Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Marguerite Porete e a “teologia” do feminino divino

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Moisés Sbardelotto

IHU On-Line – Em sua pesquisa, você analisa o tema da “aniquilação mística” e da “linguagem apofática” em Marguerite Porete. O que você entende por esses conceitos e como eles dialogam?

Sílvia Schwartz –


Apófase do desejo

Há no Mirouer de Marguerite uma transposição paradoxal da dialética da teologia apofática para a esfera da prática ascética, uma transposição que alguns autores chamam de uma “antropologia apofática”. Com isso um novo tema emerge: o do “eu”, em particular o da nadificação do “eu” ou, como ela afirma, o da aniquilação da alma. Porete repetidamente menciona a radical pobreza da Alma, que abandona obras e virtudes. Numa verdadeira apófase do desejo, essa alma se esvazia de toda vontade e termina por cair do amor no nada. É nessa queda profunda que ela se torna “nada” no abismo onde encontra o “nada” divino, e volta a “ser o que era” antes de sua criação. Agora, somente a vontade divina age nela através da união realizada por obra do Amor. A alma é agora menos que nada e nada pode fazer senão a vontade de Deus e assim ela é nada e tudo.


IHU On-Line – Afirma-se que Marguerite Porete influenciou Mestre Eckhart. Concorda? Em que pontos podem-se encontrar convergências entre esses dois pensadores cristãos?

Sílvia Schwartz –
É importante frisar que foi exatamente do meio das “mulheres santas” que surgiu um surpreendente número de obras místicas, nas quais é possível encontrar a origem de certas expressões e temas dos trabalhos de Mestre Eckhart. A obra de Eckhart tem sido tradicionalmente lida à luz de sua relação com a teologia escolástica, patrística e neoplatônica, que antecedem a mística do final da Idade Média, com a teologia pastoral da ordem dominicana, que estava se desenvolvendo, e com as tradições da mística germânica. Porém, já em 1935, Herbert Grundmann  afirmava que as inovações teológicas e místicas centrais na obra de Eckhart surgiram primeiro no movimento religioso feminino das mulheres do século XIII, em particular nos escritos das béguines.
Atualmente, são vários os estudos que estabelecem as semelhanças entre a obra de Marguerite Porete e a de Eckhart. Denys Turner, em sua obra The darkness of God, assinala as probabilidades de que Eckhart conhecesse o trabalho de Porete e de que, mesmo não o aprovando integralmente, ainda assim tivesse tomado de empréstimo dela algumas ideias centrais e algumas modalidades de expressão características. Segundo Turner, Marguerite Porete foi queimada em 1310, e seu inquisidor, o dominicano Guillaume Humbert, estava vivendo na casa dominicana de St. Jacques, em Paris, em 1311, quando Eckhart juntou-se à comunidade em sua segunda estada como professor de teologia na universidade. Turner acha impossível que Eckhart pudesse não ter tomado conhecimento da obra de Marguerite Porete nessa época.


Porete e Eckhart

Robert Lerner, em seu livro The heresy of the free spirit in the Later Middle Ages, afirma que um dos colegas de Eckhart no convento dominicano em Paris, onde residiu de 1311 a 1313, foi Berengar de Landora, um dos teólogos encarregados de examinar o Mirouer e que participou também do Concílio de Viena. Kurt Ruh, em sua obra Eckhart: Teologo – Predicatore – Mistico, afirma que os estudos sobre o Mirouer têm repetidamente assinalado a vizinhança cronológica e espiritual de Eckhart com Marguerite Porete e que até mesmo para o leitor superficial é impossível deixar de notá-la. Ruh acrescenta que, em 1981, num congresso sobre Ruysbroek, o tradutor de Eckhart, Edmund Colledge tentou demonstrar que Eckhart devia ter conhecido o livro de Porete, direta ou indiretamente. Bernard McGinn também ressalta a proximidade entre a mística de Porete e a de Eckhart, que estava ensinando em Paris logo após a execução da autora. McGinn acrescenta que pesquisas recentes assinalam que uma das mais profundas afirmações da noção de Eckhart relativa à unitas indistinctionis, encontrada no seu Sermão 52, em alemão, mostra um contato direto com Le Mirouer. Entre os vários paralelos – o tema da pobreza espiritual, do completo distanciamento da vontade própria, da rejeição do caminho das obras, da limitação do corpo e da imaginação – próximos no pensamento e na expressão, encontrados na obra da béguine e de Eckhart, McGinn enfatiza a aniquilação da vontade da alma, que a leva de volta para um estado pré-estabelecido de união com Deus, no qual não há distinção entre a vontade da alma e a vontade de Deus, já que a alma retorna ao estado em que estava antes de ser criada.
Sem dúvida alguma nos últimos anos vemos com satisfação o resgate e a valorização da obra dessas mulheres da Idade Média que têm aberto novas avenidas no estudo da mística ocidental – um tributo à história meio esquecida dos esforços das mulheres místicas.


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Sílvia Schwartz
é autora de outra publicação pelo IHU:

* Amor e aniquilação na mística de Marguerite Porete e Ibn’ Arabî. Cadernos IHU em Formação, edição 31, intitulado Mística. Força motora para a gratuidade, compaixão, cortesia e hospitalidade.

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