Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Mechthild de Magdeburgo, mestra e mãe da mística renana

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Moisés Sbardelotto

O nervo vital da obra de Mechthild está constelado na metanoia de sua linguagem mística amorosa. O amor é um elemento epistêmico, não mais importante do que a deidade; é a linguagem própria de Deus mesmo, explica Maria José Caldeira do Amaral

As mulheres místicas “romperam o silêncio no qual estavam reduzidas e abrigaram Deus, em si mesmas, em seus corpos e em suas almas à espera do nada. E, nessa espera, tornaram-se vencidas e aniquiladas para encontrar o verdadeiro silêncio emitido pelo abismo e compreender a experiência humana completa, carnal e espiritual e, consequentemente, a denominaram de incompreensível”.
É nesse contexto, explica a psicóloga clínica Maria José Caldeira do Amaral, mestre e doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, que podemos situar a mística renana do século XI Mechthild de Magdeburgo.

“O nervo vital da obra de Mechthild está constelado na metanoia de sua linguagem mística amorosa. O amor é um elemento epistêmico, não mais importante do que a deidade; é a linguagem própria de Deus mesmo”, explica Maria José. Por isso a mística de Mechthild é considerada “mística do afeto”. “Ela é afetada por Deus. No seu discurso, sentimos a intercessão entre sua própria alma e Deus”, afirma.
Para Mechthild de Magdeburgo, “o amor e a misericórdia divina são, no mínimo, proporcionais à vida miserável do homem”. Essa “mestra e mãe da mística renana” defendia que “todo o nosso conhecimento, sem o fogo do amor, é arrogância e hipocrisia”, afirma Maria José.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, a psicóloga também aproxima o pensamento de Mechthild à de Carl Gustav Jung , pois “a psicologia e a mística situam-se em oposição e na fronteira de si mesmas com conceitos desenvolvidos pela pesquisa em ambas”. “Na união mística não há pensar, nem agir, nem fazer, nem querer, nem mesmo ser”, resume.

Maria José Caldeira do Amaral é psicóloga clínica, mestre e doutora em Ciências da Religião pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Mística e Santidade – Nemes (PUC-SP) e autora do livro Imagens de plenitude na simbologia do Cântico dos Cânticos (Educ/PUC/Fapesp, 2009).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Historicamente, quais foram as contribuições do olhar feminino à compreensão da mística e sua experiência? Que laços existem entre o feminino e a mística?

Maria José Caldeira do Amaral –
Gosto muito da fala de duas estudiosas da mística feminina, Victoria Cirlot  e Blanca Gari, autoras do livro La mirada interior: escritoras místicas y visionarias em la Edad Media (Barcelona: Ediciones Martínez Roca, 1999) que relevam a contribuição das mulheres místicas, nesse contexto tecido pela história na dimensão teológica, como aquelas que romperam o silêncio ao qual estavam reduzidas e abrigaram Deus, em si mesmas, em seus corpos e em suas almas à espera do nada. E, nessa espera, tornaram-se vencidas e aniquiladas para encontrar o verdadeiro silêncio emitido pelo abismo e compreender a experiência humana completa, carnal e espiritual e, consequentemente, a denominaram de incompreensível. No debate intelectual da época, estava posta a discussão interminável entre fé e razão, Intellectus fidei & Experientia caritatis, e a emergência dos escritos místicos, ao lado da presença do conteúdo scholar, faz-se presente no esforço para o conhecimento de Deus a partir do amor, de acordo com Bernard McGinn em The loving knowledge of God .

A dimensão amorosa, o amor como conhecimento subsidiado pelo relato da experiência nos escritos místicos, atualiza, na Idade Média, a doutrina de São Jerônimo : amor ipse inttelectus est – o amor é uma forma de conhecimento e o conhecimento é uma forma de amor. E essa atualização leva para dentro desse debate teológico o desenvolvimento de livros, registros e relatos de homens e mulheres, como o livro de Mechthild de Magdeburgo – Das flieBende Licht der Gottheit – assim como daqueles dos místicos e místicas contemporâneos a ela que tratam do amor . A via amorosa está colada, nos escritos místicos, ao problema do conhecimento no contexto substanciado pelo conhecimento de Deus, que se liberta de todas as amarras intelectuais para descobrir os mistérios divinos, e dá forma ao relato de uma experiência única, íntima e suspensa na mais alta profundidade amorosa.

