Edição 340 | 23 Agosto 2010

Nem melhor, nem bem: viver em plenitude

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Moisés Sbardelotto

 

IHU On-Line – Em uma sociedade globalizada e mundializada, como o Bem Viver nos ajuda a repensar a noção de indivíduo e de comunidade?

Esperanza Martínez – O Sumak Kawsay é conjugado no plural. Para os povos indígenas, a plenitude é construída na comunidade, diferentemente do culto ao individualismo próprio do capitalismo. A consciência da responsabilidade individual é importante, mas não suficiente. Para que seja realmente transcendente, requerem-se mudanças coletivas. Mudanças que recuperem os saberes, superem as desigualdades, construam-se na diversidade e no respeito. Que reconheçam, por exemplo, que, na regeneração e na manutenção da vida, são as mulheres, as agricultoras e as índias que mantêm esses ciclos em condições de absoluta desigualdade. Mas também é necessário reconhecer que, mesmo quando o capitalismo está globalizado, os povos indígenas não vivem dele, mas se mantiveram graças a suas práticas comunitárias e a relações não capitalistas de produção e consumo. Como diria Bolívar Echeverría, “viver em e com o capitalismo não significa viver para e pelo capitalismo”.

IHU On-Line – A senhora diz que, para os povos indígenas, a Pachamama é um sujeito com direitos de existência. As políticas públicas podem defender esses direitos?

Esperanza Martínez – Com restrições, quando há ameaças de danos permanentes ou graves aos ecossistemas. Aplicando o princípio de precaução nas atividades que podem ter efeitos negativos ao ambiente. Priorizando atividades criativas frente às destrutivas. Respeitando o direito dos povos aos seus territórios. Aplicando processos de consulta vinculantes. Há muitas ferramentas legais que podem direcionar as políticas públicas. Todas as que eu mencionei estão em nossa constituição. Mas, se essa nova noção de direitos não for respeitada, sempre podemos recorrer ao direito à desobediência, à resistência, à vigilância e a prestação de contas. Não é que as políticas públicas possam defender esses direitos: devem defender esses direitos, senão é preciso mudá-las.

IHU On-Line – Na cosmovisão indígena, incluindo o Bem Viver, como se dá a relação com o sagrado e o transcendente?

Esperanza Martínez – Para os índios, a natureza está impregnada do sagrado. Os rituais, as restrições são o resultado do conhecimento e do respeito à natureza. Quando se bebe chicha, o primeiro gole é dado à terra. Os mitos, lendas e rituais que foram proscritos pelas religiões dominantes são agora reconhecidos como práticas de convivência pacífica e harmônica.

Sem dúvida, na cosmovisão indígena há muitos saberes que, sendo expressões do sagrado e do transcendente, revelam um profundo conhecimento científico da vida, de seus ciclos naturais, de suas reações de adaptação e de transformação. É um pensamento construído por gerações que aprenderam a viver na e com a natureza e para e por ela.

IHU On-Line – O Bem Viver, recentemente, entrou no debate político sobre as Constituições do Equador e da Bolívia. O que significa o resgate dessa ideia no atual momento político e histórico de América Latina?

Esperanza Martínez – Foi dito que, na América Latina, estamos saindo da longa noite neoliberal, que inclui a decomposição dos Estados e a privatização de tudo... Foi dito que parte dos ventos de mudança é recuperar o papel dos Estados e tirar o poder das transnacionais. Nesse contexto, os movimentos sociais de vários países deram passos importantes e conseguiram colocar novas agendas. Mas, claro, o poder, no sentido amplo do que implica, continua atuando e acomodando-se às novas circunstâncias. O debate político em torno do Sumak Kawsay implica, ou deveria implicar, pensar novamente o modelo econômico. Não é suficiente controlar as transnacionais (porque elas podem mudar sua forma de atuar e utilizar as próprias empresas nacionais). É preciso passar de um modelo baseado na ideia de exploração da natureza para um de convivência, de sustentabilidade, de soberanias, de solidariedade. O Sumak Kawsay convida a repensar o padrão tecnológico baseado no petróleo, no monopólio da tecnologia, e recuperar, reconstruir ou inventar uma tecnologia que construa soberania. Mas, do ponto de vista do debate político, acredito que é central o reconhecimento do sujeito histórico que construiu e defendeu essas posições: os povos indígenas. Isso deveria significar um giro de timão completo, porque, de uma prática de invisibilização, desprezo ou medo, se deveria passar para um verdadeiro diálogo intercultural. No entanto, na prática, mesmo agora que temos esse presente do Sumak Kawsay e os direitos da natureza, os povos ou organizações, não só da América Latina, mas também do mundo inteiro, quando defendem essas visões, continuam sendo reprimidos e criminalizados. Ainda falta muito a ser feito.

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