Edição 342 | 06 Setembro 2010

A importância da Segunda Escolástica no Ocidente

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Márcia Junges e Alfredo Culleton - Tradução Benno Dischinger

Nossa formação histórica e cultural recebeu influência decisiva da Segunda Escolástica, analisa o filósofo Santiago Orrego. Paradoxalmente, sua importância “sociologicamente mensurável” é marginal

Paradoxalmente, a importância da Segunda Escolástica é quase que “inversamente proporcional à atenção que de fato recebe esse pensamento em nossos países, e algo semelhante cabe dizer de Espanha e Portugal. Creio que isso tem a ver com o fato de que a Segunda Escolástica foi predominantemente ibérica e também com nosso lamentável complexo de inferioridade intelectual, que nos leva a estar sempre mirando as novidades que vem do Norte – o resto da Europa e Norte-américa”. A reflexão é do filósofo chileno Santiago Orrego, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Em sua opinião, a importância dessa corrente filosófica é decisiva para nossa formação histórica e identidade cultural. Mas completa: “Se me é perguntado pela importância, digamos, ‘sociologicamente mensurável’, que o estudo da Segunda Escolástica tem em nossos países, diria que é marginal, muito inferior ao que mereceria em razão de sua relevância histórica e, em minha opinião, também em relação com o que tem de valor atual para ensinar-nos”.

Santiago Orrego é professor do Instituto de Filosofia da Universidade Católica do Chile. É doutor em Filosofia pela Universidade de Navarra com a tese Historia de filosofia del Renacimiento y Edad Media.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual é a importância da Segunda Escolástica na América Latina?

Santigo Orrego -
São muitas as vertentes a partir das quais se pode abordar esta pergunta. Talvez seja adequado começar por ampliá-la e perguntar-se: qual é a importância da Segunda Escolástica no Ocidente – em seu pensamento e em suas instituições -, cultura que integra de maneira preponderante a identidade latino-americana? Seria difícil exagerar essa importância, inclusive para aqueles movimentos intelectuais que se apresentam a si mesmos como reações contra ela. Pode citar-se, a este respeito, o parágrafo 6 de Ser e tempo de Martin Heidegger que se refere à obra mais emblemática da Segunda Escolástica: “o essencial da filosofia grega passa à metafísica e à filosofia transcendental da época moderna pela via das Disputationes metaphysicae de Francisco Suarez e determina, no entanto, os fundamentos e fins da lógica de Hegel ” (Ser e tempo, § 6, p. 22 [da Ed. De Niemeyer]).

O pensamento do próprio Descartes , que pretendia filosofar “sem pressupostos” e é habitualmente considerado como o pai da filosofia moderna, se demonstrou que está marcado por uma grande dependência com referência às propostas filosóficas e teológicas dos escolásticos que precederam imediatamente. O mesmo caberia dizer de Malebranche , Spinoza, Leibniz e outros. Aos trabalhos pioneiros de Gilson e Freudenthal seguiram muitos outros até a atualidade, os quais não fizeram mais do que confirmar e aprofundar a hipótese e que seria demasiado longo referir aqui. E isto não só em questões de metafísica, senão também e muito especialmente na área da filosofia jurídica e política, incluindo alguns dos teóricos mais importantes da Ilustração. Ambas as vertentes confluíram na independência dos países da América.
Portanto, se é verdade que nossa compreensão de nós mesmos e da realidade está muito condicionada pelas “teses implícitas” que assumimos junto com o aprender uma linguagem, que essas “teses implícitas” derivam de uma história cultural na qual não há verdadeiros saltos de qualidade e, finalmente, se é verdade que essas teses só podem tornar-se explícitas – controláveis e criticáveis, portanto, - mediante uma reconstrução de sua história – a história dos conceitos é verdadeira filosofia, diz Gadamer  -; se tudo isso é verdadeiro, resulta que não podemos saber realmente o que ou quem somos nós mesmos, se não é examinado diretamente – entre outras coisas – o pensamento da Segunda Escolástica.


