pobres e ricos.
Por isso, a partir de uma perspectiva ética e teológica, embora a crise climática seja global, no sentido de que afetará a todos, nem todos vão ser afetados da mesma maneira, nem todos contribuíram da mesma forma, como já disse. Por isso, a Convenção das Mudanças Climáticas fala de “responsabilidades comuns mas diferenciadas”.

Há uma responsabilidade histórica dos países industrializados por suas emissões. As sociedades desses países e as elites dos países pobres têm uma responsabilidade diante de um estilo de vida que esgota os recursos e vai além da sustentabilidade da Terra. Além disso, no mesmo artigo 3 da Convenção, sob o título de Princípios, apresentam-se outros elementos que devem ser levados em conta: o benefício das gerações presentes e futuras, sobre a base da equidade; as necessidades dos países em desenvolvimento particularmente vulneráveis às mudanças climáticas; o direito a um desenvolvimento sustentável.
Portanto, há responsáveis, há medidas claras a serem tomadas, falta vontade política por parte dos Estados e tomada de consciência e ação concomitante por parte das pessoas e comunidades. Mas, como cristãos, temos esperança. Em milhares de lugares, comunidades se esforçam para viver de forma mais justa, mais fraterna/sororal, mais sustentável para as futuras gerações. Nossos filhos e filhas esperam de nós. Suas vidas e as das gerações futuras estão em nossas mãos. Talvez, isso nos ajude a mudar, a abandonar nosso individualismo, conforto e segurança e apostar efetivamente em um mundo melhor em que caibam todos.

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