Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Mística: experiência que integra anima (feminilidade) e animus (masculinidade)

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Moisés Sbardelotto

IHU On-Line – Recentemente, o Vaticano anunciou que Bento XVI pretende declarar Hildegard de Bingen  doutora da Igreja, título detido por apenas outras três mulheres em toda a história: Teresa de Jesus, Catarina de Sena  e Teresa de Lisieux . Qual a importância de Hildegard para a mística?

Faustino Teixeira –


IHU On-Line – Em momentos de crise epocal como o nosso, que abrangem vários âmbitos da vida social, em que aspectos as místicas de Teresa e de Marguerite nos é contemporânea? Em que elas nos iluminam?

Faustino Teixeira –
No caso específico de Marguerite e Teresa, o grande legado que fica é o do desafio do despojamento, da humildade, da liberdade e da abertura. As duas místicas estão marcadas pela fina atenção aos sinais dos tempos. A mística beguina chama a atenção para auscultar a presença de Deus não só nos templos e mosteiros, mas também em toda a parte e em todos os lugares (capítulo 69, 42-50). Teresa, por sua vez, convoca ao essencial desafio do amor fraterno, que está dialeticamente unido ao amor a Deus. A prática do amor fraterno, por um lado, realiza o amor a Deus. E o amor a Deus, por outro, faculta o aperfeiçoamento do amor ao próximo, pois “o amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor a Deus” (Quintas Moradas, 3,9). Teresa adverte às irmãs “encapotadas” em suas orações sobre a importância das obras: “Não, irmãs, não é assim! O Senhor quer obras. Se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não tenhas receio de perder a tua devoção e compadece-te dela” (Quintas Moradas, 3,11).
Destacaria também um tópico muito rico, presente nas duas grandes místicas: a entrega aos cuidados de Deus. Nosso tempo é marcado pela busca de resultados, pela eficácia e produtividade. Os místicos, na contramão dessa lógica, insistem na virtude da paciência. Há que saber esperar. Numa rica passagem de seu livro, Porete fala de um sábio trabalhador que cultiva sua terra para dela tirar seu sustento. Ele cultiva e ara a terra, num duro esforço laborativo. Mas depois que coloca o trigo na terra, cessa o seu poder. O que vale agora é a paciência para aguardar os frutos: “Todo o seu poder não pode mais ajudar. É preciso que ele deixe o resto ao cuidado de Deus, se quer ter um bom resultado em seu trabalho. Por si ele não pode fazer mais nada” (capítulo 124, 35-50).


IHU On-Line – Como percebe a relação entre teologia/filosofia e mística? Existiria hoje a necessidade de uma gramática teológica/filosófica adequada para se poder captar a novidade dos místicos?

Faustino Teixeira –
Essa tensão entre mística e filosofia percorre as narrativas místicas: veja os exemplos de Rûmî , em seu Mathnawi e também Farid ud-Din Attar , em sua obra Linguagem dos pássaros. Na conclusão de seu livro, Attar fala das dificuldades que impedem o acesso ao segredo de seu livro. Faz uma distinção entre os “filhos das ilusões” e os “filhos da Realidade”. Os primeiros apenas arranham a casca, não conseguindo penetrar nos enigmas e mistérios de sua poesia. Diz Attar: “Os filhos das ilusões são náufragos na música de meus versos, mas os filhos da Realidade conseguem penetrar nos meus segredos mais íntimos”.
Há algo de sigiloso e velado na linguagem dos místicos que escapa às interpretações tradicionais. Necessita-se de algo mais para penetrar em seus mistérios. Há uma “lógica do coração” que transborda a “lógica da razão”. Attar convida os leitores de seu livro para abraçar o que chama de “ciência de Medina”, que é porta de acesso à linguagem esotérica dos pássaros. É necessário sublinhar a peculiaridade da teoria do conhecimento dos místicos, que é distinta da forma de teoria que conhecemos, que se dá mediante o aprendizado convencional. O místico, ao contrário, faz também recurso à “aprendizagem direta”, por via do dom divino.

Dizia um grande místico sufi egípcio: “Conheci o meu Senhor por meio do meu Senhor, sem o meu Senhor, jamais poderia conhecer o meu Senhor”. Trata-se do conhecimento íntimo de Deus, bebido em sua câmara secreta, e que os místicos sufis nomeiam como ma’rifa. Para firmar o seu conhecimento, os místicos rastreiam também os “atalhos da inspiração”, para além da rota conhecida, traçada no tradicional mapa do conhecimento.