Paradoxo

Pois bem, esta importância é quase inversamente proporcional à atenção que de fato recebe esse pensamento em nossos países, e algo semelhante cabe dizer de Espanha e Portugal. Creio que isso tem a ver com o fato de que a Segunda Escolástica foi predominantemente ibérica e também com nosso lamentável complexo de inferioridade intelectual, que nos leva a estar sempre mirando as novidades que vem do Norte – o resto da Europa e Norte-américa. Também se relaciona com os combates ideológicos – sem querer usar a palavra em sentido pejorativo – que até não muito tempo atrás vinculava a escolástica com o tradicionalismo católico. Agora que isto está mais distante no tempo, se torna possível abordar este campo de estudo com mais serenidade e objetividade: sem objetivos apologéticos nem iconoclastas mais ou menos conscientes, reconhecendo suas grandezas e suas limitações.

Em resumo: se me é perguntado pela importância da Segunda Escolástica para nossa história e para a formação de nossa identidade cultural, eu diria que é decisiva. Se me é perguntado pela importância, digamos, “sociologicamente mensurável”, que o estudo da Segunda Escolástica tem em nossos países, diria que é marginal, muito inferior ao que mereceria em razão de sua relevância histórica e, em minha opinião, também em relação com o que tem de valor atual para ensinar-nos.


IHU On-Line - E no Chile, qual é a influência desta vertente filosófica?

Santigo Orrego -
Não creio que, neste aspecto, a situação do Chile seja muito distinta da do resto dos países da América Latina. Desde logo, não há ou quase não há pensadores nem acadêmicos que podem catalogar-se de “escolásticos”. Trata-se de um modo de fazer filosofia e de estruturar o pensamento que simplesmente já não se pratica e que não creio que seria nefasto querer reabilitar em seus modos e em muitas de suas ideias. Sim, há acadêmicos que estudam os escolásticos, porém muito mais os medievais do que os do Renascimento ou do Barroco (períodos nos quais se inscreve a chamada Segunda Escolástica). Destes, muitos o fazem a partir de um enfoque puramente histórico. Também há quem busque nos escolásticos ideias atuais, que consideram e defendem como verdadeiras; destes, a maioria são tomistas que, por outro lado, tendem a desprezar os escolásticos posteriores. E não só os de “escolas rivais” – seguidores de Duns Escoto , Guilherme de Ockham  ou Francisco Suarez, para citar os principais -, senão especialmente a escola tomista tradicional.

Creio que, pela influência de alguns tomistas do século vinte, como Etienne Gilson  ou Cornélio Fabro , se generalizou entre eles a ideia de que a escola tomista - quase em bloco - caiu em esquecimento ou incompreensão do “autêntico pensamento” de Santo Tomás, ao qual concebem quase exclusivamente em torno ao ato de ser ou esse (em latim, pois já nem sequer se atrevem a traduzi-lo, para não deformá-lo...). E toda a escolástica pós-tomista, seja de que século for, se considera de saída como “decadente” e se olha para ela com receio. Se me é permitido expressar aqui minha opinião sem poder fundamentá-la, creio que se trata, sobretudo no caso de Fabro, de um remedo um tanto torpe do diagnóstico heideggeriano do “esquecimento do ser” no pensamento ocidental. Com esse gesto se pretendia dar atualidade ao pensamento de Santo Tomás, eximi-lo da crítica de Heidegger e, de passagem, talvez como motivação inconsciente, dar peso teórico e apoio no prestígio do pensador alemão ao programa da Aeterni Patris de Leão XIII. Porém creio que em Santo Tomás há muito mais do que o esse; que muitas de suas concepções filosóficas originais não dependem para nada dessa doutrina; e que a escolástica – primeira ou segunda – tem valor muito além do tomismo.


IHU On-Line - Qual é o impacto, a influência política da Segunda Escolástica na formação dos países latino-americanos?

