Edição 340 | 23 Agosto 2010

Sumak Kawsay: uma forma alternativa de resistência e mobilização

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Moisés Sbardelotto

IHU On-Line – Na América Latina, vivemos em regiões com uma natureza muito rica e abundante. Como o Bem Viver se posiciona diante da noção de abundância? A acumulação tem sentido?

Pablo Dávalos –
A natureza não é rica nem abundante, a não ser que se pense em termos monetários e estratégicos. Se abandonarmos a visão mercantil, monetária e estratégica, a natureza deixa de ter “valor”. Então, o valor que pode ser atribuído à natureza está em função do modelo de sociedade que se quer construir. A natureza é a condição de possibilidade para a vida humana, e, em tal virtude, seu relacionamento com as sociedades humanas depende da forma como elas se visualizam e se projetam no futuro. Uma sociedade mercantil sempre dará valor à natureza e a converterá em parte de suas rendas. Ao mesmo tempo, a natureza será o receptáculo de todos os seus desperdícios, porque não existe nenhuma consideração com respeito a ela que não esteja implícita na noção de valor.

Em sociedades diferentes, em que a noção de valor não existe, a natureza se converte em uma parte da vida dessa sociedade. A natureza se entrelaça de tal forma que está presente em cada ação que essa sociedade gera. Não existe uma separação entre sociedade e natureza. Isso não significa um retorno às noções de bom selvagem do Iluminismo europeu do século XVIII, mas uma consideração diferente no que diz respeito à natureza. Uma sociedade pode chegar a ser altamente tecnológica e produtiva, integrando a natureza em sua própria dinâmica interna.

O conceito de Sumak Kawsay permite exatamente isto: uma nova visão da natureza, sem ignorar os avanços tecnológicos nem os avanços em produtividade, mas sim projetando-os ao interior de um novo contrato com a natureza, em que a sociedade não se separa desta, nem a considera como algo externo ou como uma ameaça ou como o Outro radical, senão como parte de sua própria dinâmica, como fundamento e condição de possibilidade de sua existência no futuro.

IHU On-Line – Em uma sociedade globalizada e mundializada, como o Bem Viver entende a noção de indivíduo e de alteridade?

Pablo Dávalos –
A noção de indivíduo é uma construção política da burguesia. Os indivíduos sempre estiveram condicionados por relações de família, de comunidade, de sociedade. Seu senso de individualidade sempre esteve na perspectiva de pertença a uma comunidade determinada. Os indivíduos sempre buscam referentes de sua identidade nos demais. O indivíduo só e atomizado do discurso liberal nunca existiu na história. O indivíduo separado de sua comunidade é uma criação da burguesia. As relações de poder que esta gera atuam justamente sobre os indivíduos para fragmentar qualquer solidariedade que estes possam gerar com sua comunidade e sua sociedade. A burguesia criou o mito de Robinson Crusoé no século XIX para fundamentar e legitimar as relações de poder que estava criando.

A noção que dá conta dessa imposição do poder sobre os indivíduos e de sua fragmentação consta na teoria econômica moderna como homo economicus (homem econômico), que é o conceito de base para a moderna teoria econômica do consumidor e que serve de marco analítico para compreender a economia capitalista em seu conjunto; e a noção de cidadão como um indivíduo que assinou embaixo de um contrato social para criar o Estado moderno.

Tratam-se de metáforas fundantes que só têm relação e explicação no interior do projeto burguês de sociedade e de Estado. Nesse projeto, as alteridades como tais não existem. Elas não têm consistência ontológica. Ao não existir, as alteridades radicais são invisíveis. Para serem visíveis, têm de deixar de ser alteridades. Os povos indígenas que estão longe tanto das noções de consumidor quanto das de cidadão, para fazer parte do debate atual, têm que ser visualizados e indicados justamente como aquilo que os violenta e os agride, isto é, como consumidores e como cidadãos.

O Estado plurinacional é a proposta que os povos indígenas criaram para abrir o espaço de possíveis humanos para que a alteridade radical possa caber na conformação dos Estados modernos, enquanto que o Sumak Kawsay é a proposta para que a sociedade possa recuperar as condições de sua própria produção e reprodução material e espiritual.

IHU On-Line – Para a modernidade ocidental, o tempo é visto como algo linear, com o passado atrás, e o futuro à frente. Como se dá a relação com o tempo a partir da noção do Bem Viver?

