Edição 342 | 06 Setembro 2010

Os “velhos escolásticos” continuam presentes

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Márcia Junges e Alfredo Culleton - Tradução Benno Dischinger

Em temas como Metafísica, Ética e Política, os filósofos da Escolástica seguem tendo relevância, pontua Luís Alberto De Boni. Universidades brasileiras foram instituídas tardiamente porque Portugal assim o quis

“Movimento filosófico e teológico, que teve seu apogeu nos séculos XVI e XVII, dentro das universidades, principalmente da Espanha e Portugal, mas também da Itália e de alguns outros países. Partindo do estudo dos escolásticos medievais, principalmente de Tomás de Aquino, esses autores procuravam dialogar com a sociedade de seu tempo na qual haviam surgido alguns fatos novos, como as descobertas científicas na área da Física, que haveriam de culminar com os nomes de Copérnico (+1543), Galileu (+1642) e Newton (+1727); as descobertas marítimas que levaram os europeus a contatar novas civilizações, nas Américas e no Oriente; e a Reforma protestante”. Assim o filósofo gaúcho Luís Alberto De Boni define a Escolástica. Ele analisa, também, os motivos pelos quais a formação das universidades brasileiras foi tão tardia, comparativamente à Espanha e Portugal. De acordo com ele, “no período colonial não tivemos universidades porque Portugal não as quis instituir”. E provoca: “Se Suárez, em vez de ser um espanhol católico, fosse um alemão luterano, ou um holandês calvinista, ou um inglês anglicano, seria muito mais citado e o apresentariam como um dos grandes filósofos da História, o que ele, de fato, foi”. Em seu ponto de vista, “em questões de Metafísica, de Ética e de Política aqueles velhos escolásticos estão presentes” até hoje. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

De Boni é graduado em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí e em Telogia pela Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindisi. É doutor em Teologia pela Universidade de Münster (Westfalische-Wilhelms), orientado por Johann Baptist Metz. É pós-doutor pelas Universidades Alberto Magno e Bonn, ambas na Alemanha. Publicou e organizou mais de trinta obras, dentre as quais citamos: Lógica e linguagem na Idade Média (Porto Alegre: Edipucrs, 1995); Guilherme de Ockham (Porto Alegre: Edipucrs, 2000) e A ciência e a organização dos saberes na Idade Média (2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2000).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Poderia situar a Segunda Escolástica no Brasil?

Luiz Alberto De Boni -
Creio que convém, inicialmente, explicar o que foi a assim chamada Segunda Escolástica. Tratou-se de um movimento filosófico e teológico, que teve seu apogeu nos séculos XVI e XVII, dentro das universidades, principalmente da Espanha e Portugal, mas também da Itália e de alguns outros países. Partindo do estudo dos escolásticos medievais, principalmente de Tomás de Aquino , esses autores procuravam dialogar com a sociedade de seu tempo na qual haviam surgido alguns fatos novos, como as descobertas científicas na área da Física, que haveriam de culminar com os nomes de Copérnico  (†1543), Galileu  (†1642) e Newton  (†1727); as descobertas marítimas que levaram os europeus a contatar novas civilizações, nas Américas e no Oriente; e a Reforma protestante.
Os missionários que vieram para o Brasil haviam recebido uma formação fundamentada na Segunda Escolástica. Aqui, eles não precisaram muito debater noções da nova ciência, nem combater os protestantes, mas foi de suma utilidade o que aprenderem em questões de Ética, como, por exemplo, a respeito da dignidade dos indígenas, que não poderiam ser escravizados. Infelizmente, com relação à escravidão negra, não fizeram - ou não conseguiram fazer - o que seria de esperar.


IHU On-Line - Como se deu a formação das universidades no Brasil?