Santigo Orrego -
Convém distinguir aqui, como é natural, duas épocas (embora eu saiba que o Brasil tem um esquema distinto): o período colonial (incluindo a conquista) e o das repúblicas independentes. O principal foco de desenvolvimento da Segunda Escolástica foi a Universidade de Salamanca. Todo o movimento foi marcado pelos ensinamentos de Francisco de Vitoria entre 1526 e 1546, o qual criticou muito valentemente as justificações que se davam para a conquista espanhola da América. Não só defendeu a racionalidade dos aborígenes, senão também a plena validez de suas instituições políticas; com matizes relevantes negou os direitos políticos da coroa de Castilla sobre as terras descobertas e declarou ilegítimas as guerras de conquista. E não era um personagem irrelevante, senão o principal catedrático da principal universidade espanhola e, nesse momento, talvez também da Europa. Suas doutrinas, desenvolvidas por seus discípulos, chegaram a ser quase universalmente aceitas e de fato chegaram a ser recolhidas nas legislações espanholas referentes à América. É verdade que a obediência a essas leis foi limitada, porém, de fato, salvaram vidas e evitaram ou desfizeram escravidões. Poderia estender-me muito sobre este ponto, ilustrando-o com casos históricos concretos, porém creio que o espaço não o permite. O certo é que, sem os pensadores de Salamanca, teriam morrido muito mais índios e nossos povos seriam muito menos mestiços.

Outro capítulo é o da vida das colônias espanholas e portuguesas já estabelecidas. Muitos dos que assumiam cargos no governo e na administração americana, civil ou eclesiástica, se formavam no pensamento da Segunda Escolástica – pensamento jurídico, filosófico, político, teológico e até econômico – e, desse modo, essas idéias iam configurando as instituições. Essas idéias também empapavam a vida cultural e artística. A arte do Barroco se caracterizou como “conceitual”, e os conceitos que se encarnavam na arte se desenvolviam nas grandes universidades ibéricas e americanas. Por isso, Octavio Paz  pôde dizer que a literatura do barroco hispânico foi a única verdadeiramente filosófica, no sentido de que os conceitos e debates filosóficos “acadêmicos” – e também teológicos – tinham amplo cabimento, por exemplo, nas poesias, nas novelas e nas obras de teatro. Algumas delas dependiam essencialmente desses argumentos. A vida de nossos países na época colonial, em quase todas as suas áreas, seria incompreensível sem essa retaguarda intelectual.

