Edição 383 | 05 Dezembro 2011

A herança patrimonialista no Judiciário brasileiro

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Márcia Junges



Orçamento determinado judicialmente

Esse é um tipo de ação que existe em um grande número: pedindo, de forma individualizada, um medicamento, ausente nas políticas públicas, a custa do Estado. É uma questão básica de economia: há escassez. Em algum lugar irão faltar esses recursos. E muitas vezes são tratamentos caros, sem eficácia comprovada, com medicamentos comerciais (muitos médicos excluem a possibilidade de utilizar genéricos em seus laudos). Isso gera um duplo problema: o dos recursos, que irão faltar em outro lugar, que inclusive poderiam gerar mais efeitos, como seria o caso de investimento em saneamento básico, e o de legitimidade política. Em algumas esferas de poder, mais da metade do orçamento da saúde é determinado judicialmente. Onde está a legitimidade democrática para isso? O que eu vejo é que o Judiciário tem extrapolado sua competência. Entretanto, é preciso cuidado. Ele é uma esfera importante para a democracia, especialmente no caso dos direitos sociais. Como já dito, muitas vezes o próprio Estado não cumpre o que se propõe a cumprir. Aí sim é a vez de o Judiciário intervir, mas o instrumento mais correto são as ações coletivas. Não é possível que se continue a resolver os problemas de forma individualizada, privilegiando quem tem acesso à justiça em detrimento dos outros.

IHU On-Line – O Judiciário brasileiro está sobrecarregado? O que explica a morosidade pela qual é tão criticado?

Leonardo Grison – Que o Judiciário está sobrecarregado não há dúvidas. A morosidade cada vez cresce mais. A meu ver, o principal erro na análise desse problema é isolar um dos vários fatores e não observar os problemas estruturais. Antes de enfrentar a questão, gostaria de lembrar o posicionamento do falecido professor Ovídio Araújo Baptista da Silva, para quem a jurisdição funciona, e funciona muito bem, para aquilo que foi concebida. Dizia ele: “ainda não se demonstrou que nosso sistema processual fora programado para andar rápido”. Prossegue o autor afirmando que “ao contrário, ao priorizar o valor segurança, inspirada em juízos de certeza, como uma imposição das filosofias liberais do Iluminismo, o sistema renunciou à busca de efetividade – que nossas circunstâncias identificam com celeridade –, capaz de atender à solicitação de nossa apressada civilização pós-moderna”.  A celeridade, junto com a justiça, são valores que foram esquecidos, para se dar lugar ao valor segurança, tão caro às nossas classes dominantes. Também cito Álvaro Rocha, para o qual “a “morosidade” do Judiciário ou a “lentidão” da Justiça não constitui um verdadeiro problema para o Judiciário, na medida em que a tentativa de sua resolução apenas legitima ainda mais a sua necessidade de existência, ao levar à discussão sobre a falta de prioridade à justiça e à necessidade de maiores recursos humanos e financeiros, o que redunda na impossibilidade de responsabilizar o judiciário pela falta de solução desse problema”.  Daria para acrescentar, ainda, o fato de que é possível que exista grandes interesses na morosidade do Judiciário, principalmente se considerarmos que os grandes demandados são o próprio Estado, bem como os grandes grupos de empresas de telecomunicação. Um dos problemas que é apontado com grande frequência é o de gestão. A análise é correta. Hoje todo advogado sabe o tempo que um processo perde do momento que sai do gabinete do juiz até ter uma resposta prática. É o tempo que se perde nos cartórios. Em geral, faltam funcionários e sobra burocracia. Grande parte desse problema pode ser solucionado pela virtualização dos processos. É inegável que nesse ponto há um gargalo. O problema é que vão aparecer outros gargalos. Se essa parte começar a andar rapidamente, vão faltar juízes para tanto trabalho.
Massificação dos processos

