Edição 378 | 31 Outubro 2011

Um convite à radicalidade

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Márcia Junges

 

 IHU On-Line – Até que ponto podemos dizer que somente a partir dos ensaios de Signos e do livro póstumo O visível e o invisível encontramos uma ontologia radical que acertou as contas com a fenomenologia husserliana e a ontologia heideggeriana?

 

Fabio Di Clemente – A questão é muito complexa. Em primeiro lugar, como expliquei, não convém falar de “acertamentos de contas” na abordagem merleau-pontyana da história da filosofia, das ciências e dos outros saberes, e tampouco em face da grande herança husserliana e heideggeriana. Em relação a Husserl, paralelamente à radicalização da dialética hegeliana, a fenomenologia é interpretada à luz da impossibilidade de uma redução completa. Em O visível e o invisível, com a crítica das filosofias de Espinosa e de Kant, a tutela da ordem antidualista e antirreducionista define a “análise reflexionante” como “ingênua” na medida em que “dissimula seu próprio movente”: a evidência segundo a qual é preciso pressupor a “noção do mundo” para constituí-lo como mundo pré-constituído. Por trás do originário e do derivado, “há um pensamento em círculo onde condição e condicionado, reflexão e irrefletido estão em uma relação recíproca, senão simétrica, e onde o fim está no começo como o começo está no fim”. Dessa ‘originariedade’, desse ‘paradoxo’ do conhecimento, deve responder também e, sobretudo, a fenomenologia husserliana: o fato de obter-se por meio da metodologia fenomenológica (como nos lembra a epoché, a redução, a intencionalidade) a revalorização de uma teoria transcendental que, ao mesmo tempo, não pode perder a tensão com o sujeito que está radicado no mundo, isto é, com o sujeito que reproduz intrinsecamente a impossibilidade de ser ‘reduzido’ completamente, totalmente a uma formalização transcendental.

 

Estrabismo fenomenológico

Essa instância crítica, que Merleau-Ponty tutela com a ideia de ‘estrutura’, juntura operativa de passividade e atividade, produtora de uma “inteligibilidade ao estado nascente” (conforme releitura da noção de Gestalt), pode medir a relação crítica instituída com Husserl. Segundo o filósofo francês (veja-se o Curso do Collège de France sobre a Natureza de 1956-1957), o Husserl das Ideen II oscilaria entre “duas direções: de um lado, a ruptura com a atitude natural ou, de outro lado, a compreensão desse fundamento pré-filosófico do homem. O irrefletido, nele, não é nem mantido tal qual, nem suprimido, continua sendo um peso e um trampolim para a consciência”. O problema é que temos, conforme palavra do próprio Merleau-Ponty, certo “estrabismo” na fenomenologia. O “irrefletido desempenha o papel de um fundante e de um fundado; refletir é, então, desvelar o irrefletido”. Portanto, “a fenomenologia denuncia a atitude natural e, ao mesmo tempo, faz mais do que qualquer outra filosofia por reabilitá-la”. Nessa sede, não podemos entrar na correlata relação problemática entre as duas ‘reduções’ husserlianas, nem na atribuição de prioridade às sensações táteis em Husserl – prioridade que Merleau-Ponty não aceita.

Sem poder abordar tudo isso e levando em conta o fato de que Husserl, ao ver do filósofo francês, seria “cada vez mais consciente da identidade dessas duas direções”, assim como seria consciente do caráter englobante da Natureza, contemplado até mesmo as “sínteses não egológicas”, cabe frisar que, na ótica merleau-pontyana, o pai da fenomenologia permaneceria ainda prisioneiro do plano da correlação noético/noemática. Ademais, como acrescentei em meu ensaio Corpo e conhecimento em Merleau-Ponty, é preciso interrogar-se se no pensamento husserliano permanece um resíduo de atitude egológica, diante das sensações de movimento pensadas sob a forma meramente egológica. Como escreve Husserl em Ding und Raum, as sensações de movimento “pertencem ao elemento imediatamente egológico”, a saber, elas são a condição de possibilidade para a passagem da passividade à atividade sem representar uma componente hilética.

