Edição 337 | 09 Agosto 2010

Belo Monte: uma monstruosidade apocalíptica

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Patricia Fachin

 

IHU On-Line - O senhor se afeiçoou ao Xingu desde pequeno, quando recebia cartas de seu tio que morava no Brasil. Que outros aspectos contribuíram para que o senhor tivesse tanto carinho por esta região e seus habitantes?

Erwin Kräutler - É verdade que desde a minha infância sonhei com o Xingu sem ter ideia onde ficava. Quando na geografia estudávamos a América do Sul, achei o Xingu e identifiquei-o como afluente do Amazonas. Meu tio falou com carinho dos povos do Xingu, dos seringueiros, dos pescadores, mas de modo especial dos índios. Vir para a Amazônia talvez tenha sido o meu destino, minha sina. Mesmo assim não acredito em "destino" como uma espécie de força cega. Eu acredito antes em vocação no sentido mais profundo de um "chamado", na linha do que diz o profeta Ezequiel: "A mão do Senhor veio sobre mim e me conduziu..." (Ez 37,1).
Fato é que não fui "mandado" para o Brasil e o Xingu. Foi escolha minha, decisão que eu mesmo tomei. Somente a comuniquei aos meus superiores de congregação que concordaram e assim embarquei poucos meses após minha ordenação sacerdotal para o Brasil. O Xingu tornou-se minha nova pátria. Nunca vivi o meu ministério de Padre em outro canto do mundo ou em outra região do Brasil. Quando fui nomeado bispo começou uma nova etapa em minha vida. Tornei-me responsável por toda a Prelazia do Xingu, com seus 365 mil quilômetros quadrados a maior circunscrição eclesiástica do Brasil, quase o equivalente aos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina juntos. Logo após a minha sagração comecei a cumprir o que leigas e leigos pediram ao bispo novo: visitar as comunidades dispersas neste vasto território e "sentir na pele o que elas e eles estão sentindo há tanto tempo".

Tendo contato direto com o povo e experimentando pessoalmente a realidade em que vive, me afeiçoei ainda mais a essa gente que se tornou "meu povo" e me aceitou como seu bispo-irmão. Nunca me esqueço do grito deste povo quando, em 1983, fui preso pela Polícia Militar por solidarizar-me com canavieiros da Transamazônica, explorados e maltratados. Esperando há nove meses o pagamento da safra, bloquearam em protesto a estrada. Ao ser jogado no chão, manietado e preso por um brutamontes de policial, o povo gritou: "Larga ele! Ele é nosso bispo!" Sempre entendi minha missão também como defensor intransigente da dignidade e dos direitos humanos, especialmente das pessoas que o sistema neoliberal vigente considera como "supérfluas" ou "descartáveis". Assumi, de modo particular, a defesa das crianças, das mulheres e dos povos indígenas, secularmente desprezados e discriminados até os dias de hoje. Também os colonos ameaçados de expulsão de suas terras ou sem acesso a um lote em que pudessem plantar e colher para sustentar suas famílias, sempre podem contar com meu engajamento em seu favor.
Com esse empenho naturalmente não ganhei apenas amigos. Há gente que se sente prejudicada em seus interesses e ambições e reage prontamente com ameaças e difamações. Há quatro anos estou sob proteção policial 24 horas. Quatro PMs se revezam em dois turnos, moram na minha casa e me acompanham sempre onde quer que esteja, também nas viagens às comunidades do interior, nas celebrações, reuniões, visitas e encontros.
 
IHU On-Line - Em entrevista ao jornal Valor, o presidente da Eletrobrás, José Antonio Muniz Lopes, diz que em Altamira existem onze etnias indígenas e, dessas, quatro são contra e sete são a favor de Belo Monte. Mencionou ainda que as etnias contrárias ao projeto pertencem ao Alto Xingu, onde a obra não tem nenhuma interferência. Como o senhor se posiciona diante das declarações?

