Edição 383 | 05 Dezembro 2011

A herança patrimonialista no Judiciário brasileiro

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Márcia Junges

Impregnado de decisionismos, esse poder é autoritário sob um manto de discricionariedade jurídica, pontua Leonardo Grison. Nomeações de cargos de confiança demonstram viés patrimonialista através da prática do apadrinhamento

Para o advogado Leonardo Grison, um dos grandes problemas do Judiciário no Brasil é que esse poder também é patrimonialista: “Nesse caso, o patrimonialismo se revela muito mais como cultura do que poder. Ou seja, é inconcebível que o Judiciário queira, por exemplo, proteger a apropriação privada do Estado que os partidos promovem”. Em sua opinião, “é preciso asseverar que o Judiciário é sim, estamental e elitista. Ou por algum acaso os pobres e a elite são punidos com o mesmo rigor?” Grison afirma que “nosso Judiciário traz consigo essa herança histórica. Nosso modelo é concentrador: as principais decisões são levadas à Brasília, onde os tribunais superiores sofrem influência política, em razão de suas nomeações”. E arremata: “O brasileiro tem uma relação masoquista com o Estado, que é autoritário. Ele gosta do Estado. Afinal, como explicar que as duas pessoas sentando e conversando não se entendem, mas na frente do juiz o acordo ocorre? Há quase que um fetiche”. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Leonardo Grison é graduado e mestre em Direito Público pela Unisinos com a dissertação O patrimonialismo na administração pública: os cargos em comissão, que em breve será publicada. É professor na Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul – Fisul, em Garibaldi e mantém o blog http://leogrison.blogspot.com/.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma o passado patrimonialista brasileiro persiste, sobretudo em cargos de comissão no Brasil? Qual é a ação do Judiciário nesse cenário?

Leonardo Grison – Vejo o problema do patrimonialismo no Brasil sob um duplo aspecto: de cultura  e de poder. No caso específico dos cargos em comissão, percebe-se que eles se apresentam como um aspecto de poder, tal qual Raymundo Faoro  descreve em Os donos do poder. Infelizmente, a obra de Faoro faz uma análise até a Era Vargas, levando muitos a crerem que essa já é uma realidade ultrapassada. Não é. Em escritos mais recentes o próprio autor asseverou que “é muito difícil que nós, tendo saído de um tipo de regime como saímos, acreditemos que tenhamos entrado num outro tipo de regime sem nenhum resquício daquele”.  Então, vem a parte complicada: a transição de um regime democraticamente eleito para um regime democrático. É mais do que natural que grande parte dos problemas patrimonialistas advindos da ditadura militar permanecessem. Há um agravante: a Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição não foi autônoma, foi um Congresso Constituinte. Isso fez com que “brechas” permanecessem no texto da Constituição. Uma delas é o caso dos cargos em comissão. No artigo 37 temos vários princípios da administração, como impessoalidade, moralidade, eficiência , e em seguida a exigência de concurso para o acesso aos cargos públicos. Sem parecer ter muita coerência com essas disposições, aparece a “exceção” à regra: cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração por parte do governante.  É contraditório com a ideia de impessoalidade um tipo de cargo que é baseado na confiança pessoal do governante. Na prática, o uso abusivo desse expediente de nomeação de cargos evidencia que há uma prática patrimonialista. O objetivo dessa prática é fortalecer o estamento. Os nomeados, via de regra, não estão lá por mérito pessoal, mas sim por alguma espécie de apadrinhamento. Geralmente político, mas também pessoal. Há um interesse por parte dos políticos que estão no poder em se manterem no poder. Segundo Faoro, esse é o único objetivo de um estamento.
Vários são os motivos de interesse em um cargo público, como a notoriedade, a visibilidade, bem como o próprio salário, além do poder de mando, que às vezes cria pequenos caudilhos. Os vencimentos do cargo são um ponto-chave: a maioria dos partidos políticos estabeleceu, alguns inclusive colocando em estatuto, uma espécie de dízimo. Contribuições que variam para alguns casos em até 15% , que devem ir para os cofres do partido que indicou a nomeação. Os cargos geralmente são rateados entre os membros da coligação de acordo com os partidos que compõem a base (constando, nisso também, percentual mínimo em decisões de convenções partidárias em alguns casos). Em breve síntese, esse é o uso patrimonialista que se fazem dos cargos em comissão.

Judiciário patrimonialista

Os princípios constitucionais acabam virando mera promessa simbólica.  Não se pensa no bem da administração pública, só no poder. Nesse processo, o poder Judiciário tem grande importância. Em termos weberianos (é preciso recorrer a ele, pois é onde reside o fundamento do “patrimonialismo”): o patrimonialismo é um tipo específico de dominação, subgênero do gênero dominação tradicional. Como Weber  bem ressalta, os tipos de dominação podem coexistir. Em nosso caso, praticamente todo nosso ordenamento jurídico consagra um modelo de dominação racional. O desafio então é superar o passado patrimonialista e impor a dominação racional. Isso só é possível com forte controle da administração pública, fazendo cumprir a Constituição. Os mecanismos, em parte, já existem, e o controle judicial é um dos meios mais efetivos de controle da administração pública. Nossa Constituição impõe limites subjetivos, como é a exigência de que os cargos sejam restritos a funções de direção, chefia e assessoramento, o que exclui a possibilidade de utilização para cargos meramente técnicos bem como aponta para necessidade de se estabelecer, via lei complementar (o que nunca se fez), limites ao número de cargos, em relação ao total de servidores, bem como percentual mínimo a ser ocupado por servidores efetivos (CF Art. 37, V).