 

Polimorfismo do Ser

Em relação à filosofia de Heidegger, restrinjo-me a destacar que, além da possível confrontação crítica sobre temas específicos (vida, animalidade, relação entre corpo e linguagem, ciência e filosofia, entre outras) e da revisitação de alguns temas heideggerianos (Seinsfrage, Ereignis, Aletheia) na interrogação de Merleau-Ponty, este último qualifica a ontologia de Heidegger nos termos de uma ontologia curta, criticando-a por ser uma “expressão direta do ser”. A ‘ambiguidade’ da subjetividade merleau-pontyana requalifica-se como lugar eminente da ordem do ‘paradoxo’: a incorporação, o fato que no corpo se forma a “não coincidência”, a relação de “transcendência” entre o organismo e o ambiente, significa que o corpo mesmo se torna lugar da “intraontologia”, do desenvolvimento da “topologia do Ser”. Por consequência, é preciso entender que a ontologia merleau-pontiana é uma ontologia ‘indireta’, que tutela, a meu ver, uma ‘vocação ontológica da subjetividade’ capaz, como tal, de realizar o “polimorfismo” do Ser.

 

 

IHU On-Line – É correto apontar ressonâncias de uma antropologia filosófica no referencial de Merleau-Ponty? Por quê?

 

Fabio Di Clemente – Em extrema síntese, a antropologia filosófica do século XX, que teve como pontos de referência Max Scheler, Helmuth Plessner, Arnold Gehlen, alimentou-se da consciência de dever entender o âmbito do orgânico para poder entender também a especificidade da vida humana. De Scheler, Merleau-Ponty sublinha a tentativa de superar o dualismo entre consciência de si e consciência de outrem. Plessner toma o tema do corpo humano para superar as oposições de alma/corpo, espírito/vida e marcar uma diferença com o corpo do animal, chegando a falar de “excentricidade” da vida do homem. Mesma tentativa de superação desses dualismos temos em Gehlen. Como sabemos, trata-se de temas centrais na obra merleau-pontyana, conjuntamente às questões mais amplas da análise científica da natureza e da abordagem das chamadas ciências do homem. Entretanto, cabe destacar que esses temas são alimentados também por uma ‘reação’ contra o surgimento das ciências do homem, com as tentações, apontadas por Habermas, de subordinar essas problemáticas ao destino do ser (Heidegger), à redenção divina (Bultmann), à absolutização ou ao necessaritarismo de categorias (Gehlen) que, ao invés, seriam apenas historicamente determinadas. Há também em Scheler, pensa o próprio Merleau-Ponty, a subordinação das “particularidades fisiológicas ou históricas individuais” ao conhecimento de uma essência.

Então, podemos dizer que há ressonâncias de uma antropologia filosófica no referencial da obra de Merleau-Ponty, mas é preciso logo esclarecer que a obra merleau-pontyana não desliza nas tentações apontadas acima. Além disso, diante da profunda atenção para as pesquisas biológicas reservada por esses representantes da antropologia filosófica, a leitura merleau-pontyana sobre o nexo entre vida, organismo e meio ambiente procede, ultimamente, na direção de uma resistência da mesma biologia a cada formalização transcendental, última, eidética. Isso se reflete na ideia de organismo. Salientamos que o organismo animal não é somente Körper diante do Leib humano. Também os animais, afirma Merleau-Ponty nas notas preparatórias do primeiro curso do Collège de France de 1958-1959, são “portadores de Psyché”: nós “praticamos Einfühlung em direção a eles”. De forma mais extensa, afirma-se uma relação como diferença, diferença que se realiza sob forma de “Einfühlung generalizada” entre o nosso corpo, os animais, as plantas, as coisas; uma relação como Ineinander, “relação lateral, oblíqua”. Com essa topologia do Ser, ‘universal vertical’, o filósofo francês quis recolocar a formação do conhecimento a partir de um ‘nível de ser operante’, em que o problema da “Filogenia” é o problema da “arquitetônica”, de uma arquitetônica “não só do indivíduo, mas da biosfera ou do mundo da vida: é ainda mais claramente um problema ontológico do que embriológico.

 

 

IHU On-Line – Qual é o enlace entre biopolítica e bioética na fundamentação do conceito de vida merleau-pontyano?