Erwin Kräutler - O presidente da Eletrobrás, José Antônio Muniz Lopes, sempre desdenhou da luta indígena contra Belo Monte e com a afirmação de que nas etnias do Alto Xingu o projeto não tenha nenhuma interferência ele mais uma vez esconde as cartas. Ele sabe perfeitamente que o projeto do aproveitamento do Xingu para gerar energia não se limita ao Belo Monte, mas sacrificará o Rio Xingu em toda a sua extensão de mais de 2000 quilômetros. É mero cinismo do presidente da Eletrobrás que, da altura do cargo que lhe foi outorgado pelo presidente Lula, não vê nenhuma necessidade de dar satisfação a quem quer que seja e muito menos de discutir os prós e contras do projeto. Jamais engoliu o fato de uma índia ter esfregado um facão no seu rosto e suas reações desdenhosas certamente são consequência deste incidente que o humilhou diante das câmeras de TV do mundo inteiro. Não me consta que ele tenha visitado as aldeias indígenas do Xingu e por isso está desautorizado a afirmar quantas etnias estão a favor e quantas contra Belo Monte. É bem verdade que alguns indígenas foram cooptados pela Eletronorte que usa de todos os meios para convencer os índios de que Belo Monte vai beneficiar as aldeias. No entanto, afirmar categoricamente que uma "etnia" é a favor e outra contra é mera conjetura.

IHU On-Line - Qual a influência da Eletrobrás em Altamira?

Erwin Kräutler - A Eletrobrás adotou, desde que abriu seu escritório em Altamira, a estratégia de cooptação dos diversos segmentos da sociedade e dos povos indígenas para os seus interesses. Foge, porém, de qualquer discussão pública onde teria que responder a questões e argumentos dos que são contrários ao projeto. Eu mesmo posso provar essa atitude pouco democrática. Tempos atrás a juventude estudantil de Altamira promoveu um evento em que defensores e opositores de Belo Monte pudessem apresentar sua posição a favor ou contra. A Eletronorte, sem justificar-se, brilhou pela ausência ou, em outras palavras, manifestou mais uma vez a sua covardia. Aliás, quem ainda confia na Eletronorte? Ela foi responsável por outra usina hidrelétrica, a de Balbina, o pior projeto de geração de energia no Brasil, no rio Uatumã, AM, que o próprio presidente da República na ocasião em que me recebeu em audiência (22 de julho de 2009) classificou de "monumento da insanidade".
 
IHU On-Line - O rio Xingu tem épocas de cheias e secas? Acontece de, em períodos de cheias, alagar alguns pontos da cidade? Como isso interfere na vida da população?

Erwin Kräutler - É verdade que o volume d'água do Xingu oscila dependendo da época. A diferença entre o inverno e o verão é bastante acentuada. O verão se caracteriza por extensas praias douradas e baixo nível de água no leito principal do rio. As praias são sempre procuradas e frequentadas nos fins de semana pelo povo de Altamira que jamais pode imaginar que irão desaparecer para sempre. No inverno, na estação das chuvas, algumas áreas no perímetro urbano são alagadas todos os anos e por isso oficialmente interditadas para habitação humana. Mesmo assim, famílias sem recursos montaram seus barracos aí e todos os anos tem que ser removidas para escolas públicas ou para o parque de exposição até o rio baixar.
A inundação prevista em consequência do projeto Belo Monte nada tem a ver com as "cheias" anuais, mas alagará áreas habitadas que nunca ou raras vezes foram atingidas pelo Xingu. Nos 45 anos que vivo no Xingu vivenciei duas enchentes maiores que, de fato, atingiram quase toda a baixada de Altamira. Mas foram realmente exceções. O lago artificial, no entanto, ultrapassará - e muito - as maiores enchentes já verificadas, fazendo de Altamira uma península em meio a águas estagnadas e isso não apenas por algumas semanas mas para sempre, de modo irreversível.

IHU On-Line - O último relatório do Cimi revela que mais de 60 índios foram mortos no ano passado. A que o senhor atribui tanta violência contra os povos indígenas? Essas mortes têm alguma relação entre si?

