Edição 378 | 31 Outubro 2011

Um autor em diálogo com o mundo contemporâneo

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Márcia Junges

 

IHU On-Line – Como se articulam os conceitos da fenomenologia de Merleau-Ponty e Paulo Freire nos movimentos sociais na década de 1980?

Luiz Augusto Passos – Somente no doutorado da UFMT, por provocação de Maria de Lurdes Bandeira de Lamonica Freire, fui desafiado a ler a Fenomenologia da percepção em diálogo com a descrição densa de Clifford Geertz. Isso se constituiu num privilégio e compromisso que herdei de levar adiante este diálogo. Paulo Freire, ao contrário, era trabalhado na Paróquia Nossa Senhora do Rosário, de Cuiabá, MT, dos jesuítas, da qual participei desde o final de 1979. O trabalho acontecia numa perspectiva freiriana no que dizia respeito às ações educacionais e políticas, aspecto indivisível de Freire. A paróquia mantinha movimentos populares e círculos de cultura, um deles sistemático no bairro Quarta-Feira, com crianças e adolescentes que faziam uma horta comunitária na casa da Ir. Dineva Vanuzzi, falecida há pouco, e se organizavam contra os processos de repressão conduzidos pelo Estado e pelo aparato policial militar que realizava execuções. A paróquia se inspirava na teologia da libertação e foi importantíssima a presença do padre João Manoel Lima Mira que iniciara em Cuiabá o trabalho com universitários improvisando um restaurante naturalista e macrobiótico, bem como aulas livres de kung fu. Tratava-se, pela teologia da libertação, de convergência com os mesmos caminhos da “gentificação” – isto é, a arte de contribuir na feitura das pessoas pela comunhão, proporcionando autonomia e emancipação, e atuação de denúncia e anunciação, na perspectiva do reino de justiça, que já estava em parte entre nós, reino de paz, liberdade, justiça e de vida em plenitude. O projeto de humanização plena, as dimensões da justiça, da liberdade estão todos presentes em Merleau-Ponty.

 

Contato com o marxismo

Tivemos em vista em nossos trabalhos de pesquisa no GPMSE algumas orientações teórico-metodológicas que fomos buscar na fenomenologia de Merleau-Ponty. Sabíamos que havia uma imensa comunhão de Paulo Freire com o pensador francês. Tenho sobre isso um verbete no Dicionário Paulo Freire em que expresso mais extensamente a relação entre fenomenologia de Merleau-Ponty e Freire. Freire se dizia dialético e fenomenológico. Desde a Pedagogia do oprimido, Paulo Freire possui a consciência da relação visceral entre esta pedagogia e a fenomenologia. Mas implica, como em Merleau-Ponty, muitos pontos de contato com o marxismo. Alguns princípios nos impulsionam, como a inseparabilidade entre sujeito e objeto que coexistem, ainda que o mundo nos preceda. Merleau-Ponty pergunta: “Quando minha mão direita toca meu braço esquerdo, quem é que toca e quem é tocado?” Na verdade, sujeito e objeto se fundem naquele momento e adquirem uma coincidência inclusive sofisticada, na qual estou ao mesmo tempo dentro e fora de mim, imanente e transcendente a mim, vidente e sensiente ao mesmo tempo. Não aplainamos polos de contradição; mantemos a ambiguidade – conceito merleau-pontyano – até o fim. Ambiguidade que só pode ser suprimida por má fé, ou admitindo uma preponderância de um dos polos sobre o outro. O mundo só era natural no período precedente à nossa entrada nele. A partir daí temos a inauguração de uma confusão – assim chamada por Merleau-Ponty entre eu, outro, mundo, com certa reversibilidade inconclusiva. Buscar enxergar todos os sentidos possíveis, posto que a realidade é polissêmica e inesgotável.

Muniz Rezende dizia: há sentido, e alguns só percebidos por outros olhares. É preciso, reincidentemente, realizar uma interlocução de perspectivas e de olhares e dos lugares experimentados por outras humanidades que lhe permitiram conhecer o mundo só acessível por sua carne e naquele lugar donde nós não poderemos estar. Compartilhar desarmadamente sentidos significa acrescer outros sentidos plausíveis que permitam ampliar o conhecimento do mundo e nos aproximar do sentido humano e histórico, antes invisíveis. Saber que a realidade é mistério, como nós mesmos somos mistérios, parcialmente revelados pela face do outro que me diz, em parte, o que sou. Vale Manoel de Barros: “O melhor de mim são os outros!” Não damos conta de nós! Somos incompletudes. O mistério que somos, contudo, não nos conduz a um epistemicídio. Leonardo Boff diz de maneira feliz que mistério não é o que não podemos conhecer, mas que ao conhecer somos impelidos muito além, mostrando-nos outra vez nossa impotência da abraçar a totalidade. Merleau-Ponty fala de horizontes que aos nossos passos recuam sempre mais.