 

Fabio Di Clemente – Sem poder entrar em detalhes sobre toda essa ampla questão, lembro que a reflexao merleau-pontiana libera a autonomia do “fenômeno vida”, com a tentativa de pensar uma norma (tanto do lado intraorgânico como do comportamento, tanto do campo observado como do observador) conjuntamente ao surgimento e desenvolvimento da vida. Produz-se uma ótica radicalmente antirreducionista e antidualista também pela relação de vida e política, assim como de vida e ética. A lógica do secreto natal, que deixa a vida como refratária a uma normativização, ‘plena’ e ‘determinada’, sendo ‘não coincidência’, lugar de uma ‘ausência’, nos dá de volta uma ideia de comportamento como “oscilação” ao redor de uma norma (conforme pensamento de George Canguilhem[11]), veículo de uma ‘abertura de ser’, segundo empiètement e écart. Então, com Merleau-Ponty, podemos combater o corpo que foi e é objeto da biopolítica. Como reconstruiu o filósofo italiano Roberto Esposito[12], trata-se de um corpo destinatário de uma “intenção imunitária” da política, enquanto considerado “lugar privilegiado do desdobramento da vida”, de um “binarismo” entre crescimento e consumação, vida e morte. Correlativamente, o corpo da bioética, a meu ver, também foi e é objeto de uma paralela intenção imunitária: trata-se de uma proteção e de um desenvolvimento da vida que produzem novamente uma proteção negativa da vida, a saber, de um mecanismo que, com o escopo de proteger a vida, acaba negando-a em relação à sua pertença ontológica.

Pelo contrário, o Ser merleau-pontyano entra na dimensão interrogativa, em virtude da qual princípios, as regras, as normas que a política, a ética e o direito expressam devem voltar a ser essencialmente a tentativa de tradução, constitutivamente inesgotável e imperfeita, da nossa pertença ontológica, em que se afirma a necessidade de conceber a vida - nos ensina o caso do axolotl - como uma “dobra”, como “a realidade de uma passagem”, onde tutelar nexo irredutível de vida e norma (em sentido amplo).

 

 

IHU On-Line – A partir das concepções de biopolítica e bioética, quais são as possíveis críticas que podemos levantar à reflexão de Foucault e Agamben?

 

Fabio Di Clemente – Como notou Roberto Esposito, na obra Bíos. Biopolítica e filosofia (Lisboa: Edições 70, 2010), de um lado, o mérito de Foucault foi ter recuperado a centralidade do viver em si mesmo, na sua ‘exposição’ ao poder, quebrando os ‘binarismos’ do pensamento filosófico, político, jurídico, ético e liberando os efetivos mecanismos de funcionamento do poder frente à vida; de outro lado, a retomada desse âmbito da vida, que procede além das correspondentes “alternativas topológicas que definiam a dialética interna à relação entre súditos e soberano”, não é acompanhada de uma reflexão estritamente epistemológica e ontológica sobre o conceito de vida. Na falta desse ganho crítico, Foucault permaneceria prisioneiro da oscilação entre uma “política da vida” e uma “política sobre a vida”. Ora, o conceito de vida merleau-pontyano escapa, como vimos, dessa alternativa; ademais, ajuda-nos a entender que o poder sobre a vida’ (“biopolítica crítico-negativa”), a biopolitização que produziria até mesmo a indistinção, a indiferenciação de zoé e bíos (do fato biológico de viver e do viver modalizado dentro do mesmo fato biológico de viver), conforme pensamento de Agamben, seria expressão de uma forma de reducionismo entre o fenômeno biológico da vida e a juntura de saber e poder.

Aproveito para frisar também os limites de uma ‘biopolítica afirmativa’ (o ‘poder na forma da vida’), defendida por Roberto Esposito em alternativa a essa biopolítica negativa. Ressalvado o mérito de Esposito de ter pensado a norma não “sobre a vida” e nem mesmo “a partir da vida”, mas sim “na vida”, acredito, contudo, que se deva respeitar a perspectiva endo-ontológica merleau-pontyana: trata-se de proceder além do mesmo retorno à vida, que, ao afirmar a dimensão ‘impolítica’ da carne (conforme palavra de Esposito), acaba deixando, a meu ver, o corpo privado de um ‘vínculo transcendental’. Com efeito, a questão central merleau-pontyana é aquela de enraizar a ‘exposição’ constitutiva da vida dentro do écart estabelecido entre a carne do corpo e a carne do mundo, assim como entre seres e Ser, e não apenas dentro da carne como noção última (ontológica, histórica, cultural, etc.).

