Edição 343 | 13 Setembro 2010

O gênero como norma e fonte de subversão e resistência

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Márcia Junges e Graziela Wolfart

 

IHU On-Line - Como a saúde brasileira trabalha com a questão de troca de sexos? Ainda há muita discriminação na busca de atendimento médico de quem quer transformar seu corpo?

Márcia Arán - O Ministério da Saúde através da Portaria nº 1.707/2008 instituiu no Sistema Único de Saúde - SUS o Processo Transexualizador, através da constituição de serviços de referência que estejam habilitados a prestar atenção integral e humanizada a transexuais. Esta iniciativa foi importante porque o Ministério passou a reconhecer que questões relacionadas à identidade de gênero e práticas sexuais fazem parte da saúde e devem ser acolhidas e tratadas pelo SUS. Vários atores sociais contribuíram para a promoção do debate sobre transexualidade e saúde, dando visibilidade para a vulnerabilidade da população trans no país. Destaca-se a contribuição dos coordenadores dos programas assistenciais que construíram um espaço de atenção a essa clientela, muitas vezes enfrentando enorme resistência institucional devido ao preconceito, à homofobia e à discriminação incutidas em algumas práticas de saúde. Além disso, foi importante a ação do Ministério Público Federal para a inclusão da cirurgia de transgenitalização na tabela de procedimentos do SUS em 2001. A instituição do Comitê Técnico Saúde da População LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) em 2004, a participação dos movimentos sociais e as contribuição de pesquisadores acadêmicos também possibilitaram o estabelecimento de pactuações sobre propostas de saúde integral que fundamentaram esta iniciativa. No entanto, os desafios para a institucionalização destas práticas são muitos. É de fundamental importância investir na formação de profissionais capacitados para atender a esta clientela; a promoção de uma política de atenção básica (nós já temos alguns ambulatórios que têm sido uma experiência muito importante); a imediata discussão sobre a especificidade da assistência a homens transexuais que ficaram excluídos da portaria e das travestis; a construção de uma rede com sistema jurídico para a mudança do nome civil, entre outras. No entanto, o grande desafio na regulação desta prática consiste na despatologização da transexualidade. O fato de se definir uma política de saúde integral, tendo como referência os princípios do SUS, permite uma ampliação da noção de saúde, a qual não deve ficar restrita à ausência de doença. Desta forma, podemos considerar a noção de sofrimento psíquico e corporal como critério de acesso à saúde sem que necessariamente este sofrimento tenha que ser patologizado.

IHU On-Line - Qual é a contribuição de Foucault para pensarmos a temática da biopolítica relacionada com a transexualidade?

Márcia Arán - A contribuição de Foucault é decisiva. Interessa-me, particularmente, no debate sobre a biopolítica contemporânea, a utilização que Judith Butler faz do conceito de norma. Para a autora, as normas que governam a identidade inteligível são estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a um só tempo uma hierarquia entre masculino e feminino e uma heterossexualidade compulsória. Neste sentido, o gênero não seria nem a expressão de uma essência interna, nem mesmo um simples artefato de uma construção social, mas sim o resultado de repetições constitutivas que impõem efeitos substancializantes, ou seja, o gênero é ele próprio uma norma. Uma identidade atenuamente construída através do tempo por meio de uma repetição incorporada através de gestos, movimentos e estilos. Porém, partindo da teoria de biopoder de Foucault, Butler argumenta que é, justamente pelo fato de a instabilidade das normas de gênero estarem abertas à necessidade de repetição do mesmo, que a lei reguladora pode ser reaproveitada numa repetição diferencial. Assim, se o gênero é uma norma, ele também pode ser fonte de subversão e resistência.

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