 

Captando invisibilidades

Nossas pesquisas se voltam a investigar os sentidos que movem as pessoas, e priorizamos pessoas e movimentos coletivos dos setores populares por razão de justiça. Professor Di Clemente busca em Merleau-Ponty a relação do “sistema dos objetos” com “o sistema humano”, “abraçados”. Nossas pesquisas não comunicam apenas o que percebemos, mas de onde e como percebemos. Não nos negamos como autores/as, pois a interpretação só é plausível na intersubjetividade. Deixar explícito que nossos escritos possuem interesses, o que vemos, compreendemos e interpretamos não é de imaculada conceição. Não pretendemos que o que vimos e interpretamos seja ponto de chegada, síntese universalmente válida, conclusiva acerca do mundo: não é. Buscamos captar invisibilidades, sentidos ocultos. Não nos debruçamos sobre dados significativos estatisticamente, mas aqueles que quebram e que, apesar da globalização e da homogeinização - aquela singularidade ali circunscrita -, permite um mundo mais oxigenado e menos petrificado. Não pretendemos que nossos trabalhos e pesquisas tenham aderência universal e sirvam como receita de bolo a outras pesquisas.

 

IHU On-Line – Quais são as proximidades entre o pensamento de Merleau-Ponty e Mounier?

Luiz Augusto Passos – Mounier teve duas faces muito decisivas. Era um filósofo de rara envergadura intelectual, um mestre e raro comunicador. Possuía uma coerência e envergadura ética que respaldava abrir diálogo com todas as correntes políticas e ideológicas e com os governos. Além disso, era um místico: cristão ativista, corporificava, diria Freire, o que acreditava. As proximidades entre Merleau-Ponty e Mounier vinham da atuação de ambos no campo da cátedra. No campo do diálogo político face às situações injustas, emprestava sua voz. Ambos eram homens de partido, com ideais democráticos e de justiça social muito definidos. As questões epistemológicas de Merleau-Ponty são ressaltadas na entrevista de Adauto Novaes. Di Clemente desenvolve as questões da bioética e da biopolítica em Merleau-Ponty em sua livre docência. Referência decisiva é aquela hoje expressa pela ética da libertação do argentino Enrique Dussel, para Mounier e Freire: o princípio categórico e absoluto de qualquer ética é a vida, e a resistência e luta contra tudo que conduza à morte, como o terrorismo de Estado, os totalitarismos e qualquer opressão aos mais oprimidos.

 

Perseguições

Merleau-Ponty fala que o totalitarismo é uma tara. Sai do Partido Comunista ao qual se filiara quando da invasão da Hungria. Sofre perseguição junto com Jean-Paul Sartre por apoio à Guerra da Argélia contra a França. Mounier é o grande criador da pedagogia da alternância retomada pelo Movimento dos Sem Terra – MST, e estendia a educação não somente aos jovens, mas às suas famílias. Ao contrário do que parece, Merleau-Ponty tinha um simpatia pela Igreja, mas sofria críticas por parte dela, pois pontuava a ausência da democracia interna, e as questões “enciclopedistas” que tomaram a moral sexual da igreja. Estava nas ruas de Paris nas grandes manifestações políticas, como Mounier e Freire.

Mounier estabelecera grande corrente de diálogo onde vigia intolerância. Merleau-Ponty o fazia escrevendo. Em suas aulas era muito expressivo, mas tímido fora delas. Ambos consideravam ser a educação um direito, como tarefa política cuja centralidade era a própria o educando, fosse ele criança, adolescente ou adulto. Havia em ambos um conceito das crianças como seres de direitos inalienáveis e como cidadãos plenos. E toda a educação era voltada para a vida com uma perspectiva de conhecimento em profundidade e não em extensão, herança da Escola Nova de Dewey.

 

IHU On-Line – Quais são as atividades previstas no Simpósio Merleau-Ponty: cinquenta anos da morte do autor, organizado pela UFMT?

Luiz Augusto Passos – Esperamos um público em torno de 450 pessoas no Teatro Universitário da UFMT. O clima é de exposição de telas inspirados no tema Quiasma, do artista plástico de renome internacional Claudyo Casares, uma delas realizada para a arte do evento, a releitura de A dança de Matisse. Começaremos com a execução da Sonata de Viteuil que Merleau-Ponty tinha por referência. Ela rompe com o sentido clássico, tanto quanto a estética merleau-pontyana, e terá arranjo do professor pesquisador e maestro Abel Santos, que a executará na Viola de Cocho cuiabana junto à camerata formada pela Orquestra Sinfônica da UFMT. Conferencistas de âmbito internacional, como Serge Latouche, Fabio Di Clemente, Creusa Capalbo, que circula nos ambientes merleau-pontyanos na Europa, e Edebrande Cavalieri (UFES) são conferencistas do encontro. Outras presenças serão Gabriel Mograbi (UFMT), Jovino Pizzi (UFPEL), Regina Célia Popim (Unesp), Reinaldo Matias Fleury (Mover/UFSC), Diélcio Moreira e Celso Prudente (Cinema Negro, Comunicação e Linguagem) e Guilherme Romanelli, pesquisador, maestro, e violinista da UFPR. O evento terá oficinas, rodas de conversa, apresentação de trabalhos, conferências comentadas e ampliadas. Portanto, uma festa no coração da América Latina, seu marco geodésico.

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