Edição 385 | 19 Dezembro 2011

“A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”

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Moisés Sbardelotto


IHU On-Line – Em que sentido a mística de Angela e de Marguerite nos é contemporânea?

Marco Vanini – Ela nos é contemporânea no sentido de que, como dizia no início, a experiência do espírito é quase idêntica em todos as épocas e em todos os lugares, e vai muito além das distinções espaço-temporais, além daquelas, como eu dizia, de gênero. Para mim, homem, as palavras de Angela ou de Marguerite falam não como palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade.

IHU On-Line – Como percebe a relação entre teologia/filosofia e mística? Há hoje a necessidade de uma nova gramática teológico-filosófica para captar a novidade dos místicos?

Marco Vannini – Há um caso emblemático que eu gostaria de citar para responder essa a pergunta. O franciscano São Pedro de Alcântara  escreveu a santa Teresa de Jesus , em Ávila, que se maravilhava muito que ela tivesse pedido conselho a teólogos sobre problemas espirituais, novas fundações de conventos etc., porque, em matéria de perfeição, é preciso dirigir-se só a quem a pratica, e disso os teólogos não sabem nada. Eles são especialistas em questões doutrinais, escolásticas, ou talvez jurídicas, mas certamente não em questões espirituais.
A teologia nascera como teo-logia, ou seja, discurso racional sobre Deus, em contraposição aos mitos (lembro que a palavra foi cunhada assim por Platão), com a consciência de que, na realidade, não sabemos nada de Deus, mas que devemos pensar só que ele é bom, e que dele vêm todos os bens. Trata-se, por isso, não de fazer discursos impossíveis sobre Deus, mas sim de nos tornarmos semelhantes a ele (omòiosis tò theo). Hoje, ao contrário, há “teologia” de tudo: a palavra teologia deixou de ter o seu significado originário e se tornou uma espécie de “tudologia”.
Isso vale hoje, com maior razão, também para a filosofia. No momento em que ela perdeu a consciência de ser “ciência da verdade”, como Aristóteles a chama, e de ter em comum com a religião o objeto, que é o Absoluto em si e por si, como dizia Hegel, é evidente que não tem nada a ver com a mística, que, aliás, realmente não entende. Por isso não é de se admirar que a palavra filosofia, hoje, também é adotada no sentido, por exemplo, de estratégia empresarial (a filosofia da Fiat...).
O saudoso professor Hadot  defendia com razão que a verdadeira continuação da filosofia, que é a grega clássica, foi a mística: enquanto a teologia sempre foi dependente da instituição eclesiástica, da dogmática, do respeito pela Sagrada Escritura, pelos Concílios etc. – e desse modo perdeu aquela liberdade da inteligência que, sozinha, a filosofia pode dar –, só a mística continuou a via mestra do filosofar, que é o distanciamento, o platônico exercitar-se a morrer.
A filosofia em sentido forte não é continuada nem nas universidades medievais, submetidas à Igreja, nem nas modernas, sempre submetidas ao poder e coligadas com ele: o professor é sempre um funcionário, enquanto o místico realmente não o é.
Não penso, por isso, que haja a necessidade de uma nova gramática teológico-filosófica: já a possuímos desde a antiguidade clássica. Ao contrário, há a necessidade de experiência.

IHU On-Line – Como as grandes religiões do mundo abordam a mística? Que diferenças existem em termos de compreensão da mística e da sua experiência?