Luiz Alberto De Boni -
A universidade é uma instituição tardia no Brasil. Se olharmos para a América Espanhola, constataremos que já desde os primeiros tempos de colonização foram sendo criadas universidades. Assim, a Universidade de São Marcos, em Lima, foi fundada em 1551. Universidade Autônoma de Santo Domingo, na República Dominicana, teria sido fundada antes, em 1538, mas só mais tarde recebeu a documentação real; a Universidade do México, em 1551; a Universidade Santo Tomas em Bogotá, em 1580; a Universidade de Córdoba, na Argentina, em 1621; a Universidade Maior de São Francisco Xavier em Chuquisaca, na Bolívia, em 1624; a Universidade de Rosário, Argentina, em 1654; a Universidade de São Carlos de Guatemala, em 1676; a Universidade de Havana em 1721; a Real Universidade de São Felipe, Chile, em 1747.

Como se pode ver, cerca de 250 anos após o descobrimento, os espanhóis já haviam criado 10 universidades. Isso significou muito para aquela época, como se constatou quando, no início do século XIX, aconteceu a independência política da América Espanhola: havia naquelas jovens nações uma elite intelectual apta a assumir a direção dos negócios públicos.


“Universidade do Brasil”

No Brasil, o caso foi bem diferente. Estou falando sério, não é piada o que vou contar a respeito de nossa primeira universidade. Ela surgiu em 1922. Naquele ano, comemorava-se o centenário da independência e, entre os convidados para os festejos, encontrava-se o rei Alberto I, da Bélgica, um monarca que se transformou em mito, devido à luta em defesa da pátria invadida pela Alemanha, quando da Primeira Guerra Mundial. Entre outras coisas, pensou-se em conferir a ele título de doutor honoris causa. Todos concordaram com a ideia, mas então alguém deve ter observado que, para tanto, era necessário haver uma universidade. Então, às pressas, as diferentes faculdades existentes no Rio de Janeiro foram reunidas, constituindo a “Universidade do Brasil”. E a primeira e honrosa missão de nossa primeira universidade foi a de conferir um diploma de doutor honoris causa.

Na verdade, a primeira universidade brasileira, de fato, foi a USP, a Universidade de São Paulo. Esta também possui uma história interessante. Como se sabe, em 1930 Getúlio Vargas  chegou ao poder no comando de uma revolução dirigida principalmente contra o estado de São Paulo, acusado de se haver “adonado” da República. Em 1932, os paulistas reagiram também com uma revolução, que chamaram de constitucionalista (pois Vargas estava governando sem constituição). Na realidade, era a tentativa de uma elite conservadora e superada voltar ao poder. Mas, felizmente, foram derrotados. Por que felizmente? Em primeiro lugar, porque o passado não voltou ao poder; em segundo, e principalmente, porque depostas as armas, os vencidos se reuniram para pensar o futuro do Estado e, entre outras coisas, criaram, em 1936, uma universidade, que teve entre os organizadores o antropólogo Paulo Duarte, a quem Getúlio enviou duas vezes para o exílio e, depois, em 1969 - creio por ser inteligente demais – foi cassado pelos militares. A França tinha, na época, uma grande ascendência cultural sobre o Brasil – Paul Claudel  e Darius Millaud  foram adidos culturais no Rio de Janeiro. Por isso a USP surgiu dentro de um modelo francês e diversos professores franceses se encontram entre os primeiros que lecionaram na nova universidade (Claude Levy-Strauss  foi um deles).