É fato histórico, portanto, que no século XIII um número considerável de mulheres, provavelmente bem educadas e com grande acesso à literatura e educação para mulheres, aumenta e contribui para o aparecimento de mulheres que escrevem e mulheres que escrevem sobre mulheres.

As ordens religiosas femininas se organizam e são tradicionalmente constituídas de acordo com as normas aprovadas pelas autoridades eclesiais. No seio da vida religiosa cristã surgem as Mulieres religiosae – termo usado na época para resguardar as formas menos estruturadas de vida pessoal, religiosa e devocional de mulheres que não possuíam o status social convencional: não casavam, não entravam na vida religiosa da Igreja, abandonavam o lar de origem e viviam uma vida de castidade, devoção, caridade e oração. Para Bernard McGinn, o inesperado fato de um grande número de mulheres seguirem o modelo do pathos de Maria Madalena na história da redenção e salvação de Cristo, como modos de vida mística e devocional, surpreende em toda Europa medieval, nos séculos XII, XIII e XIV. Essa forma de vida religiosa, extraclaustro e semirreligiosa, teve sua origem nos países de língua germânica, no vale do Reno, como é o caso de Hadewijch de Antuérpia, Beatriz de Nazareth e Mechthild de Magdeburgo, no século XI e XII; Angela de Foligno, no final do século XIII, e Catarina de Sena , no séc. XIV, na Itália; na França, Margarida de Oingt  (Lyon) e Marguerite Porete (Valência); na Inglaterra (séc. XV), Juliana de Norwich ; Guilherma de Boêmia que viveu em Milão em 1260, como beguina.


IHU On-Line – Quem foi Mechthild de Magdeburgo? Que aspectos biográficos ou históricos a levaram a se abrir ao Mistério?

Maria José Caldeira do Amaral –
Mechthild de Magdeburgo nasce em 1207 nas proximidades de Magdeburgo. Em 1230, ela deixa a casa dos pais, com 23 anos, para viver em Magdeburgo, como beguina. Em 1250, começa escrever o Das FlieBende Licht der Gottheit (A luz fluente da deidade), sua única obra. Escreve do livro I ao livro V até 1259. Em 1260, fica doente e, possivelmente, passa uns tempos em sua casa. Em 1270-1271, o livro VI estava pronto. Em 1270 Mechthild entra para o convento de Helfa. Entre 1270 e 1282, ela escreve o livro VII. Em 1282 ela morre. Nada se sabe sobre sua origem e seus familiares; ela se refere a seus pais apenas uma vez, em toda sua obra.

Mechthild conta um pouco sobre sua vida no longo primeiro capítulo do livro IV: fala sobre os pecados que cometeu em sua infância, dos quais ela se arrependeu e se confessou e, se assim não fosse, ela ficaria no purgatório por dez anos. Dirigindo-se a Deus, ela diz que, mesmo se não tivesse sido perdoada ela gostaria de ser atormentada, se assim fosse necessário, pois agora (no momento em que escreve), já sabe que foi tocada pelo amor de Deus. Nesse capítulo (IV, I) ela enfatiza alguns acontecimentos de sua vida quando inicia a vida religiosa e “deixa o mundo”. Nesse momento ela examina seu corpo e sua alma e delata o conflito entre a experiência corpo/alma de uma religiosa como ela: seu corpo, diz ela, estava bem armado contra sua pobre alma e preenchido de completa natureza. Ela sabia que seu corpo teria que ser transformado porque havia vislumbrado a possibilidade de não escapar da morte eterna, caso essa transformação não acontecesse. Quando Mechthild olha para sua alma, diz: “ela era a gloriosa paixão de nosso Senhor Jesus Cristo” e diz que, nesse estado de alma, ela podia se tranquilizar e se defender. Mas ainda assim, durante sua juventude o conflito, era muito grande e suspirar, chorar, confessar, jejuar, fazer vigílias, flagelar e permanecer em constante adoração eram os recursos que possuía para amenizar esse conflito. Durante 20 anos nunca houve um momento em que ela não estivesse deprimida, doente ou cansada e fraca em função de seu constante arrependimento e sofrimento.

Aos 12 anos de idade, Mechthild é tocada pelo Espírito Santo. Esse toque, essa saudação ou graça, grüs em alemão medieval, possui a conotação de a alma ter recebido a atenção amorosa que Deus dispôs a ela. O sentido, na linguagem, se dá como uma expressão da alma recebendo esse amor como dívida de Deus. Na literatura teológica vernacular do Das FlieBende Licht der Gottheit, Deus se dá como um servo da alma. A dádiva de Deus é experimentada como dívida da alma e na alma e, portanto, essa experiência também é concessão divina, já que o amor (minne), a alma e Deus se diferenciam somente na linguagem. Quando Mechthild conta essa primeira experiência, já está posto em sua vida e obra o sofrimento da alma e da sua própria alma equalizado ao caminho de dor na experiência da imitação da paixão de Cristo.