 

 

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

 

Fabio Di Clemente – Gostaria de destacar, sinteticamente, que o conceito de corpo merleau-pontyano não se presta à preocupação derivante da definição de Leib como ‘corpo vivo’, contra a de ‘corpo próprio’; preocupação que tiveram alguns ilustres pensadores (Jacques Derrida, Jean-Luc Nancy, entre outros), levantando também críticas à instância de ‘unidade’ merleau-pontyana. Igualmente, o Leib merleau-pontiano não padece de um dualismo de volta de corpo vivido/corpo objetivo, alimento de uma ideia corpocêntrica, reducionística (em sentido amplo), segundo a qual o corpo seria, maçica ou unilateralmente, a condição de possibilidade da ‘aparição’ e ‘medida’ das coisas. Além disso, ao falar de “sujeito encarnado” (Subjektleib), Merleau-Ponty não acaba liberando sequer “dois movimentos” que permaneceriam “contraditórios”, focados, ao invés, por uma outra literatura crítica (veja-se Renaud Barbaras): um relativo a um “sujeito mensurante as coisas” (“abordagem transcendental”), outro de um “sujeito encarnado como testemunho ontológico” (“antropomorfismo ontológico”). Essas dificuldades de interpretação da relação “em duplo sentido” entre fundante e fundado abarcam também a literatura dominante, que pretende confinar o Merleau-Ponty da década de 1940 dentro da insatisfação pelos seus escritos, para poder dar brilho aos outros escritos da década de 1950. Trata-se de um primeiro período de escritos que pressupuseram – conforme palavra do mesmo Merleau-Ponty, remarcada até as Notas de trabalho – a distinção “cosciência/objeto”, como ‘ponto de partida’, e de um segundo período de escritos direcionados para as noções ontológicas de visão, Natureza, carne, Ser, entre outras. Ora, se é evidente e dominante a ‘novidade’ da radicalização ontológica das pesquisas da primeira obra, A Estrutura do comportamento, e da Fenomenologia da percepção, entre outras, a partir dos escritos da década de 1950, menos evidente e dominante é a primazia do Ser, que esses escritos deveriam fundamentar em detrimento do corpo (reduzido emblematicamente ou a um ser ‘passivo’, ou a um objeto de dois ‘movimentos contraditórios’).

Se quisermos entender o que está efetivamente em jogo com um corpo que precisa escapar não apenas ao reducionismo e dualismo que emprenha a noção de Körper (corpo-coisa), mas também a alternativa entre ‘o próprio’ e o ‘vivido’, ou, de forma extensa, entre o fundado e o fundante, é preciso levar a sério toda a espessura crítica contida na análise fenomenal-ontológica do corpo: ao colocar todos os seus órgãos em relação a uma “infraestrutura” ontológica, de um nível de Ser, em que tudo opera de forma carnal concêntrica, e não mais em termos de meras “funções”, nem de relação entre “o conteúdo e a forma”, Merleau-Ponty não esquece, coerentemente, o que tinha intuído desde a Fenomenologia da percepção: o sujeito é “originariamente consciência motriz”, enquanto no corpo está o “mover-se a si mesmo”. Se a carne consiste “no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, constatável – como destaquei precedentemente – no fato que “o corpo se vê, se toca vendo e tocando as coisas”, então – afirma coerentemente o filósofo francês – é o corpo que acaba de “descer entre as coisas como tangível e, ao mesmo tempo, dominá-las”, no sentido de “extrair de si próprio essa relação” e “mesmo essa dupla relação”, por “deiscência ou fissão da sua massa”. Se é essa a correlação buscada entre o sensível em geral e o sentiente, “incorporada” no Leib, enquanto sensível que sente sentir e, dessa forma, enquanto “interioridade” carnal, o sentiente pertencente a um nível de ser é, como dissemos, ainda ‘subjetividade’.

 

Arquitetônica da biosfera

A fecundidade da posição de Merleau-Ponty pode ser abordada dentro da capacidade de recuperar o pertencimento do homem ao Ser, remontando até a arquitetônica da biosfera ou do mundo da vida, acabando por recuperar, ao final, o vínculo ‘transcendental’ da mesma ‘subjetividade’, sem dualismos e sem reducionismos, sem sobreposições, nem diplopias. Portanto, a ‘fenomenologia da percepção’ não é superada sem ‘resto’, sem eminentemente o vínculo transcendental do Leib nas obras marcadamente ontológicas. Levando em conta a quantidade de folhas (mais de 4000) que o filósofo francês nos deixou (apenas uma parte resulta publicada), indicadora também de um consistente amadurecimento da sua interrogação, sinto-me propenso a afirmar que a passagem da ‘fenomenologia da percepção’ para a ‘ontologia da carne’ não pode ser lida como uma ruptura, nem como um ‘ultrapassar sem resto’, em que cada grau não permanece pressuposto. Evidentemente, cabe aplicar ao desenvolvimento da obra merleau-pontyana a ideia de dialética rumo à hiperdialética, tão defendida pelo próprio pensador francês.


 

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