Reforma do ensino superior

Sem dúvida, alguns leitores poderão reclamar ao lerem estas linhas. Os paranaenses, por exemplo, vão dizer, que a universidade deles foi fundada em 1912. E é verdade. Aconteceu, porém, que, na visão política do então governo federal, ela não devia existir e, por isso, em 1920, foi dissolvida em suas faculdades, só voltando a ser universidade após a redemocratização de 1945. Por reunião de faculdades foram criadas, antes da USP, algumas que hoje são universidades federais, tais como a UFMG, em 1927, e a UFRGS, em 1934. A partir de 1941, com a fundação da PUC-Rio, surgem as universidades particulares.
Cabe mencionar, enfim, que nossas universidades, tal como estão funcionando hoje em dia, são fruto da reforma do ensino superior empreendida pelo governo militar. Em 1964, após o golpe de estado, o governo percebeu que não conseguiria superar o gargalo que estrangulava a procura pelo ensino superior. Por isso, facilitou a criação de universidades particulares que, em pouco tempo, duplicaram o número de universitários no país. Depois, dentro do célebre e discutível acordo MEC-USAID, reformulou-se o sistema universitário: entre outras coisas, suprimiram-se as cátedras, foi criado o tempo integral, organizou-se o plano de carreira docente, foi instituída e regulamentada a pós-graduação.


IHU On-Line - Por que essa formação é tão tardia em nosso país?

Luiz Alberto De Boni -
No período colonial não tivemos universidades porque Portugal não as quis instituir. E tinha lá seus motivos. Portugal era uma nação pequena e relativamente pobre em seu solo, mas tinha administradores de visão. Eles sacrificaram os domínios no Oriente, entregando-os à Holanda e à Inglaterra, mas salvaram para si a mais rica e lucrativa colônia da época: o Brasil.
A extensão e a riqueza da colônia poderia, porém, transformar-se em tentação para os habitantes dela que, um dia, seriam levados a sonhar com a independência, como, de fato, aconteceu no caso da Inconfidência Mineira . Contra este perigo foram tomadas certas medidas, entre as quais a de impedir a fundição de ferro (numa região que encontrava o minério à flor da terra e tinha escravos que, na África, haviam aprendido a fundi-lo), a de proibir a impressão de livros e a tecelagem, e a de manter um baixo nível cultural, tanto não promovendo o ensino primário como impedindo a criação de universidades.
O pouco de cultura que a colônia conheceu esteve asilado em colégios religiosos, principalmente os dos jesuítas. Infelizmente não temos muita documentação a respeito aqui no Brasil, mas é de supor que em Portugal, no Arquivo da Torre do Tombo, esteja guardado material importante dos colégios da época. Para todos os efeitos, é bom recordar que o padre Antônio Vieira , uma das mais brilhantes cabeças de nossa história, fez todos seus estudos, inclusive de Teologia, no colégio dos jesuítas, na Bahia.


Riqueza financeira, pobreza cultural

Quando a corte portuguesa, no início do século XIX, fugindo das tropas de Napoleão, chegou ao Brasil, pôde ver de perto a situação calamitosa da colônia, sem dúvida a mais rica financeiramente e a mais pobre culturalmente de todo o mundo. Para suprir as necessidades mais agudas, foram então criados dois cursos de Direito, um em Recife e outro em São Paulo, e duas faculdades de Medicina, uma no Rio e outra em Salvador. Com isso, procurava-se formar administradores nativos da coisa pública e garantir um mínimo de assistência médica à população. E assim o país se tornou independente e conheceu quase 70 anos de império, tempo durante o qual quase nada se fez em favor do ensino superior.

Veio, enfim, a República, e novamente a desgraça. Os positivistas, com a queda da monarquia, talvez não obtiveram tanto espaço político como esperavam, mas foi importante sua contribuição ideológica. Baseados na doutrina comteana , eles defendiam a obrigação de o governo abrir escolas primárias, porque, a seu modo de ver, se tratava de um ensino sem conteúdo ideológico. Ao mesmo tempo, porém, defendiam que o poder público não devia se imiscuir no ensino superior, porque este era ideológico, devendo ser promovido por grupos particulares que por ele se viessem a interessar.
Graças a essas ‘sábias’ medidas históricas, fomos criar nossas universidades 370 anos depois que os espanhóis fundaram as deles em continente americano. E só a partir das décadas de 1970 e 1980 do século passado, isto é, há 30-40 anos, é que o fluxo contínuo de formação de mestres e doutores passou a funcionar no Brasil.

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