Marco Vannini – Sobre esse tema, eu escrevi um livro: La mistica delle grandi religioni, onde sustento, acima de tudo, que, no coração das grandes religiões, que, no entanto, são diversas entre si em tantas coisas, e até mesmo opostas – e como tais muitas vezes se combateram e ainda se combatem –, há uma mística quase idêntica. Embora as religiões sejam diferentes, dizia Simone Weil, as místicas se assemelham até quase a identidade.
Dito isso, já é implícito o fato de que a relação entre mística e religião é uma relação não fácil, ou melhor, difícil, muitas vezes conflituosa. De fato, a mística – que, como dizia acima, é a legítima herdeira da filosofia antiga – é por sua natureza inclinada a superar toda forma de mediação, voltada a uma relação direta entre a alma e Deus, que se encontram até se reconhecerem como uma coisa só. Por isso ela alimenta, ao mesmo tempo, a religião, ou seja, a religiosidade mais profunda e remove toda religião quando ela pretende se constituir como dogmática, prescrição moralista ou sacerdotal. Exemplar nesse sentido é a o fato de a mística se pôr diante das Sagradas Escrituras (quando se possui uma religião): nasce aqui, de fato, a oposição espírito-letra, por força da qual o místico, mesmo quando respeita profundamente a Escritura, considerando-a “palavra de Deus”, pensa, no entanto, que a palavra mais verdadeira e profunda é aquela que o espírito dirige ao espírito, para além e acima de toda palavra escrita. Deus é espírito, disse Jesus à samaritana (João 4, 24) e não é honrado nem nos templos nem sobre os montes, mas somente em espírito e verdade. Ou melhor, o distanciamento, que é o coração de toda mística, se lança até ser distanciamento das Escrituras, e, como vimos em Marguerite Porete, até de Deus mesmo, enquanto imagem determinada, finita. Não é por acaso que as palavras dirigidas por Jesus aos discípulos despedindo-se deles em João 16, 7 – “É necessário para vós que eu vá, pois, se eu não for, o Espírito não virá a vós” – são singularmente caras aos místicos mais profundos. E é evidente que isso não é a coisa mais apta para que as religiões sustentem em sua estrutura positiva, litúrgica, dogmática etc.
Também é preciso notar que, entre as grandes religiões do mundo, as mais hostis à mística são seguramente a judaica e a muçulmana, enquanto religiões da absoluta transcendência de Deus, para as quais é blasfema a ideia da união homem-Deus, ou também da divinização do homem. A expressão “mística judaica” é recentíssima: foi cunhada no século XX por Buber  e Scholem , mas até então soava como absurda, precisamente como dizer “um ferro de madeira”, e é bem difícil assimilar um fenômeno como a cabala a Plotino ou ao Mestre Eckhart! No islamismo, sem dúvida houve grandes místicos – penso sobretudo em Al-Hallaj  e em Ibn-Arabi  –, mas não é por acaso que eles foram considerados heterodoxos. O cristianismo, ao invés, precisamente enquanto cristianismo, ou seja, religião fundada sobre Cristo, considerado verdadeiro Deus e verdadeiro homem – ou seja, religião da divino-humanidade – é intrínseca e substancialmente místico.
Em menor medida, também se pode dizer isso sobre a grande tradição religiosa da Índia, em particular do não dualismo (advaita), porque aqui também é claríssimo o sentido da unidade entre espírito de Deus e espírito do homem. Nos nossos dias, é interessantíssimo e importante o caso de Henri le Saux , o beneditino francês que foi à Índia e ali assumiu vestes, linguagem e nome, reconhecendo a profundidade do vedanta, mas nem por isso abandonou o cristianismo: ao contrário, considerou que a experiência espiritual da Índia o ajudava a compreender verdadeiramente a própria mensagem cristã. Essa é uma consideração que compartilho plenamente: com le Saux, considero que o futuro do cristianismo deve, por assim dizer, “atravessar” a espiritualidade da Índia. De outra parte, aquilo que encontramos na Índia não é, de fato, dessemelhantes daquilo que podemos encontrar também no Ocidente: o livro de Rudolf Otto , West-Östliche Mystik, que eu traduzi ao italiano há tantos anos, pondo em debate Mestre Eckhart e Sankara, mostra isso adequadamente. A relação de estreitíssima semelhança entre Eckhart e le Saux também é objeto de meu livro Oltre Il cristianesimo [Além do cristianismo], no prelo.

IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?

Marco Vannini – Acredito que o renovado interesse pela mística, feminina ou não, depois de tantos séculos de remoção, é um dos sinais mais positivos em âmbito religioso, e cristão em particular. É preciso, no entanto, que se sublinhe o seu valor de conhecimento, psicológico e espiritual, e não o confessional, como, ao contrário, tem sido feito até agora.

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