IHU On-Line – Em sua opinião, quais são os principais pontos, ideias ou conceitos na mística de Mechthild? Que Mistério ela nos revela?

Maria José Caldeira do Amaral –
Na tradição teológica cristã, o fim absoluto do amor de Deus é o desapego, o desinteresse. A linguagem mística é um recurso extremo ao tomar-se possuída por essa natureza da alma e sua similaridade com Deus. O nervo vital da obra de Mechthild está constelado na metanoia de sua linguagem mística amorosa. O amor é um elemento epistêmico, não mais importante do que a deidade; é a linguagem própria de Deus mesmo. O texto de Mechthild parece conduzir o leitor a uma composição no campo da experiência direta de Deus, e não a uma objetividade de pensamento ou conhecimento nos moldes atribuídos a conceitos e categorias – filosóficas, teológicas ou psicológicas –, ainda que essas se referissem a uma negatividade de si próprias. Não há um teor especulativo na obra de Mechthild enquanto construção textual, mas sim um teor descritivo em língua vernacular, uma fala de alguém que descreve a possibilidade de um amor na alma que ama e deseja – Deus inserindo-se na alma, por pura vontade.
A mística de Mechthild é considerada mística do afeto. Ela é afetada por Deus. No seu discurso, sentimos a intercessão entre sua própria alma e Deus. Há uma vitalidade em sua obra, e o conhecimento se dá ao leitor por meio dessa vitalidade. Mechthild pede para que leiamos seu texto nove vezes e, à medida que isso acontece, parece haver um crescer no conteúdo que se desfaz, e o que apreendemos – ou pensamos apreender – perde o sentido e, imediatamente, tudo nos escapa. O conhecimento dado à alma que deseja e é desejada, que ama e é amada no esvair-se de si mesma, é o conhecimento da própria dissolução, desolamento e sofrimento de Cristo em paixão, morte e ressurreição.


No texto de Mechthild, quando a grandeza de Deus onipotente é igual à capacidade imensa da alma para o pecado, está posto o sentido da paixão de Cristo. A dor da alma, aquela que se refere à nossa falta no conhecimento e na vontade, torna-se uma sensibilização do sofrimento humano pela deidade. A segunda pessoa da Trindade, quando se insere na esfera da alma, o faz no sofrimento que é igual ao da alma miserável e pecadora. A alma humana não suporta o sofrimento da deidade, porque o experimenta em si mesma quando, essa mesma deidade, disponibiliza esse sofrer a ela, à custa do amor: Não seria esse mesmo amor abissal aquele que aponta para um lugar de bem-aventurança que está além da possibilidade humana, o qual não é possível descrever ou supor?
O nada da alma profunda é o abismo no qual Deus se encontra, pela ação da trindade, em sua própria humanidade. Cristo encarna-se na linguagem e aí nasce o ágape divino travestido em eros: a grandeza desse conhecimento está aquém das possibilidades humanas, pois o desapego do Filho eterno e de toda a Trindade também está aquém da possibilidade humana. Abismada, a alma não consegue suportar a angústia que experimenta no próprio inserir trinitário em sua alma. Sua experiência é da angústia divina. A luz que flui da divindade ilumina a grandeza do ato divino de submeter-se ao sofrimento humano, na linguagem vital de Mechthild, por meio da intensificação da miséria da alma como receptáculo de toda a dor mortal e finita pela qual passa o imortal e o infinito. A natureza desse processo é conduzida pelo amor, e o desdobramento desse amor se dá para além da suposta virtude humana, que se esgota e não consegue ser constituída nem se manter acesa, viva ou útil, diante do ato humano de Deus. O ágape divino travestido em eros se dá em humanidade.

A obra de Mechthild propõe a seus leitores o mesmo desafio apresentado ao ocidente pela configuração trinitária cristã. A alma feita de amor é designada por Deus a conhecer a dor, o sofrimento, a renúncia, sendo ela mesma portadora da própria síntese trinitária em sentido estrito: um lugar onde esta mesma dor é acessível pela luz que flui da divindade em desejo e falta – penhor da humanidade fragmentada.

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