Em clássico texto de Ibn’Arabi  sobre a tensão entre os eruditos exotéricos e os sufis, ele trata da diferença entre o conhecimento de ambos. A seu ver, os primeiros recebem seu conhecimento dos mortos, e os outros do “eternamente vivo”. Essa é a diferença para ele. No âmbito da filosofia ocidental, pensadores como Jean Baruzi , Jacques Maritain  e Georges Morel  debateram intensamente tal questão. Esse último autor, no prefácio de sua volumosa obra sobre João da Cruz, abordou o tema da filosofia, teologia e mística. Assinala que o místico, na verdade, toca o coração do filósofo, despertando nele uma “nostalgia, talvez rechaçada, a nostalgia do mistério das coisas”.


IHU On-Line – Em sua opinião, como se manifesta a radicalidade da linguagem mística em geral, uma linguagem muitas vezes ousada para os padrões sociais e eclesiais? Em que ela se diferencia da linguagem teológica ou filosófica?

Faustino Teixeira –
Na ampla introdução de Leonardo Boff  feita para a tradução brasileira do livro de Mestre Eckhart sobre A mística de ser e de não ter (Petrópolis: Vozes, 1983), ele fala das dificuldades da mística com as instituições religiosas. Segundo Boff, “a instituição religiosa, assentada particularmente sobre seguranças que exigem os mecanismos de controle, dificilmente convive com a experiência dos místicos. Ela possui pouca flexibilidade para entender a linguagem ousada dos que experimentaram o inefável do Mistério”. A linguagem dos místicos é tecida por alusões, oxímoros e dislates. Não é uma linguagem usual e rotineira, mas marcada pelo traço excessivo.

Ao final de seu complexo sermão sobre a bem-aventurança dos pobres, Eckhart assinala: “Quem não compreende a fala, não aflija com isso o seu coração. Pois enquanto o homem não se iguala a essa verdade, não compreenderá essa fala. Essa é, sim, uma verdade sem véu, vinda diretamente do coração de Deus” (Sermão Alemão 52). É uma fala de ousadia, “abusada”, como também vislumbramos em Ibn’Arabi, que chegou uma vez a dizer: “Diversas são as crenças professadas pelas pessoas sobre Deus. Mas eu as professo todas. Creio em todas as crenças”.
Ao refletir sobre a linguagem excessiva dos místicos alemães, o filósofo Amador Vega – grande especialista em Eckhart – assinala o traço de sua novidade linguística. É essa novidade que provoca resistências e oposições, pois desloca a perspectiva tradicional que sustentava até então o conhecimento ou o dogma. Indica não haver uma gramática teológica plausível para interpretar a novidade linguística que acompanha uma experiência que é viva e profunda. Esse é um desafio que fica para nós, estudiosos da mística.


IHU On-Line – Que contribuições a mística pode dar ao fortalecimento do diálogo inter-religioso?

Faustino Teixeira –
Trabalhei esse tema em vários artigos. Sublinho aqui o que entendo como essencial. A experiência mística carrega consigo uma fundamental exigência de humildade, esvaziamento de si e abertura ao mistério irredutível do outro. Ela faculta também um trabalho interior, essencial para a criação de espaços de hospitalidade. Há que acolher e hospedar o outro dentro de si. Sem esse exercício fundamental, não há disponibilidade dialogal. É interessante verificar como, à medida que avançamos em direção ao nosso mundo interior, no âmbito da profundidade, cresce a consciência da particularidade e contingência de nossos vínculos identitários e despertamos para uma tal liberdade espiritual, capaz de desvelar para nós a irradiadora presença de Deus em toda parte.


IHU On-Line – Em sua opinião, qual é o papel dos místicos/as e da espiritualidade hoje?

Faustino Teixeira –
O grande místico cistercience Thomas Merton  sinaliza em seu livro sobre As novas sementes da contemplação que “é precisamente porque os santos estavam absortos em Deus que possuíam a capacidade de ver e apreciar as coisas criadas”. Essa é a delicadeza peculiar do místico: sua capacidade de atenção aos pequenos sinais do cotidiano e sua abertura ao canto das coisas. É alguém sempre desperto para o infinito Real que brilha dentro da realidade. É alguém dotado de um inaugural potencial de ver, e de ver para além dos nomes e formas que estão aí. Ele busca, em seu “desaforado amor pelo todo”, ir sempre além e mais fundo. Sua meta é “atravessar os umbrais da vida” e penetrar na tessitura do tempo, e de forma radical.


Leia Mais...

Faustino Teixeira já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line e é autor de algumas publicações pelo IHU:

* O Jesus de Pagola. Edição 336 da revista IHU On-Line, de 06-07-2010
* O budismo e o “silêncio sobre Deus”. Edição 308 da revista IHU On-Line, de 14-09-2009
* Teologia da Libertação: a contribuição mais original da América Latina para o mundo. Edição 214 da revista IHU On-Line
* Bento XVI e Barak Obama: novas perspectivas de diálogo com o islã. Artigo publicado na edição 296 da revista IHU On-Line, de 08-06-2009;
* Jesus de Nazaré: um fascínio duradouro. Artigo publicado na edição 248 da revista IHU On-Line, de 17-12-2007.

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