Edição 378 | 31 Outubro 2011

Destacar o sensível das relações para aprender melhor o sentido das experiências

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Márcia Junges e Thamiris Magalhães

 

 

 

IHU On-Line – Em que consiste o “último Merleau-Ponty”? Como compreender esse período de sua filosofia no conjunto de sua obra?

Reinaldo Furlan - O “último Merleau-Ponty” se encaminhou para uma filosofia da “carne”, sob a necessidade de fundar de forma mais radical o movimento iniciado em suas primeiras obras. Desde o princípio, sua filosofia tratou da necessidade de revisão da metafísica cartesiana, fundada na relação entre sujeito e objeto. Em síntese, tratava-se de unir sensibilidade e inteligibilidade, aquém da separação entre corpo e espírito, ou pensamento e coisa, como estabelecido por Descartes. Ou ainda, se Descartes reconhece de fato a união substancial entre corpo e alma na Sexta Meditação, após havê-las separado de direito na Segunda Meditação, fundando, assim, sua distinção metafísica, podemos dizer que a filosofia de Merleau-Ponty iniciou onde Descartes parou (Lebrun, em nota para a tradução brasileira das Meditações, de Descartes). Ora, em Fenomenologia da percepção, é através da noção da experiência do corpo próprio que Merleau-Ponty procura encaminhar essa questão, pois a experiência do corpo próprio mostra que ele não é nem coisa nem pensamento, propriamente ditos (conforme os parâmetros da metafísica cartesiana), mas expressão encarnada de sentido. Com o sentido da experiência do corpo próprio, constata-se que o sujeito é um extensivo-intensivo no mundo, identificando, pois, o que a metafísica cartesiana separou. E com essa operação, todo o sentido do mundo objetivo também se desfaz, ou se torna segundo ou derivado de um sentido de mundo cuja expressão primeira é mais fisionômica e afetiva. Ora, a noção de carne visa o aprofundamento ontológico dessas primeiras obras, pois nelas ainda se partia das noções de consciência e objeto, como ele reconhece em O visível e o invisível, o que inviabilizava a sua intenção. Trata-se, então, de recuar mais ou descobrir sob a experiência do corpo próprio uma noção mais fundamental do que esta, e será essa a função da noção de carne. Ela representa, ao mesmo tempo, a abertura de sentidos no seio do próprio sensível, e o princípio de suas relações, inaugurando a possibilidade de uma experiência de mundo através da reversibilidade. Ela será o tecido de nossas relações com as coisas e os outros, a sua trama conjuntiva, não havendo, pois, limites definidos entre eu e o outro, nós e o mundo, senão esses do próprio sentir, como condição de nossas relações.

 

IHU On-Line – Como compreender o “desejo da carne” a partir de sua filosofia?

Reinaldo FurlanEssa expressão faz um trocadilho com a concepção cristã de carne. Mas não se trata em absoluto de uma conotação moral sobre a dimensão do homem, como queda ou pecado. Se a carne, como iniciamos acima, é princípio de reflexividade do sensível (sentir é sentir-se), isto é, princípio de expressão no sensível, e por isso expressão sensível, de tal forma que o corpo vê porque é visto, toca porque é tocado, ou sente porque se sente, a noção de desejo vem para se revelar como a animação fundamental da própria carne. O desejo surge justamente da abertura do sensível a si mesmo através do movimento da percepção ou da própria experiência de sentir, porque sentir pressupõe a relação entre o dentro e o fora do corpo, que significa a presença do corpo ao fora (mundo), através de sua distância, sem a qual não haveria relação perceptiva. Então, o desejo surge dessa separação entre o dentro e o fora de um corpo que constitui a própria relação perceptiva, visando sua integração. O importante é não confundir essa tentativa de integração como fusão com o outro (mundo), o que seria a morte, mas como intensificação da presença do fora no dentro ou do dentro no fora. Sobre esse tema vale a pena conferir a fenomenologia de Renaud Barbaras.

 

IHU On-Line – Qual a importância da filosofia de Merleau-Ponty no pensamento contemporâneo?

Reinaldo FurlanVou me ater apenas a um aspecto, o qual me parece essencial. Somos ainda muito cartesianos, como dizia Merleau-Ponty. Nesse ponto, destacam-se dois sentidos de existência, como coisa ou como pensamento. Ora, resgatar o valor expressivo do corpo me parece fundamental para resgatar a própria presença do outro e do mundo, em nós e para nós. Em outros termos, nós temos o hábito de valorizar as ideias ou pensamentos, e, ao mesmo tempo, olhar para as coisas como objetos de um ponto de vista causal. Isso favoreceu e favorece o desenvolvimento da técnica, mas por outro lado coloca à margem todo um campo de experiência de sentidos que tecemos com as coisas e os outros, e que encontramos, de forma privilegiada, nas artes, em particular na pintura e na literatura. Na verdade, é aí que a maior parte de nossas vidas se passa. Então, destacar o aspecto sensível dessas relações é uma forma de apreender melhor o sentido das nossas experiências, o que, aliás, era o mote inicial da fenomenologia, “voltar às coisas mesmas”.

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