Edição 344 | 21 Setembro 2010

A subjetivação ética como desgoverno biopolítico da vida humana

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Márcia Junges

IHU On-Line - Em que sentido a “ortopedia moral” expressa uma necessidade de cumprimento de imperativos morais e até mesmo mercadológicos?

César Candiotto -

IHU On-Line - O controle das mentes seria a forma mais requintada e paralisante do biopoder? Por quê?

César Candiotto -
Em As revoluções do capitalismo (Rio de Janeiro: Record, 2008), de Maurizio Lazzarato , essa hipótese está razoavelmente implícita. Mas antes dele, ela já é observável nos trabalhos de Michel Foucault, quando ele mostra que disciplina, biopoder e governamentalidade não são somente ênfases diferentes da atuação do poder na história do Ocidente, de modo que a forma posterior substituiria à anterior. Antes, constituem modos de operacionalização do poder que atuaram na constituição dos sujeitos. A disciplina normaliza os corpos, o biopoder regula a vida e a governamentalidade administra as possibilidades das ações livres. Contudo, as coisas não são tão lineares assim. Sabemos que a disciplina é irredutível à produção de corpos úteis ao objetivar também a constituição de “almas” dóceis mediante o enfraquecimento da vontade própria e o fortalecimento da obediência. Igualmente, o biopoder não somente regula a vida no sentido que a medicina a entende. Sabemos que pensadores como Nietzsche, Tarde e Bergson , situaram no fundamento do vivo a memória e a atenção, como potência de atualização do virtual. Até mesmo a biologia de Haeckel  afirma que a essência do vivo é a memória, a preservação física do passado no presente e a gravação das mensagens presentes para o futuro. Nesse aspecto o investimento da memória mental é somente um desdobramento da regulação da vida. Contudo, esse desdobramento pode ser bem compreendido quando Foucault entende o poder a partir da governamentalidade. Esta trabalha com as possibilidades do agir nas quais estão envolvidas a memória e a atenção. São essas novas dimensões do vivo que se encontram cada vez mais capturadas e colonizadas pela opinião pública. Depreende-se que o conjunto dessa operacionalidade do poder não somente procura moldar os corpos e regular a vida, mas também modular as forças da memória e da atenção e os fluxos de desejos e crenças. O noopoder - como nomeia Lazzarato a esse processo de modulação das mentes nas sociedades de controle atuais - não seria um novo poder, mas um desdobramento requintado do próprio biopoder em razão do qual o investimento na memória mental prevalece em relação à normalização da memória corporal, das sociedades disciplinares.


IHU On-Line - Quais seriam as resistências (ou desgovernos) mais pujantes ao governo biopolítico da vida humana?

César Candiotto -
São todas aquelas que emergem de processos de subjetivação a partir dos quais o indivíduo elabora um trabalho ético sobre si mesmo. Muitas resistências políticas tornaram-se inoperantes porque não foram precedidas de um “desgoverno [ético] da individualização”. Por governo da individualização, Foucault entendeu todos os procedimentos políticos atuantes nas diferentes práticas sociais que pretendem nos fixar uma identidade. Ao operar pela individualização, esses procedimentos buscam obstaculizar a constituição da individuação ou da singularidade. Contudo, Foucault entende que o poder, no sentido de governamentalidade, supõe sempre sujeitos suscetíveis de agir livremente diante da ação de outrem. Significa que, se o governo biopolítico atual procura regular nossa vida principalmente pela modulação das forças mentais da memória e da atenção, as resistências ou processos de subjetivação, por sua vez, podem agir no mesmo campo de aplicação do biopoder. Quando os indivíduos travam um permanente embate agonístico entre as forças do desejo e as potências da liberdade, têm como efeito a constituição de diferentes “modos de viver”. Essas modulações vitais resultantes do trabalho ético, na medida em que não visam à constituição de uma identidade (de um ser), mas de um modo de ser (uma estilística da existência) não inapreensíveis pelo governo da individualização; elas possibilitam uma requalificação do desejo, do querer e da atenção por parte das forças da liberdade. A subjetivação ética constitui a forma mais suscetível de despotencializar o governo da individualização. Arrisco-me a dizer que a criação de uma relação diferente com o ato de consumir em nossa sociedade poderia ser uma das formas do desgoverno biopolítico da vida humana, porque implicaria em nova qualificação do desejo, distante de sua modulação governamentalizada e mimeticamente colonizadora da vida interior.


Leia mais...

>> Confira outra entrevista concedida por César Candiotto à IHU On-Line.

* Foucault e a governamentalidade biopolítica. Edição número 324, revista IHU On-Line, de 12-04-2010

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