Pablo Dávalos –
O tempo linear é uma criação da modernidade ocidental e capitalista. Todas as sociedades construíram o tempo de forma cultural, e nessa forma o tempo estende pontes com seu passado e com seu futuro, de modo que ele é circular. Os eventos de agora explicarão e contextualizarão o futuro, porque esses eventos de agora já foram construídos, de certa maneira, no passado.

Na modernidade capitalista, fraturou-se essa relação em que o presente estende vasos comunicantes com seu próprio passado e com a forma de construir seu futuro. Essa fragmentação é a chave para a valorização do capital. Somente no tempo linear as taxas de juro e a acumulação financeira têm sentido e coerência. As taxas de juros antecipam no tempo uma produção futura. A especulação financeira antecipa a produção no tempo em um nível em que fratura essa própria produção. Daí a necessidade das crises como eventos de autorregulação do capitalismo. O tempo linear é também o tempo da valorização do capital. A produção mercantil é feita em um tempo que foi monetarizado e que faz parte do “valor” (em qualquer uma das versões econômicas em que se assuma esse valor).

A introdução do tempo na produção e na circulação mercantil foi um dos aspectos mais desenvolvidos pelo discurso da economia, especialmente a partir da reflexão sobre as taxas de juros e o capital financeiro. Essa introdução do tempo à lógica da acumulação do capital significou sua racionalização e, consequentemente, a disciplinarização das sociedades em função dessa racionalização. Os processos do taylorismo e os de produção just in time do toyotismo expressam exatamente a forma pela qual o tempo é racionalizado como um recurso produtivo. Também dão conta dele a disciplina social da pontualidade, das agendas e dos cronômetros. Se o tempo é um recurso com um valor determinado, então o capitalismo irá otimizá-lo dentro de uma função custo/benefício, e, nessa racionalização, os seres humanos deverão ser funcionais e disciplinados.

O Sumak Kawsay pretende devolver à sociedade a forma pela qual se possa construir um tempo social fora da lógica da acumulação do capital, isto é, devolver aos seres humanos seu tempo pessoal e histórico, para que possam viver suas vidas plenamente. Na lógica do capitalismo e da modernidade isso é impossível. O tempo não pertence aos seres humanos. O tempo faz parte da acumulação do capital. Os seres humanos se resignam ao tempo do capital e sacrificam suas opções pessoais e seu tempo, porque este não lhes pertence. De fato, a moderna teoria do emprego acredita que o que os seres humanos vendem no mercado de trabalho não é sua capacidade de trabalhar, mas sim o uso ótimo do seu tempo. Por isso, ele é denominado, exatamente, emprego (pelo emprego de tempo).

A partir do Sumak Kawsay, é possível problematizar o tempo do capitalismo e propor uma alternativa plausível e possível. Um tempo que pertença à sociedade e em que esta possa se construir sem ter que hipotecar seu futuro na lógica da acumulação capitalista.

IHU On-Line – O que a noção de Bem Viver pode oferecer frente às situações de pobreza, de desigualdade social e de insegurança em que vivemos na América Latina?

Pablo Dávalos –
A pobreza é um fenômeno político que se expressa e se manifesta como um fenômeno econômico. Ela evidencia a forma pela qual a burguesia administra politicamente a escassez. É um fenômeno criado artificialmente pela ordem burguesa existente. A humanidade dispõe atualmente de todos os instrumentos, das tecnologias e inclusive das instituições para resolver o problema da pobreza. Mas essa resolução passa pelo fato de disputar com a burguesia pelo controle da escassez e mudar os parâmetros que qualificam a pobreza.

Se considerarmos a pobreza como um fenômeno econômico, como fazem o Banco Mundial e a cooperação para o desenvolvimento, somente se perpetuarão as condições históricas que a tornam possível e se consolidará o poder da burguesia, sobretudo da burguesia financeira transnacional. Por isso, é fundamental abandonar e disputar essa noção de sentido que quer fazer da pobreza um fenômeno estritamente econômico, em especial a tabela do Banco Mundial do dólar diário.

A noção do Sumak Kawsay põe a pobreza em coordenadas diferentes das econômicas: situa-a em um contexto político, em que a pobreza econômica é a expressão do controle político da escassez. A partir do Sumak Kawsay, a pobreza é resolvida mudando as coordenadas sociais e econômicas da sociedade. Não pode ser resolvida a partir da lógica do homo economicus, porque, à medida que se incrementa a renda econômica, incrementa-se seu desejo de consumir sem levar em consideração a natureza, a ética e a sociedade. Não se trata, portanto, de resolver a pobreza com os mesmos instrumentos do capitalismo, mas sim com lógicas diferentes e que sejam respeitosas para com a própria sociedade e com seu entorno natural.

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