O grande problema é que o Judiciário também é patrimonialista. Nesse caso, o patrimonialismo se revela muito mais como cultura do que poder. Ou seja, é inconcebível que o judiciário queira, por exemplo, proteger a apropriação privada do Estado que os partidos promovem. Fora um esquema gigantesco de corrupção, isso não teria lógica. O patrimonialismo se revela em um certo “sentimento de pertença a uma elite”, tão próprio da lógica estamental. O bacharelismo é uma expressão disso. Nesse ponto, Sergio Buarque de Holanda  se revela adequado para compreender o tema.
Os juízes, ao enfrentar o tema, são cordiais. Num contexto em que a maioria dos cargos em comissão estão em irregularidade, não se vê tanta punição. Ainda assim, cabe a ressalva: o Judiciário, junto com o Ministério Público, é um dos poucos que ainda tem lutado contra essa realidade. Os tribunais de contas também prestam um grande serviço, mesmo com toda influência patrimonialista que existe no seu sistema de nomeações. Feita a ressalva, é preciso asseverar que o Judiciário é sim estamental e elitista. Ou por algum acaso os pobres e a elite são punidos com o mesmo rigor?

IHU On-Line – O que são os critérios de efetividade dos direitos sociais pelo poder Judiciário?

Leonardo Grison – A resposta é complicada em tempos de judicialização da política. O Judiciário quer ser a vanguarda, quer ser protagonista, e por vezes ultrapassa seus limites constitucionais. No caso dos direitos sociais, via de regra precisam ser implementados por meio de uma política pública. O Judiciário, então, é um grande fiscalizador dessas políticas públicas. O problema é que ele não pode simplesmente criar políticas públicas de direitos sociais, usurpando competências. Essa linha, por vezes, é mais tênue do que parece. No caso do direito à saúde, observa-se com mais propriedade.

IHU On-Line – Como se dá a relação do poder Judiciário na garantia de direitos sociais como a saúde, por exemplo?

Leonardo Grison – O tema do direito à saúde é mais do que propício para discutir os limites e possibilidades de atuação do Judiciário no controle da efetivação dos direitos sociais. O volume de demandas foi tão grande que o STF decidiu realizar uma audiência pública a respeito do tema.  Também pudera, os números do SUS são assustadores, já que 2/3 da população brasileira depende exclusivamente dele, e o total da população é constituído de potenciais usuários. Como o Judiciário não cria demandas, só podemos concluir que onde essas questões deveriam estar sendo resolvidas não estão sendo. Aí vem o grande problema mencionado na resposta anterior: o Judiciário deve fiscalizar políticas públicas, e não criá-las. É como se alguém dissesse “quem não tem cão, caça com gato”. Mas o gato não sabe caçar. E aí, o que acontece é que o Judiciário consegue dar a resposta mais adequada, mas mesmo assim é obrigado a responder.

No caso do direito à saúde, várias são as causas do número excessivo de ações. Por vezes, o Judiciário está apenas cumprindo seu papel de fiscalizador, já que os percentuais mínimos de investimento na área não ocorrem, ou, as políticas públicas existentes não estão sendo cumpridas, ou ainda, não existem. Outras vezes, porém, há tudo isso, mas o cidadão acredita que ele tem um direito subjetivo, de cariz liberal-individualista, à saúde, que o permite cobrar do Estado o tratamento que quiser, da forma que quiser, quando quiser. E é aí que começam os problemas. O juiz tem de decidir diante de uma solução delicadíssima: entre a vida e a morte. Essa alegação, nem sempre verdadeira. Na ampla maioria dos processos é alegado risco de morte. No entanto, as estimativas são de que 2/3 das ações são para fármacos de uso contínuo, exames, fraldas, leite, complementos alimentares, etc.  E aí vem a discussão dos limites da decisão judicial que, querendo ou não, tem de respeitar as leis e a Constituição do país.
No caso do direito à saúde, há a lei 8.080 de 1990. Tal lei estabelece como se dará a aplicação do direito fundamental à saúde, estabelecendo-se os medicamentos de maior relevância e a atribuição da competência de cada ente federativo. Aos municípios cabe a distribuição dos medicamentos essenciais. A base é a famosa lista, a Relação Nacional de Medicamentos – Rename. Ela é elaborada com base em definições da Organização Mundial da Saúde – OMS. Já aos estados federados, distrito federal, e à união, em parceria, cabe o fornecimento dos medicamentos de caráter excepcional. Cabe ao gestor estadual definir os remédios que serão adquiridos diretamente pelo Estado. Considerando tudo isso, e mais o fato de que quem tem legitimidade democrática para elaborar as listas de medicamentos é o poder Executivo, pode o Judiciário simplesmente ignorar todos esses critérios? Ou seja, se há uma lista de medicamentos, elaborada de forma democrática, que atenta para uma repartição de competências, também democrática, é possível o fornecimento, via Judiciário, de remédios não integrantes da lista? Só se toda essa legislação for considerada inconstitucional. Na prática, porém, se vê muito isso. Medicamentos não constantes na lista, muitas vezes nem aprovados, ainda em caráter experimental, e o que me parece ser o caráter mais grave: de maneira individual. Ao decidir um caso de maneira isolada, e não em uma ação coletiva, o juiz só tem poder para resolver aquele caso. E como fica o direito à saúde dos que não conseguem ter acesso à justiça? Nem todos têm o discernimento necessário para isso, para não falar que em muitos estados da federação a Defensoria Pública ainda não é bem estruturada.

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