Sincretismo de ideias

O surpreendente é que as mesmas ideias políticas que se desenvolveram na Espanha e em Portugal nos séculos XVI e XVII e que eram moeda corrente nas universidades americanas, foram a principal base de justificação da independência dos países americanos. Certamente, o que dominava em começos do século XIX na América era um sincretismo entre as ideias da escolástica e as da Ilustração, - as quais também tiveram papel relevante, - porém, quase tudo o que se fez politicamente pela independência podia justificar-se perfeitamente a partir da filosofia de Francisco de Vitoria, Domingo de Soto, Francisco Suarez e de seus discípulos europeus e americanos, e, de fato assim ocorreu. Estou pensando agora num manifesto político firmado sob o pseudônimo de José Amor de la Pátria, intitulado Catecismo político-cristiano, que se difundiu amplamente no Chile em 1810 e habitualmente se considera um antecedente relevante de nossa independência ou, quando menos, um bom reflexo das ideias que guiavam os independentistas. Outros textos semelhantes se difundiram em outros países da América. Não depende, em suas propostas, nem de Locke  nem de Rousseau  nem de Montaigne, nem dos pais da pátria norte-americanos, senão dos autores que nomeei pouco antes. Por exemplo, as idéias, bem perfiladas e defendidas, de que a autoridade dos governantes provém de Deus, porém através do povo: que as leis humanas só valem para aqueles que lhe deram seu consentimento, direto ou indireto; que, por uma causa grave, existe o direito de rebelião e que o povo pode legitimamente revocar a autoridade do monarca: que, em ausência do governante legítimo – pensemos em Fernando VII  preso por Napoleão -, a potestade retorna ao povo para que este eleja seu governante e, eventualmente, outra forma de governo; que, em caso de tirania e sob certas condições, é legítimo inclusive dar morte ao tirano; que há tirania quando o governante não age para o bem dos governados. E, já Vitoria e Soto denunciavam que os espanhóis não estavam governando para o bem dos povos americanos submetidos. Enfim: tudo isso se encontra nesses pensadores, sobre os quais não recaía nenhum tipo de suspeita sobre sua ortodoxia doutrinal católica. Desse modo, um partidário da independência e da República não tinha por que sentir-se em conflito com suas convicções religiosas – nessa época, na América Latina, fundamentalmente católicas.
Dos textos destes autores se poderiam extrair princípios bastante iluminadores sobre questões de grande atualidade. Não é em vão que Francisco de Vitoria é considerado por muitos como o pai do ireito Internacional moderno. Outros assinalam Hugo Grócio, porém a grande dependência a este respeito de Vitoria ou Suarez, por exemplo, está muito bem documentada. Abordarei esta questão com exemplos concretos. Pensemos, por exemplo, em suas doutrinas sobre a guerra e suas possíveis justificações; são muito mais radicais e matizadas do que as que se puseram em jogo, por exemplo, nos debates sobre a invasão dos Estados Unidos ao Iraque, que parece chegar ao seu fim. Ela não tem a simplicidade nem de um pacifismo hippie, nem de um pragmatismo “realista”, nem de uma ingênua missão divina de lutar péla liberdade dos povos.

Outro dilema político e jurídico, muito vinculado ao anterior: Há certo tempo, o tribunal constitucional da Alemanha declarou inconstitucional a disposição pela qual se autorizava às Forças Armadas derrubar um avião com passageiros do qual haveria certeza que fora raptado e que se utilizaria como projétil, como ocorreu com as Torres Gêmeas em 2001. A solução se apoiou fundamentalmente na filosofia moral de Kant e no pressuposto que derrubar o avião implicava considerar os passageiros inocentes como “coisas”, como simples meios e não como fins – negando, portanto, sua dignidade que a constituição alemã declara “inviolável”. Este é certamente um dilema tremendo. Porém, ao ler-se a fundamentação da decisão do tribunal, se vê que não se concebe uma alternativa entre o consequencialismo ético, que simplesmente põe na balança as consequências desejáveis de uma ação, e a moral da dignidade pessoal incondicionada, que não admite cálculos. Pois bem: um dilema parecido formulou para si Vitoria, há quase quinhentos anos, sob uma fórmula distinta: é lícito bombardear um barco de guerra turco no qual se encontram prisioneiros cristãos? Não se trata aqui de propor a solução dada por Vitória; mas, a mim resulta claríssimo que ele apresenta razões de peso não consideradas na discussão atual, que poderiam ser esclarecedoras e segundo as quais derrubar o avião seqüestrado não implicaria em considerar os reféns como simples meios sujeitos a cálculos de benefícios.

Em meu país me tocou intervir em alguns debates políticos, na mídia, como a determinação do salário justo – que se começou a chamar “salário ético” – ou a valoração moral dos saques que se produziram após o terremoto de 27 de fevereiro, ou o significado metafísico ou teológico que poderia ter o achado “milagroso” de 33 mineiros enterrados depois de 17 dias. Procurei dar realce a ideias emprestadas de meus amigos da Escola de Salamanca e elas têm sido consideradas aportes valiosos para o debate. E não tenho dúvidas de que aqui há muitas luzes que podem orientar-nos, porém nós, na América do Sul, as consideramos muitas vezes como alimentos para roedores nos fundos de nossas bibliotecas. Espero que o próximo colóquio ajude a mudar esta situação.

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