Edição 338 | 11 Agosto 2010

História contínua: os Guarani de ontem e hoje

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Patricia Fachin

 

IHU On-Line - Como se deu a organização do espaço guarani nas reduções jesuíticas?

Jairo Rogge - O modo de vida tradicional dos guarani, no período missioneiro, foi dramaticamente modificado pela estrutura da vida nas reduções, não só no aspecto ideológico como sobretudo no aspecto da organização social e espacial. Embora os missionários tenham, eventualmente, mantido determinados elementos da estrutura social nativa, a adaptação ao espaço missioneiro, caracteristicamente europeu, certamente não deve ter sido fácil. Da aldeia tradicional à forma urbanizada da missão, principalmente o que mudou foi o controle sobre os indivíduos, facilitado pela planta da missão.

IHU On-Line - Como descreve a relação dos Guarani com os jesuítas? Como eles influenciaram a cultura e a identidade desse povo?

Jairo Rogge - As principais referências sobre a vida nas reduções provêm de um tipo específico de documentação, as “cartas ânuas”, que eram uma espécie de relatório escrito pelos padres e enviadas a seus superiores. Em muitas delas (ou praticamente todas), os relatos mostram que as condições não eram muito fáceis, para ambos os lados. De uma maneira geral, os padres se queixavam muito dos índios, mas certamente o inverso também era verdadeiro. Com certeza, os padres tiveram uma dificuldade muito maior com determinados indivíduos, os líderes religiosos tradicionais. Com esses, o conflito era permanente. No entanto, a influência jesuítica (e, consequentemente, europeia) sobre os índios acabou sendo enorme e, em certo sentido, prevaleceu e se incorporou à própria história indígena guarani. É interessante notar que, para muitos m’byá ainda hoje, seus “ancestrais” não são apenas os índios missioneiros, mas os próprios padres jesuítas.

IHU On-Line - O que a arqueologia tem revelado sobre a história dos Guarani que habitaram o sul do Brasil?

Jairo Rogge - O grande trunfo da pesquisa arqueológica é poder extrair conhecimento a partir de elementos aparentemente estáticos, como é o caso dos objetos que compõem parte da cultura material dos guarani do passado. Porém, essa percepção estática é totalmente enganosa, pois é possível tornar dinâmico esse conhecimento e compreender como uma população humana, no caso os guarani, viviam e se relacionavam entre si, com outros grupos e com o meio físico que exploravam e ocupavam.

IHU On-Line - Que reflexões o evento Seminário Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani propõe sobre a trajetória dos guarani no Brasil?

Jairo Rogge - A ideia do seminário é difundir o conhecimento gerado por diferentes abordagens, tais como a arqueologia, a etnohistória e a etnografia sobre os guarani de ontem e de hoje. Nesse sentido, pretende trazer à tona uma avaliação e discussão sobre a importância desse grupo étnico e, em uma perspectiva de história contínua, compreender os diferentes processos ligados à continuidade e mudança cultural dessas populações.

IHU On-Line - Qual a influência do povo Guarani na formação da cultura gaúcha?

Jairo Rogge - Fora as influências mais óbvias, como na onomástica e em determinados hábitos culturais e alimentares, talvez a maior influência dos guarani (e de outras etnias indígenas) é nos fazer perceber que as sociedades indígenas não são uma “entidade do passado”, não estão congeladas no tempo e no espaço e não correspondem à noção popular de que “índio é tudo igual”. Muito pelo contrário, estão aí, convivendo conosco, tendo desejos semelhantes, angústias semelhantes às nossas, lutando por espaço, comida, saúde, educação, embora possuindo uma lógica distinta da nossa. Somente quando soubermos respeitar essa diferença, que ao mesmo tempo tem tantas coisas em comum, é que aprenderemos a ser mais “humanos”.

IHU On-Line - O antropólogo Bartomeu Melià disse que “os guarani são, ao mesmo tempo, um povo sem história e um povo com muitas histórias”. Como o senhor interpreta essa citação?

Jairo Rogge - Tive o prazer de ter sido aluno do Pe. Meliá quando cursei o mestrado em História na Unisinos, no início dos anos 90, e lembro de uma colocação sua que não esqueço: parafraseando Todorov, ele dizia que Colombo havia “descoberto” a América, mas não os “americanos”. Desde então, tem havido um processo sistemático de “encobrimento” das sociedades nativas. E é nessa perspectiva de “encobrimento” que passamos a ver as sociedades indígenas como sociedades “sem história”, incapazes que são de construir uma historicidade própria. Será isso verdade? Logicamente que não. Os guarani têm seus próprios modos de produção histórica e, entre eles, a história se repete e é construída a cada dia, pelos mitos, pelas músicas, pelas rezas. São, sim, muitas as histórias dos povos guarani.

Leias mais ...

Jairo Rogge já concedeu outra entrevista à IHU On-Line.
• O resgate da cultura material confirma a diversidade cultural e étnica indígena. Publicada em 4/5/2008, nas Notícias do Dia e disponível no link <http://migre.me/ZuwE>.

>> E sobre a questão indígena, leia também:
• Os Guarani. Palavra e Caminho. IHU On-Line número 331, de 31-5-2010. Disponível no link <http://migre.me/10fer>;
• Em busca da terra sem males: os territórios indígenas. IHU On-Line número 257, de 5-5-2008. Disponível no link <http://migre.me/10fer>.
• As sociedades indígenas e a economia do dom: o caso dos guarani. Entrevista com Maria Cristina Bohn Martins, publicada na IHU On-Line número 324, de 12-04-2010, disponível em http://migre.me/13mOc
• As sociedades indígenas e a economia do dom - O caso dos guarani. Cadernos IHU ideias número 138, de autoria de Maria Cristina Bohn Martins, disponível para download em http://migre.me/13mPR

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