Edição 343 | 13 Setembro 2010

Os guarani: um povo instituído pela memória mítico-histórica indígena

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Patricia Fachin

 

IHU On-Line - Como, ao longo da história desse povo, foram incorporados novos valores e interesses?

Walmir Pereira – Naturalmente, considerando o axioma de que a cultura é dotada de dinamismo e que encontra-se em constante transformação, era previsível, do ponto de vista das ciências antropológicas, que os guarani e sua cultura milenar, assim como todas as demais culturas humanas, também experimentassem mudanças em sua trajetória histórica. Um bom exemplo de incorporação de novos valores é a figura do cacique líder político, fenômeno que apareceu com ênfase no Novo Mundo, sendo, virtualmente, uma (re)elaboração do universo colonial espanhol, ainda que o mesmo já existisse entre os guarani pré-colombianos. Até então, ele não tinha experimentado a importância e a força política que lhe foi atribuída no espaço reducional das Missões, local em que tal personagem emergiu como um poder nativo importante cujo poder se contrapunha a um “outro” poder indígena arraigado que se pretendia proscrever, o dos xamãs. Esses ofereciam resistência à conversão e aos valores ocidentais, além de incitarem os guarani a se engajarem em inúmeras rebeliões contra a presença de espanhóis e religiosos em seus espaços territoriais e imemoriais na região Platina da América do Sul.
 
IHU On-Line - Quais os desafios das políticas públicas no sentido de garantir o respeito e reconhecimento das alteridades e coletividades indígenas guarani, especificamente os que ocupam o território gaúcho?

Walmir Pereira – Acredito que seja uma legítima tarefa de Sísifo o enfrentamento efetivo e a resolução da problemática indígena no espaço social e territorial gaúcho. Em termos da constituição de políticas públicas, responsáveis e socialmente justas, creio que podemos elencar: a) estabelecimento de um diálogo intercultural em que a escuta das alteridades charrua, guarani, kaingang e xokleng seja o ponto de partida para toda e qualquer intervenção no campo das ações, programas e projetos que visem minorar a difícil e injusta situação dos indígenas nos campos da subsistência, saúde, educação, acesso às terras, produção e reprodução biológica e cultural; b) o trabalho diligente de técnicos do poder público, acadêmicos e representantes de ONGs, no sentido de, reconhecendo as assimetrias de poder existentes, trabalhar para desconstruir a visão dominante que desqualifica os indígenas como sujeitos de direitos específicos e dignos de exercerem a condição de cidadania plena; c) diante deste contexto marcadamente desfavorável, entendo que o processo de superação das iniquidades existentes, e das formas conexas de intolerância e não reconhecimento, repousa no imperativo de modificação das estruturas e mecanismos políticos, econômicos e socioculturais que tem permitido a reprodução da discriminação e dos efeitos de exclusão e marginalidade em todos os âmbitos da vida dos povos e coletividades indígenas que ocupam espaços territoriais no Rio Grande do Sul.
Por fim, acredito producente erigir como princípio ético-político legítimo a ser instituído entre nós a proposição assinalada por Boaventura de Souza Santos, a respeito da relação igualdade/diferença na modernidade contemporânea, ou seja, no caso em questão, o reconhecimento de que os povos e coletividades indígenas no Rio Grande do Sul devem ter o direito de invocar sua diferença toda vez que a igualdade lhes discriminar e reivindicar a igualdade toda vez que a diferença lhes desqualifique.

IHU On-Line - Como vivem as atuais comunidades indígenas no Rio Grande do Sul?

Walmir Pereira – Atualmente no estado vivem indígenas representantes de quatro povos e coletividades indígenas: charrua, guarani, kaingang e xokleng. Essas alteridades indígenas originárias e suas coletividades desenvolvem processos identitários em constante relação com os direitos coletivos, em especial nas modalidades territoriais e socioculturais, e os dispositivos jurídicos e políticos vigentes em escalas internacionais, nacional e locais. A totalidade das coletividades e famílias indígenas ocupantes de espaços territoriais no Rio Grande do Sul subsiste presentemente em terras indígenas, aldeias, acampamentos e cidades espalhados em varias regiões do estado. A subsistência desses nossos contemporâneos indígenas e de seus coletivos está ancorada predominantemente em atividades de produção agrícola familiar e na confecção e comercialização de artesanato.

IHU On-Line - Como é tratada, no Brasil, a questão da saúde e do saneamento básico para povos indígenas, em especial para os guarani? Quais os desafios para garantir a atenção à saúde e ao saneamento básico para esses povos?

Walmir Pereira - No plano normativo, os povos e coletividades indígenas que ocupam espaços territoriais no Brasil, em especial os guarani, têm direitos ao pleno exercício das medicinas tradicionais próprias e a manter suas práticas de saúde, aí incluindo a conservação de seus acervos de plantas domesticadas e minerais de interesse vital, sob o ponto de vista curativo e do bem estar social e espiritual. As pessoas indígenas também têm direito constitucional assegurado ao acesso, sem discriminação alguma, a todos os serviços sociais e de saúde pública existentes no país. O governo federal e os entes federados devem providenciar as medidas que sejam necessárias a fim de que se efetive progressivamente a plena realização deste direito. Já no plano empírico, a realidade prática apresenta contextos de saúde e sanitário problemáticos para os indígenas. O atendimento básico de saúde e as ações sanitárias junto aos coletivos e indivíduos indígenas estão sob responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde, embora exista decisão federal que prevê a criação de uma secretaria especial para tratar desta temática e da materialização de políticas públicas para o setor. Nesse ínterim, o atendimento vem ocorrendo majoritariamente nas próprias aldeias por meio de equipes de saúde vinculadas aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEIs, sendo que o trabalho nos postos de saúde circunscritos aos Distritos Sanitários é desenvolvido pelos agentes indígenas de saúde e de saneamento. Os casos de maior complexidade estão sendo encaminhados para hospitais regionais e para as unidades de referência denominadas Casa de Saúde do Índio. No caso particular dos guarani, mister o registro de que este povo, suas coletividades e grupos familiares, possui concepções, valores e formas próprias de vivenciar o processo saúde-doença. Neste sentido, as ações de prevenção, promoção e proteção da saúde advindas da biomedicina devem reconhecer esses aspectos como centrais no diálogo entre profissionais e gestores do campo da saúde com os usuários indígenas, observando os contextos e o impacto histórico da relação de contato interétnico secularmente vivenciada pelos entes nativos.

Contudo, persiste uma gama sensível de desafios. Em que pese a conformação nos últimos anos de uma Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena, emanada das diretrizes e princípios norteadores do Sistema Único de Saúde - SUS, e a melhora relativa dos padrões gerais sanitários e de qualidade de vida do conjunto da população indígena os macrodeterminantes das condições de vida e perfis epidemiológicos de saúde dos indígenas no Brasil ainda carecem de avanços significativos. Ademais, persiste a falta de (re)conhecimento das diferenças sensíveis existentes entre os sistemas indígenas de saúde e o sistema biomédico ocidental de saúde. Entre os aspectos relevantes desta diferenciação está o fato de que os sistemas indígenas de saúde, isto é, os saberes que estruturam a medicina indígena, são de ordem predominantemente holista.

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