Erwin Kräutler - O Conselho Indigenista Missionário - CIMI publica, desde 1993, anualmente um relatório sobre as mais variadas formas de violência perpetradas no Brasil contra os povos indígenas. Esses crimes violam frontalmente a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT. Várias vezes fui perguntado, até quando o CIMI estaria disposto a ir a público com tais dados estarrecedores. Sempre respondo que, enquanto existir uma única morte violenta de uma índia ou um índio, o CIMI não se calará. Se nós nos calarmos o sangue derramado gritará do solo brasileiro ao céu. É uma chaga aberta que atravessa todo o país. E existe um detalhe. Os dados de que dispomos são fornecidos por nossos missionários que vivem junto aos povos indígenas e por matérias publicadas em jornais. Não se trata de uma exaustiva estatística anual que revela todos os crimes. Relatamos somente aqueles de que tivemos notícia. O número de mortes e agressões violentas, portanto, não se restringe ao relatório por nós divulgado. Ultrapassa-o. Há, sem dúvida muito mais mortes de índios e violências contra esses povos.
A maior parte destes crimes está relacionada às terras, de que os índios foram expulsos ou que lhes foram roubadas. Os conflitos ocorreram por causa da invasão de terras indígenas por parte dos diversos grupos econômicos, de modo especial fazendeiros, usineiros, madeireiros e empresas de energia elétrica.
Há ainda indígenas que estão vivendo encurralados em áreas tão diminutas que sua vida se torna um inferno nesta terra e por isso optam, antes do tempo, pela vida no céu, no além, onde acreditam poder viver sossegados e como Guarani de verdade. Com esta fé e esperança escolhem o suicídio. É macabro, mas a mais pura verdade.

Leia mais...

Dom Erwin Kräutler já concedeu outra entrevista à IHU On-Line.
• Belo Monte. Projeto faraônico e gerador de morte'', publicada nas Notícias do Dia, em 17-12-2009. Disponível no link http://migre.me/Zu1p
>> O site do IHU publicou notícias e entrevistas sobre Dom Erwin Kräutler.
• “Belo Monte será uma agressão sem precedentes para o Brasil”, afirma Dom Erwin Kräutler. Notícia publicada no sítio do IHU e disponível no link http://migre.me/11CEx;
• “O presidente frisou ainda que Belo Monte só será realizado ‘se todos ganharem com isso’”. Entrevista com Dom Erwin Kräutler, publicada nas Notícias do Dia do IHU em 10-3-2010 e disponível no link http://migre.me/11CGJ.
• “Esperava que o IBAMA reagisse com mais sinceridade e serenidade”, afirma Dom Erwin Kräutler. Carta publicada nas Notícias do Dia do IHU em 27-2-2010 e disponível no link http://migre.me/11CJa;
• Dom Erwin Kräutler é indicado para Nobel Alternativo dos Direitos Humanos. Notícia publicada em 26-2-2010, nas Notícias do Dia do sítio do IHU. Acesse em http://migre.me/11CMz.
• Belo Monte: “Não houvee diálogo”, afirma Dom Erwin Kräutler. Notícia publicada em 5-2-2010 e disponível no link http://migre.me/11COq;
• “Só os índios, hoje, se preocupam com o futuro. Os brancos só olham para o presente”. Entrevista com Dom Erwin Kräutler, publicada nas Notícias do Dia do IHU, em 15-4-2008. Acesse em http://migre.me/11CPK;
• “Desenvolvimento na Amazônia se tornou sinônimo de derrubar, queimar, arrasar, matar”. Entrevista com Dom Erwin Kräutler, publicada nas Notícias do Dia, em 19-2-2008. Acesse em http://migre.me/11CQZ.
• “O projeto desenvolvimentista está sendo construído sobre os cadáveres dos indígenas”, afirma dom Erwin Kräutler. Notícia publicada em 10/7/2010, no sítio do IHU e disponível no link http://migre.me/11CWs;
• Amazônia, um filho teu não foge à luta. Entrevista com dom Erwin Kräutler. Publicada em 30/4/2010, nas Notícias do Dia e disponível no link http://migre.me/11CXT;
• Projeto Belo Monte - Morte Projetada. Carta de D. Erwin Kräutler a Lula. Publicada em 4-11-2009. Disponível no link http://migre.me/11CZZ;
• Dom Erwin Kräutler. Reconhecimento e ameaças marcam vida de bispo no Xingu. Publicada em 20/1/2007 e disponível no link http://migre.me/11D0E.

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