Edição 385 | 19 Dezembro 2011

“A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”

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Moisés Sbardelotto


IHU On-Line – Em linhas gerais, quem foi Angela de Foligno? O que mais caracteriza a sua mística e espiritualidade?

Marco Vannini – Angela de Foligno foi uma mulher que viveu intensamente a experiência da separação, do despojamento interior – do qual esse exterior, a nudez, é manifestação sensível – e da perda do eu, até a identificação com o Tu divino, na específica forma do Cristo: “Tu és eu, e eu sou tu”, escreve ela, de fato, no Memorial. O central da sua mística me parece ser a consciência alcançada de que “tudo está bem”, até à paradoxal afirmação de que Deus está presente “em toda criatura, em qualquer coisa que exista, seja diabo, seja anjo bom, seja no inferno ou no paraíso, seja no adultério e no homicídio, seja nas obras virtuosas, em qualquer coisa provida de ser, mesmo que seja bela ou se é torpe”.

IHU On-Line – Que imagem de Deus ou do Mistério Angela de Foligno nos deixou em seu Liber?

Marco Vannini – Deixou-nos a imagem de Deus como Nada – ou seja, um Todo que não é possível compreender senão negativamente, como Nada justamente. Isso explica por que Angela, exatamente como Marguerite Porete, fala do não amor como o próprio cumprimento do amor. De fato, o amor sempre se dirige a algo determinado, finito, e depende dos laços do próprio eu, enquanto o amor mais puro não tem objeto, é “sem porquê” (uma expressão que já encontramos na poesia do seu contemporâneo úmbrio, o franciscano Jacopone de Todi) e deve cessar precisamente enquanto amor, desejo, vínculo, em perfeita correspondência com o extinguir-se do próprio eu.

IHU On-Line – Que relação há entre Angela e Francisco de Assis? Em que sentido a mística de Angela – que nasceu pouco mais de 20 anos após a morte do santo de Assis – foi uma mística “franciscana”?

Marco Vannini – Diria que ela foi franciscana sobretudo pelo lugar e pela época, aquela Úmbria mística da Idade Média que sequer se pode conceber sem a presença do espírito franciscano. Também sublinhamos que, naquela época, houve um florescer extraordinário de experiências místicas femininas. Margherita de Cortona, Vanna de Orvieto, Chiara de Montefalco, todas coetâneas de Angela e operantes a poucos quilômetros de distância. Para todas elas, o espírito franciscano se manifesta, em primeiro lugar, na pietas voltada à Paixão de Cristo, ao Cristo crucificado, literalmente “co-sofrido” [com-patito], ou seja, compartilhado na sua Paixão.
Específica de Angela, mas ainda de cunho franciscano, é a prática ascética, verdadeiramente intensa; a escolha voluntária da pobreza, fora de conventos ou instituições; a caridade operante, voltada aos pobres e aos doentes. Muito significativo nesse sentido também é o relativo distanciamento que Angela mostra com relação à função intermediária do clero, da cultura teológica e religiosa, em benefício de um saber totalmente interior, dado pelo livre colóquio da alma com Deus. “Aqueles que leem a Escritura entendem pouco; aqueles que sentem algo de mim entendem bem mais”, escreve por isso Angela.

IHU On-Line – E o que mais é possível falar sobre Marguerite Porete? Que outros aspectos é possível ressaltar sobre a experiência mística dessa mulher francesa?

Marco Vannini – Não sabemos com precisão quem foi Marguerite Porete, já que as únicas notícias certas que temos sobre ela são aquelas deduzidas das atas do processo que a condenou à morte como herege, na Paris de Felipe, o Belo. No entanto, ela devia ser uma mulher de cultura, provavelmente de origem aristocrática, como fica evidente no livro, no qual cortesia e nobreza desempenham um papel essencial.
Como já disse, creio que os pontos centrais da verdadeira mística são sempre os mesmos, ou muito de perto correspondentes. Em Marguerite, no entanto, a via do distanciamento, a via do nada é percorrida verdadeiramente até o extremo limite, com uma coerência, uma determinação e uma radicalidade impressionantes, que se lança ao distanciamento até de Deus. Limito-me a citar esta extraordinária passagem, do capítulo 135 do Espelho:
“Para a alma tudo é uma só coisa, sem porquê, e ela é nada em tal Uno. Então não sabe mais o que fazer com Deus, nem Deus com ela. Por quê? Porque ele é, e ela não é. Ela não retém mais nada para si, no seu próprio nada, já que lhe basta isso, ou seja, que ele é, e ela não é. Então, é nada de todas as coisas, já que é sem ser, e lá onde era antes de ser. Por isso ela tem de Deus aquilo que tem; e é aquilo que Deus mesmo é, por transformação de amor”.

