Edição 379 | 07 Novembro 2011

Sem grandes intuições, não há grande filosofia

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Márcia Junges e Graziela Wolfart


IHU On-Line – Quais são os clássicos filosóficos latino-americanos? Como se dá a sua interação e diálogo com o pensamento europeu?

 

Julio Cabrera – É bom que pergunte isso porque poucas são as obras do pensamento clássico latino-americano que foram alguma vez traduzidas ao português. Muitas obras do pensamento clássico brasileiro nunca foram reeditadas e apenas são encontradas em sebos em péssimo estado. Isso mostra claramente uma política editorial e uma lógica de visualização (e não visualização) da produção filosófica do planeta.
Pensadores fundadores do pensamento latino-americano do século XIX foram: Andrés Bello (Venezuela, 1781-1865), Juan Bautista Alberdi (Argentina, 1810-1884), Domingo Faustino Sarmiento (Argentina, 1811-1888) e Francisco Bilbao (Chile, 1823-1865). Mas temos também os “clássicos” latino-americanos modernos: Tobias Barreto (Brasil, 1830-1899), José Ingenieros (Argentina, 1877-1925), José Martí  (Cuba, 1853-1895), José Enrique Rodó (Uruguai, 1871-1917). Entre os “clássicos” latino-americanos contemporâneos nós temos: Carlos Vaz Ferreira (Uruguai, 1882-1959), Alejandro Korn (Argentina, 1860-1936), Raimundo de Farias Brito (Brasil, 1862-1917), Graça Aranha (Brasil, 1865-1931). Mas a lista seria interminável: Alejandro Deustúa (Perú, 1849-1945), Antonio Caso (México, 1883-1946), José Vasconcelos (México, 1882-1959), Pedro Henriquez Ureña (República Dominicana, 1884-1946), Jackson de Figueiredo (Brasil, 1891-1928), Samuel Ramos (México, 1897-1959), José Gaos  (Espanha-México, 1900- 1969), Vicente Ferreira Da Silva (Brasil, 1916-1963), Francisco Romero (Espanha-Argentina, 1891-1962) e Carlos Astrada (Argentina, 1894-1975).

Na segunda metade do século XX, temos importantes pensadores como: José David Garcia Bacca (Espanha-Venezuela, 1901- 1992), Leopoldo Zea (México, 1912- 2004), Octavio Paz  (México, 1914- 1998), Augusto Salazar Bondy (Perú, 1925-1974), Francisco Miró Quesada (Perú, 1918), Arturo Andrés Roig (Argentina, 1922) e Paulo Freire  (Brasil, 1921- 1997). Menção especial merece a chamada “filosofia da libertação”, como a mais importante corrente filosófica surgida em hispano-américa, mais especificamente na Argentina, em inícios da década de 1970, com importantes antecipações no México (Leopoldo Zea) e Peru (A. Salazar Bondy). Seus representantes mais notáveis são: Enrique Dussel (Argentina, 1934-), o pensador ibero-americano de maior projeção internacional no momento atual; Juan Carlos Scannone, Mario Casalla, Rodolfo Kusch, Carlos Cullen, Horacio Cerruti Gulberg, todos argentinos. Nos estudos interculturais uma figura proeminente é Raúl Fornet-Betancourt (Cuba, 1946). Entre os pensadores brasileiros mais recentes estão Miguel Reale, Vilém Flusser (Checo, naturalizado brasileiro), Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, Newton da Costa e Carlos Cirne-Lima .

Esses autores são, em sua maior parte, ignorados pelos professores de filosofia brasileiros (salvo exceções pertencentes a grupos específicos de estudo), e, portanto, igualmente ignorados pelos seus estudantes, treinados apenas em pensamento europeu. Quem quiser adquirir maiores conhecimentos sobre filosofia latino-americana, pode consultar o livro de Carlos Beorlegui, Historia del pensamiento filosófico latino-americano, publicado pela Universidad del Deusto, Bilbao, 2006.

O autor como tema de estudo
O diálogo com o europeu pode ser de mera leitura exegética, ou devoradora, num sentido aproximadamente oswaldiano (de Oswald de Andrade). Quando no Brasil é lido um filósofo europeu, em lugar de pensar a partir do autor e tentar implementar alguma das suas ideias no contexto brasileiro, transforma-se esse autor em tema de demorado estudo. Temo, inclusive, que, pela força dessa tradição exegética, isso mesmo acabe acontecendo com a leitura dos filósofos latino-americanos: que em lugar de se ler Dussel para ver o que ele teria a dizer para o Brasil, seus leitores se limitem a escrever inúmeros papers acerca da “concepção de libertação em Dussel”, ou sobre “As diferenças entre as noções de libertação em Dussel e em Paulo Freire”, em lugar de agir em função do que esses autores propõem, por exemplo, em termos de práticas universitárias efetivas no terreno da formação de alunos.

