Edição 343 | 13 Setembro 2010

Biopoder e o instante eterno

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Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

 

Face oculta

Mas a cultura do consumo não deixa por isso de ter uma face oculta. Trata-se dessa realidade que não deve aparecer, sobre a qual o olhar socializado no espetáculo das mercadorias e da publicidade nunca se detém: a coação ao crescimento que impõe violentamente o sistema econômico capitalista, desatendendo todo conhecimento e assunção responsável dos limites; a desigualdade sangrante que deixa fora de um festim não universalizável a maioria empobrecida do planeta; o caráter inconsciente do processo econômico subtraído à capacidade de decisão dos sujeitos que o sofrem; o esvaziamento das identidades convertidas em mero produto do mercado e a publicidade, a domesticação dos anelos e buscas de transcendência, juramentando-a com slogans sem suporte real ou com os reflexos fugazes de realidades que não podem cumprir o que prometem.  O culto da mercadoria oculta que a nova cultura do consumo no hipercapitalismo constitui numa exploração sem medida, também dos consumidores, não se detém tampouco ante suas dimensões espirituais. O marketing e a publicidade desencadearam uma estratégia gigantesca que supõe a utilização total do ser humano. É preciso sacrificar tudo ao ídolo, também a própria alma. Por isso, este culto consumista representa uma forma de ampliação extraordinária do poder. Se o poder econômico é capaz de converter o ser humano em todas as suas dimensões numa mercadoria, de determinar suas dimensões sociais, identitárias e, finalmente, espirituais a partir da lógica da mercadoria, trata-se, então, de um poder com pretensões absolutas, de um poder totalitário.

IHU On-Line - Neste sentido, como pode o biopoder ajudar-nos a compreender a elaboração ideológica do progresso como o mais alto nível da civilização ocidental?

José Antonio Zamora - O conceito de biopoder pretende dar conta de uma transformação nas práticas e tecnologias do poder. Caracteriza-se por bem conformar a vida humana sob a forma do indivíduo (anatomopolítica) ou da população (biopolítica). Seu objetivo não é inibir, dobrar ou aniquilar as forças vitais, senão aperfeiçoá-las, enriquecê-las e estimulá-las de modo continuado, com vistas à sua otimização e economização. Não cabe dúvida de que, independentemente de que a formação do dispositivo biopolítico e a da economia política capitalista não tenham entre si uma relação causal, existe entre ambas uma conexão sistemática, com efeitos históricos muito poderosos. A otimização e a economização das forças vitais possuem uma significação decisiva para o aumento da produtividade da força de trabalho no interesse da acumulação continuada do capital e vice-versa. A criação de uma população governável com vistas a uma otimização dos resultados gerais na criação da riqueza das nações vai de mão dada com a ideia de certa mecânica natural intrínseca aos processos econômicos, que harmoniza e otimiza o conjunto através do conflito de interesses e a competitividade de todos contra todos. As técnicas de governo hão de garantir o livre funcionamento dessa mecânica natural. Como é sabido, esta concepção da governabilidade liberal se serve de ideias reguladoras, como a da “mão invisível” (Adam Smith ), a “insociável sociabilidade” e a “intenção da natureza (I. Kant ) ou a “astúcia da razão” (G. W. F. Hegel ), ideias fundamentais na interpretação da história como progresso. Neste sentido, pode-se dizer que esta ideia é um elemento constitutivo da governamentalidade liberal.

Lógica sacrificial

Segundo o conceito moderno de progresso a história transcorre através de um tempo abstrato e o presente, em cada caso, não é mais que um ponto numa linha infinita. Por meio de uma espécie de lógica sacrifical tudo é funcionalizado para a construção de um futuro supostamente melhor que há de instaurar-se mais ou menos infalivelmente. Os acontecimentos, geradores de sofrimentos massivos, perdem irremissivelmente significação para um avanço irrefreável e sem fim de tempo. Porém, este tempo abstrato, constituído em segunda natureza, não só encobre o caráter histórico de sua gênese, para assim poder perpetuar-se melhor, senão que oculta com ele o brilho deslumbrante do supostamente novo: os sofrimentos e catástrofes que, em dito processo, afetam tanto a natureza como os seres humanos. O estabelecido possui o poder de ocultar ao olhar aquilo que foi esmagado e se perdeu, para assim configurar a maneira de perceber a história por meio da “evidência” da marcha vitoriosa do que se impôs em última instância. À injustiça sofrida pelos oprimidos e aniquilados se une a eliminação dos vestígios que poderiam recordá-los. A ideia de progresso é um elemento chave de legitimação ideológica da biopolítica.

IHU On-Line - Qual é a legitimidade em falarmos de pós-humanismo, pós-modernidade, pós-político, pós-histórico, quando sabemos que essas condições são o ápice do processo de aceleração capitalista?

José Antonio Zamora - Apesar da crescente aceleração e da persistência dos mitos modernos do progresso e do avanço histórico, também nos encontramos com discursos não menos influentes sobre o fim da história e, junto com ele, sobre o fim da razão, do sujeito, da política, das ideologias, etc. Um sentimento muito estendido de esgotamento de todas as energias utópicas e uma sensação de que nada realmente essencial muda, de que nada verdadeiramente novo pode acontecer, de que nos encontramos ante um horizonte histórico incontornável, parecem servir de pretexto a ditos discursos que põem o acento nas cristalizações e nas estruturas subjacentes à mudança, bem como na experiência subjetiva que refletia a metáfora weberiana da “jaula de aço”. Frente à modernidade “clássica” parece emergir uma modernidade “líquida”, “reflexiva”, “segunda”, na qual a aceleração dá um giro em pura simultaneidade do diverso. O que, à primeira vista, parece um paradoxo da experiência do tempo na modernidade tardia, tem a ver com os fatores econômicos, culturais e sociais que determinam a transformação de suas estruturas temporais e a dialética que lhes é inerente. Por isso, resulta necessário clarificar qual ou quais são os fatores determinantes (inovação técnica, lógica econômica, diferenciação social, mudanças culturais) de dita transformação e as relações que existem entre eles.
A aceleração, à qual estão submetidas todas as mudanças sociais, produz uma sensação de velocidade irrefreável. Porém, ao mesmo tempo os acontecimentos e fatos submetidos a essa velocidade carecem de duração e, em certo sentido, de consequências duradouras. Vivemos, pois, com a sensação de que nada essencial muda, de que não sucede nada essencialmente novo. Como constata Baudrillard , “a história não chega a ocorrer, (…) a história se funde em seu efeito imediato, se esgota em seus efeitos especiais, implode em atualidade.” Por isso, do ponto de vista dos indivíduos, se impõe uma sensação de paralisação e imobilidade, de destemporalização por acumulação e multiplicação dos acontecimentos, possibilidades, vivências, ações, etc., todas de caráter episódico, fugazes, desconexas, descontextualizadas, que apenas deixam vestígio e podem escassamente ser integradas numa sequência biográfica capaz de dotá-las de sentido. A novidade e a mudança acelerada parecem confundir-se com um eterno retorno do mesmo, ou, para empregar uma imagem usada por Paul Virilio , um redemoinho que não sai do lugar.

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