Além desse aspecto, para o qual já há muita gente preocupada e muitas ações planejadas, há outros, como é o caso da massificação dos processos. Em boa parte, o problema se deve a fatores estruturais. Há uma verdadeira cultura do conflito, da estatização. Todos querem a chancela do grande pai Estado para resolver seus problemas. Os advogados, nesse ponto, não deixam de ter grande parte de culpa. Assim como juízes. O problema é o tipo de solução que se pensa: cortar garantias e diminuir recursos, sem grandes preocupações com a qualidade das decisões. Há muito tempo Lênio Streck vem falando dos recursos de Embargos de Declaração, um recurso que nem sempre é criticado, como outros existentes. Ele serve para atacar decisões judiciais “obscuras, omissas ou contraditórias”. Ora, mas se assim o são, não deveriam ser nulas? Em uma ordem democrática é possível que um juiz dê uma decisão “obscura”, “omissa”? E aí se percebe que a questão da qualidade das decisões judiciais não pode ser tida como separada da efetividade. Uma breve pesquisa nos nossos tribunais já revela a quantidade absurda de recursos dessa natureza, que na maioria dos casos é interposto porque o advogado simplesmente não entendeu a decisão judicial, ou, pior ainda, o juiz foi omisso e não decidiu sobre o que deveria ter decidido. Para os problemas de gestão, e um certo número excessivo de recursos existentes, há soluções relativamente simples.
Persiste, porém, o problema cultural. Não é possível que todas as formas de conflito tenham de ser resolvidas pelo Judiciário. Não há estrutura que aguente isso. É preciso investir na conscientização das formas alternativas. Contudo, vejo com pessimismo essa realidade em um país de tradição patrimonialista. O brasileiro tem uma relação masoquista com o Estado, que é autoritário. Ele gosta do Estado. Afinal, como explicar que as duas pessoas sentando e conversando não se entendem, mas na frente do juiz o acordo ocorre? Há quase que um fetiche.

IHU On-Line – Que passos e/ou obstáculos ainda são percebidos na reforma do Judiciário brasileiro? A emenda 45/04 é suficiente nessa reformulação do órgão?

Leonardo Grison – Entendo que deveríamos pensar mais em mudanças culturais do que em reformas. Para isso, não há outro caminho senão o da educação. E aí temos um grande problema, que é o do ensino jurídico. Desde que se criou a primeira escola de direito (Bolonha – 1088), constroem-se dois mundos separados: o da prática jurídica e o das universidades. Continua-se formando profissionais que não estão habilitados para a vida profissional (o exame de ordem comprova). Há um abismo entre a pós-graduação e a graduação, por dois problemas, uma ausência de preocupação dos profissionais mais ligados à dogmática jurídica com as questões mais profundas, que exigem pensar sob uma perspectiva macro, bem como uma série de pesquisas que são produzidas sem qualquer compromisso social, voltadas apenas a consumo interno. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, infelizmente, influencia esse modelo ao deixar a pesquisa tão presa ao Estado, bem como dá peso maior na avaliação para as revistas vinculadas às universidades. Acaba que esses dois mundos, o das universidades, das pós-graduações, das pesquisas, e o da práxis jurídica, dos “operadores do direito”, dos foros, dos tribunais, não se comunicam. O que temos feito são reformas pontuais, e é por isso que elas não dão cabo aos problemas.
Com a emenda 45 não foi diferente, e não será daqui pra frente. Não que esse tipo de reforma não deva existir, mas não são elas que resolverão os grandes problemas do Judiciário. Os grandes problemas são de ordem estrutural, como também é o caso do já mencionado patrimonialismo. O problema é que esses problemas são resolvidos com respostas lentas. É construção de imaginário. Leva-se muito tempo para mudar a cultura de um povo. Na sociedade da pressa, essa não é uma resposta aceitável. Por isso, a todo momento existe alguma reforma. Se não for o Judiciário será o processo, ou até mesmo a Constituição. E nem sempre essas reformas são harmônicas, já que ocorrem pelas mais variadas motivações, muitas vezes contraditórias.

IHU On-Line – Que novo modelo jurídico pode surgir a partir da ética da alteridade e da hermenêutica filosófica? O que isso implicaria em termos de mudanças nesse poder?