IHU On-Line – Para Romana Guarnieri, O espelho das almas simples, de Marguerite, é uma “autêntica obra-prima da literatura mística de todos os tempos”. Em sua opinião, qual é a importância dessa obra?

Marco Vannini – Acima de tudo, devo dizer que compartilho plenamente o juízo que Romana Guarnieri dá sobre esse escrito, com a qual tive a honra de colaborar na edição italiana do Espelho. O Mestre Eckhart se inspirou nele em alguns pontos do seu pensamento e, em particular, naqueles mais profundos e ousados, como, por exemplo, no célebre sermão Beati pauperes spiritu [Bem-aventurados os pobres de espírito], no qual ele fala da necessidade de que o homem “pobre” não tenha na alma sequer um “lugar próprio”, de modo que o próprio Deus seja o “lugar próprio da sua obra, dado que Deus opera em si mesmo”. Aqui é clara a leitura do Espelho, no qual a alma aniquilada “não tem fundo e, portanto, não tem lugar próprio e, consequentemente, não tem amor próprio”. De fato, para Marguerite, assim como para Angela de Foligno, a alma que se fez verdadeiramente nada “colocou todo o amor debaixo dos pés”.
O livro de Marguerite, embora condenado, continuou a ser lido, mais ou menos ocultamente. Seguramente foi conhecido por santa Catarina de Gênova, assim também pela milanesa Isabella Berinzaga, cujo Breve compendio sulla perfezione cristiana, traduzido ao francês no fim do século XVI, está na base do extraordinário florescimento místico do século XVII na França. Simone Weil (sempre se trata de mulheres!) também o leu e o amou, mesmo que no fim de sua breve vida, e hoje me parece que ele é unanimemente reconhecido em toda a sua extraordinária profundidade.

IHU On-Line – O que foi o movimento beguinal, do qual Marguerite fez parte? E qual foi a novidade trazida pelas beguinas à mística?

Marco Vannini – O movimento das beguinas foi um movimento extraordinário, sem origem, sem fundadora, sem regra. De fato, as beguinas eram mulheres, não casadas e não Irmãs, que, por cerca de oito séculos, mas, sobretudo, em plena Idade Média e no vale do Reno, viveram em pequenos grupos do seu próprio trabalho ou na mendicância, em uma extraordinária síntese de comunhão e de liberdade, de aprofundamento espiritual e de empenho caritativo – basta pensar que foram, de fato, as primeiras enfermeiras da história europeia. Pelo seu caráter de independência da autoridade masculina, o movimento beguinal poderia ser considerado o primeiro movimento feminista, mas seria verdadeiramente desviante inscrevê-lo nas categorias redutivas do feminismo – sem contar, depois, o fato de que ele também teve um correspondente masculino, o dos beguinos, ou begardos.
Não há dúvida de que entre as beguinas houve personalidades eminentes na história da mística – Beatrijs de Nazareth, Hadewijch de Antuérpia, a própria Marguerite Porete, se é que foi beguina – mas sobre o movimento beguino pesou frequentemente a suspeita de heresia, voltada por diversas vezes a essas mulheres por parte das autoridades eclesiásticas, talvez temerosas, acima de tudo, de perder o controle da sociedade. Nesse caso, mais uma vez, a “liberdade do espírito”, do qual a mística é composta, foi advertida como perigosa para o dogma, para a doutrina, para a instituição religiosa constituída. Não resta dúvida, entretanto, que a mística beguinal – Minnenmystik, “mística do amor cortês” por excelência – alimentou com a sua riqueza alguns dos maiores místicos medievais, como Ruusbroec  e Eckhart.

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