Edição 339 | 16 Agosto 2010

“O latifúndio brasileiro tem origem obscura, muito parecida com a legalização de um roubo”

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Márcia Junges

 

IHU On-Line – Quais são os principais preceitos da propriedade da terra na concepção cristã?

Martinho Lenz – São poucos, mas de grande sabedoria: a terra é dom de Deus e direito de todos. É a aplicação do princípio básico da destinação universal dos bens. A terra é um meio para gerar outros bens, necessários para a vida, não um fim si (não se pode “possuir por possuir”). Sobre toda propriedade pesa uma hipoteca social. Ninguém tem o direito de acumular terras que faltam para garantir a vida e bem estar dos que trabalham na terra. A terra deve ter cuidada e preservada da degradação, para o bem das gerações presentes e futuras. Terras mal adquiridas e mal usadas devem retornar ao uso comum. Devem ser desapropriadas por interesse público. Para um aprofundamento da doutrina cristã sobre a propriedade e sobre a reforma agrária, pode-se consultar a coleção de Temas da Doutrina Social da Igreja, em três cadernos, que a CNBB lançou em 2004-2006, sobre 24 assuntos importantes da ética social, no contexto brasileiro e latino-americano.

IHU On-Line – A economia foi feita para a pessoa humana, e não a pessoa humana para a economia. Como essa premissa nos ajuda a entender o conceito de propriedade e sua função social a partir do ponto de vista cristão?

Martinho Lenz – O direito à vida e a uma vida digna é anterior a qualquer forma de propriedade. Baseada nesse princípio, a ética cristã afirma que há um direito de acesso aos bens necessários a uma vida digna; e que, em caso de necessidade, todos os bens são comuns. Cessam os direitos privados e entra o interesse público, social, coletivo. Entra em função a solidariedade e a cooperação. Mas esse interesse público também se expressa nas formas legítimas de propriedade, que são resultados do trabalho remunerado e fruto do esforço de cada um. A possibilidade de acesso aos bens através de trabalho e do espírito inventivo é um estímulo à laboriosidade, ao esforço para produzir com eficiência. A geração de bens, tanto de consumo como de produção, é benéfica para todos. Uma sadia competição (emulação), e não a competição desenfreada, destruidora de pessoas, relações e recursos, é boa e promove o desenvolvimento. Uma sadia competição também pode contribuir para o menor desperdício e o maior cuidado com o meio ambiente.

IHU On-Line – Em que aspectos a economia global contribui para o desvio do real sentido da propriedade?

Martinho Lenz – Uma distorção deletéria, que se difundiu na economia globalizada, foi a prevalência do capital financeiro sobre o capital produtivo. Criou-se um sistema paralelo, autônomo, de especulação financeira, sem os devidos controles. As bolhas de riquezas fictícias geraram ganhos virtuais, que se desfizeram com a mesma rapidez com que foram geradas, arrastando consigo famílias e instituições. Mais uma vez, isso nada tem a ver com o conceito cristão de propriedade de bens, adquiridos através de um trabalho honesto e justamente remunerado.
 
IHU On-Line – Se a Terra foi dada a todos os homens, como compreender o paradoxo da a sua apropriação a partir da propriedade privada?

Martinho Lenz – “A terra foi dada a todos e não somente aos ricos” (São Basílio ). No sentido mais profundo, toda propriedade é um direito de dispor e de gerir determinados bens. Quanto ao uso, como já disse Santo Tomás de Aquino , “o homem não deve ter as coisas como próprias mas como comuns, de modo que facilmente dê participação delas aos outros quando necessitam delas”. Possuir algo não dá direito a abusar, a reter (especular) e acumular. A partir de uma visão cristã da propriedade, toda acumulação de bens ociosos é ilegítima e imoral. As terras ociosas estão dentro deste conceito.

IHU On-Line – Em que circunstâncias o Estado pode desapropriar terras ociosas ou mal utilizadas?

Martinho Lenz – Embora não tenhamos uma lei de Reforma Agrária no Brasil (há leis esparsas, parciais, programas de assentamentos rurais) o Estado brasileiro dispõe de alguns instrumentos que lhe permitem intervir na propriedade rural (na Constituinte de 1988, a bancada ruralista não conseguiu bloquear uma proposta global de reforma agrária e agrícola, mas não conseguiu que se aprovassem alguns dispositivos que permitem desapropriações de terras). O artigo 184 da Constituição de 1988 permite à União Federal desapropriar por interesse social para fins de reforma agrária o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante justa indenização. Estabelece quatro condições a serem cumpridas em função do interesse social: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, com reserva florestal legal; observância da legislação trabalhista e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Lei de 1991 (nº 8.257) determina a expropriação imediata e destinação à Reforma Agrária de glebas nas quais se localizem culturas ilegais de plantas psicotrópicas, sem qualquer indenização ao proprietário.

IHU On-Line – Qual é a função do Estado em relação à propriedade?

Martinho Lenz – Função do Estado é regular o acesso à terra e seu devido uso, dentro do ordenamento jurídico democrático e no interesse do bem comum. É facilitar o acesso à propriedade, à “terra de trabalho”, para todos os que queiram e saibam trabalhá-la, coibindo as diversas formas de apropriação indébita de terras, como é a grilagem e a especulação (a transformação de terra em instrumento de lucro, “terra de negócio”). Recordemos que esses conceitos foram usados pelos bispos do Brasil no documento votado na Assembleia Geral de 1980, “Igreja e Problemas de Terra”.
Em vista do bem comum, caberia ao Estado brasileiro a função maior de ordenar a ocupação da terra, promovendo a utilização produtiva de terras ociosas ou abandonadas, coibindo o desmatamento irracional e predatório, sobretudo na Amazônia. E fazendo cumprir as leis existentes, criadas para regulamentar os dispositivos da Constituição sobre a terra rural. Por exemplo, a de Política Agrícola, de 1991, e a Lei Agrária, de 1993, que fixam os critérios de uma terra produtiva; ou ainda a lei que regula o Imposto Territorial Rural (ITR, lei nº 8.847, de 1994), que estabelece a taxação pelo critério da progressividade: quanto menos produtiva uma terra, mais imposto deveria pagar. Isto em teoria… Infelizmente, essa lei tem pouca aplicação prática devido ao uso de subterfúgios e da influência política. Seria um instrumento muito eficaz para promover redistribuição da terra, penalizando os latifúndios improdutivos e forçando-os a entregar suas terras a quem as possa trabalhar.
Daí a conclusão: só haverá mudança efetiva no acesso à terra mediante pressão popular, através de campanhas como essa da limitação do tamanho da propriedade rural e da ação organizada dos movimentos populares. Como diz o documento 69 da CNBB, Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome, de 2002: “Só prevalecem na agenda da política social os direitos respaldados pela consciência da cidadania e pela participação política de entidades e movimentos sociais organizados” (n. 52).

Leia mais...

Confira alguns artigos de Martinho Lenz publicados pelo site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

* A Propriedade e sua Função Social. Artigo de Martinho Lenz, publicado nas Notícias do Dia 10/07/2010;
* Fórum Social Mundial em Nairobi: uma escolha que deu certo. Artigo de Martinho Lenz, publicado nas Notícias do Dia 10/02/2007;
* Fórum Social Mundial. O mundo do ponto de vista da África. Um relato de Martinho Lenz, SJ, publicado nas Notícias do Dia 24/01/2007.

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