Leonardo Grison – A pergunta aponta para um projeto de pesquisa que realizei em 2005 na condição de aluno de iniciação científica. Como tal, posso responder apenas parcialmente, já que na época não trabalhei com o referencial teórico da ética da alteridade, apenas com o da hermenêutica filosófica, com o qual ainda dialogo. As mudanças que se apontam são várias. Uma delas é a superação do velho modelo exegético, de juiz “boca da lei”, como apontava Montesquieu, ou como queria a Escola da Exegese. Entretanto, esse discurso já está batido, e é preciso ir além, fazendo a crítica da crítica. O que se vê hoje é um Judiciário impregnado de decisionismos. Vale dizer: autoritário. Tudo isso se fez sob o manto da discricionariedade jurídica, que é fortalecida pelo imaginário positivista. A hermenêutica, dessa maneira, promove uma superação das teorias do direito positivistas, aproximando mais de autores como Dworkin . Este fala de uma resposta correta, ao passo que Gadamer  fala de uma interpretação correta, no caso, a melhor interpretação. As conclusões são as mesmas, apenas em níveis diferentes. A legitimidade também é a mesma: a tradição. Nesse caso, os dois autores inclusive utilizam o mesmo termo. Para que uma decisão judicial seja correta, é preciso que o juiz reconstrua a história institucional do Direito. Não é possível que cada decisão seja um evento isolado e descompromissado. É preciso que se busque coerência. Não há como, em uma democracia, entender que uma resposta é correta, em Direito, apenas pela procedência: o Estado. Essa seria uma primeira grande mudança no Judiciário: a produção de um imaginário mais “responsável”, mais amarrado aos preceitos constitucionais, já que a Constituição inclusive determina a necessidade de decisões judiciais bem fundamentadas.

Herança histórica

Mas há um outro aspecto que chama atenção na teoria de Gadamer: o problema da consciência histórica efetual. Para o filósofo, o interprete é refém de sua história. A história o “efetua”. Isso, em si, não é um problema. Contudo, para uma adequada compreensão, é preciso que haja consciência dessa história efetual. Isso obviamente não é tão simples, já que não é possível “descobrir” de maneira fixa e imutável que “história” é essa. Até porque isso seria uma objetificação tremenda. De todo jeito, há aqui uma ponte para pensar as questões históricas e sociológicas. Em particular, relembro do passado patrimonialista brasileiro. De que maneira decide um juiz que nasceu e cresceu em um ambiente patrimonialista? Em um país de tradição autoritária, pode o Judiciário ser diferente? Ou, ao contrário, a tendência é que se repita esse modelo? Essa reflexão é tarefa hermenêutica de cada juiz. E se observarmos, nosso Judiciário traz consigo essa herança histórica. Nosso modelo é concentrador: as principais decisões são levadas à Brasília, onde os tribunais superiores sofrem influência política, em razão de suas nomeações. O Direito é visto como um fenômeno de poder. Por isso é Direito o que o juiz diz que é. Já teve ministro inclusive dizendo que não se importava com o que a doutrina escrevia.

A doutrina, por sua vez, se desenvolveu principalmente em um modelo “comentarista”. Afinal, para que doutrinar, se a última palavra será sempre a do juiz? Melhor então comentar as decisões do Supremo Tribunal Federal, sem ousar criticar, tampouco querer criar. Todas essas questões extrapolam o referencial teórico da hermenêutica filosófica, mas ela chama essas questões, na medida em que entende que a verdade é uma construção intersubjetiva, passível de averiguação, através de um critério, o da tradição. No Direito, isso permite que se discutam as questões democráticas, servindo como instrumento de combate ao autoritarismo. É preciso que se tenha uma maneira de dizer que uma decisão do Supremo Tribunal Federal não é correta, se for o caso, não podendo, em uma democracia, considerar correta apenas porque tem de ser cumprida, como pensa o imaginário solipsista que plasmou as teorias do positivismo jurídico, que tão bem encaixa em um Estado autoritário.

Leia mais...

Leonardo Grison já concedeu outra entrevista à IHU On-Line e é autor de uma publicação pelo IHU:
* Da hermenêutica de Heidegger à valorização do humano: um diálogo entre filosofia e direito privado. Edição 274 da Revista IHU On-Line, de 22-09-2008;
* A busca pela segurança jurídica na jurisdição e no processo sob a ótica da teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. Edição 133 dos Cadernos IHU ideias.

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