Por outro lado, também seria inadequado adotar o ponto de vista europeu (como supostamente “universal”) para julgar a nossa produção filosófica. Alguns ainda esperam que os filósofos latino-americanos apresentem teorias do conhecimento que possam “competir” com a teoria de Kant, ou teorias éticas que se confrontem com Spinoza, ou ontologias que possam comparar-se com Heidegger. Bom, não existem tais teorias, de maneira que será inútil esperá-las dos pensadores mencionados. Não se trata de “concorrer” com a Europa, pois isso significa adotar a agenda europeia, pensar que estamos limitados a apresentar “contribuições” à filosofia europeia. É evidente que a Europa não vai considerar a “filosofia da libertação” como uma “contribuição” à filosofia europeia, sendo que essa filosofia contesta precisamente a hegemonia filosófica da Europa.
A filosofia europeia continuará sendo estudada; apenas a nossa relação com ela deverá mudar, desde o mero comentário repetitivo à apropriação criadora. A Europa não será deixada de lado (e como poderia?), mas apenas o euro-centrismo. Nesse sentido, não deve considerar-se uma “contradição” o fato de muitos dos pensadores latino-americanos utilizarem fartamente Hegel, Heidegger, Lévinas  e outros filósofos europeus, pois o pensamento desses é utilizado para os próprios projetos reflexivos e não são meras “exegeses” (como exegeses, seriam muito imperfeitas). Na interação com a Europa, é crucial entendermos a noção de “filosofia” que é utilizada no contexto do filosofar latino-americano; trata-se de um filosofar eminentemente práxico, não desvinculado de uma ação ético-político-religiosa. Praticamente a totalidade dos pensadores mencionados não apenas escreveu obras filosóficas; muitos deles foram jornalistas ou desempenharam importantes atividades políticas, desde a diplomacia até a militância direta ou a ação da Igreja; ao escrever seus textos não procuravam uma “verdade” puramente objetiva que não estivesse vinculada com os processos de libertação e as análises da dependência. De todas as formas, deveremos trabalhar para, num futuro próximo, não ter mais que distinguir entre filósofos europeus e latino-americanos; chegar numa situação em que não faça mais qualquer sentido aludir à nacionalidade dos pensadores. Infelizmente, apenas quando somos excluídos é que nos vemos obrigados a lembrar teimosamente das nossas origens.

IHU On-Line – Tomando em consideração uma de suas linhas de pesquisas, quais são as relações entre a condição humana e as possibilidades de uma moral negativa?

Julio Cabrera – Ética negativa é uma reflexão, iniciada com a publicação do Projeto de ética negativa em 1990 (que acabou de ser reeditada pela Rocco com o título de A ética e suas negações); em 1996, apareceria em Barcelona um segundo livro sobre o assunto, a Crítica de la moral afirmativa. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, numerosos artigos foram escritos, publicados ou apresentados em diversas partes do Brasil e do mundo. Trata-se basicamente de uma reflexão radical acerca da possibilidade mesma da moralidade dentro de uma condição humana caracterizada pela terminalidade do ser, pelo fato de estarmos afetados por um nascimento mortal habitualmente acobertado pelos discursos afirmativos. Isso deslancha uma longa reflexão acerca da falta de valor estrutural da vida humana e do esforço permanente do humano por dar-se um valor. Ética negativa é fundamentalmente uma filosofia do nascimento, um tema que a filosofia europeia tem tratado pouco. Os três resultados mais expressivos da ética negativa são: se os critérios morais forem aplicados à risca, a procriação enfrenta graves problemas éticos; em segundo lugar, o suicídio não é – como habitualmente na história da filosofia europeia – máximo pecado moral, mas um ato com mais chances que muitos outros de ser genuinamente ético; e, em terceiro lugar, o heterocídio – o matar a outro – deve ser absolutamente interditado de um ponto de vista ético-negativo, sem quaisquer exceções (nem mesmo “legítima defesa”). Num livro que escrevo atualmente e que será publicado no exterior, chamado, por enquanto, Bioética radical, tento dirigir críticas às principais teorias éticas europeias (Kant, Mill, Aristóteles), no sentido de que essas éticas nunca terem feito realmente considerações radicais sobre a condição humana dentro da qual deveriam funcionar os imperativos, cálculos utilitaristas e virtudes morais. Essa linha de pensamento ético-negativa foi desenvolvida no México, em contato com Enrique Dussel; deu uma polêmica nacional com Paulo Margutti na revista Philósophos, apresentações em eventos de bioética em Montevidéu e no Brasil e publicações como Ética negativa: problemas e discussões (Goiânia, 2008), e dissertações de graduação (Jorge Alam Pereira) e mestrado (Diógenes Coimbra). A Crítica de la moral afirmativa foi traduzida ao inglês e será publicada proximamente. Tentei uma explicação sumária da gestação da ética negativa no Diário de um filósofo no Brasil.

IHU On-Line – Quais são as grandes questões filosóficas que se apresentam na sociedade atual?

Julio Cabrera – Creio que as questões filosóficas realmente cruciais, precisamente por serem filosóficas, não pertencem à sociedade atual, mas a todas as sociedades. Se tivesse que mencionar uma dessas questões, diria que a mais grave de todas é sempre a questão do Outro; esse é o problema filosófico fundamental de todos os tempos, o Outro-humano, o Outro-coisa, o estranhamento, o distanciamento entre humanos, que toma características peculiares em nossa época, mas que está presente sempre, como se pode ler, por exemplo, nos livros de Sêneca. O Outro nos aparece como inimigo, como algo repulsivo ou ridículo, simplesmente por não falar como nós, não pensar como nós, não viver e morrer como nós; esta teimosa referência ao próprio, essa condenação do Outro por ser outro, continuará sendo o grande escolho para tudo o valioso que pensemos em construir, inclusive uma filosofia. A corriqueira expressão: “Isso não é filosofia!” é a mais clara manifestação do estranhamento diante do Outro; teríamos que apreender a dizer mais vezes: “Isso também é filosofia!”. Fazer incríveis esforços para tentar incluir o Outro em nossas vidas e nossos discursos.

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