Edição 378 | 31 Outubro 2011

Kant e Merleau-Ponty: um debate entre filosofia e matemática

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Márcia Junges

 

 

 

IHU On-Line – Como se dá o diálogo entre a filosofia da educação matemática em relação às grandes perguntas ontológicas e epistemológicas da filosofia?

Verilda Speridião KluthEmbora perceba laços entre as perplexidades destacadas nas interrogações da filosofia e da filosofia da educação matemática que se referem a perguntas ontológicas, epistemológicas – principalmente aquelas que procuram elucidar a construção do conhecimento matemático tanto do ponto de vista da construção que o sujeito realiza nos processos educacionais como a construção realizada no movimento das tradições –, eu penso que o principal elemento que une as duas áreas de forma significativa e que sustenta os diálogos possíveis é o modo como elaboram a busca de compreensão ou explicitação do perguntado.

Evidencio aqui o modo de construir trajetórias de compreensão que diz do pensar filosófico como um pensar interrogativo, analítico, crítico e reflexivo sobre ocorrências, textos, propostas, realizações que permeiam as atividades humanas.

Em particular, na filosofia da educação matemática, as ocorrências, os textos, as propostas e as realizações estão contextualizadas no movimento que vai se dando e se pondo como constituído no seio da educação matemática; e de seus efeitos para a sociedade. Ao ser tecida uma reflexão sobre essa realidade, poderá vir a ocorrer não só um diálogo entre perguntas levantadas pela filosofia, mas também por compreensões elaboradas por ela que iluminam caminhos de busca e que fornecem respostas ou parte delas às perguntas formuladas pela educação matemática, como num círculo hermenêutico sustentado por um pensar filosófico.

Por exemplo, a pergunta “o que acontece no encontro sujeito-matemática?” já tem em sua constituição a afirmação de que tal encontro acontece. A legitimação dessa afirmação vai ser explicitada numa perspectiva filosófica para que a própria pergunta ganhe peso e profundidade.

Por outro lado, ao estarmos inseridos no contexto da educação matemática, imbuídos do modo filosófico de se aproximar do mundo, poderemos formular perguntas filosóficas referentes às ocorrências desse contexto específico indagando: o que elas são, como elas se dão; por que são o que são, o que fazer ou ainda perguntas de cunho filosófico sobre os sujeitos que vivenciam essas ocorrências. Portanto, é o modo de pensar filosófico que coordena a investigação e que se revela no modo de perguntar e de buscar.

 

IHU On-Line – É possível apontar uma influência de Immanuel Kant e seus juízos sintéticos a priori, possíveis na matemática, no pensamento de Merleau-Ponty?

Verilda Speridião KluthBem, essa é uma pergunta interessante e bastante complexa. Para respondê-la terei que retomar alguns aspectos da teoria kantiana tecendo um paralelo com a teoria merleau-pontyana. Não há como negar que Kant deixa um legado muito importante para o desenvolvimento da fenomenologia ao distinguir a coisa em si do fenômeno. Ele nos faz ver que não podemos apreender nenhuma coisa como existente se nós não nos experimentarmos existentes ao apreendê-la. Assim, o ato de ligação é visto como o fundamento do ligado, portanto a unidade de consciência é contemporânea à unidade de mundo. Com isso podemos entender que em Kant o primado da construção do conhecimento é a experiência.

Quando não consideramos a descrição kantiana de como se dá a experiência, poderíamos dizer que aí haveria uma confluência entre aquilo que Kant compreende por experiência e aquilo que Merleau-Ponty vai descrever como vivência; aquilo que Kant descreve como juízos sintéticos a priori e os núcleos de significação, oriundos da descrição da percepção em Merleau-Ponty, que estão em sintonia com a unidade primordial posta na “reflexão noemática” de Husserl.

O próprio Merleau-Ponty, na introdução de seu livro a Fenomenologia da percepção, faz uma crítica à bilateridade das relações sujeito e mundo posta em Kant, afirmando que a análise reflexiva, a partir da experiência do mundo, reconstitui a experiência para o sujeito como algo distinto dela e apresenta uma síntese universal como algo, sem o qual não haveria mundo.

Em contrapartida, para Merleau-Ponty, o mundo está ali antes de qualquer análise que possamos fazer dele. O real deve ser descrito, e não podem ser incorporadas à percepção as sínteses que são da ordem do juízo, dos atos ou de predicação.

Nas palavras de Merleau-Ponty, no texto acima referido, “A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explicitadas. (...), o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”.

 

Juízos sintéticos a priori

Vejamos agora, por meio de exemplos, como essas duas formas de pensar o como se dá a experiência de mundo vão constituir seus esquemas explicativos do como se dá a construção do conhecimento matemático, em particular como se “chega” ao triângulo ou ao número.

Para Kant, podemos traçar um triângulo na nossa imaginação sem nenhuma interferência essencial dos sentidos externos, ou seja, sem qualquer interferência do mundo. Precisamos apenas [da intuição] espaço que nos é dado pela sensibilidade pura. Como qualquer triângulo traçado é imperfeito, é a imaginação, faculdade intelectual, que nos permite obter a imagem do conceito de triângulo, que é uma imagem idealmente perfeita. O conceito de triângulo é, assim, o de uma figura plana limitada por três segmentos de reta, apresentada no espaço, por meio de uma construção temporal, um exemplo arbitrário de triângulos.

Da mesma maneira nós nos representamos os conceitos numéricos na intuição pura do tempo. Por exemplo, o conceito de sete (7) é intuitivamente representado por uma sequência de sete instantes em sucessão temporal. Há a possibilidade de espacializarmos essa representação, ao imaginarmos os instantes como pontos. Representando assim os momentos de retenção dos instantes na memória, obtendo o número cardinal.

Para Kant as verdades matemáticas, conceitos e asserções, são sintéticos, ou seja, aqueles que não são analíticos, nos quais a ideia denotada pelo sujeito contém a ideia representada pelo predicado; e também são a priori, ou seja, prescindem de dados empíricos. Sua teoria não dá conta de explicitar toda a matemática. Como, por exemplo, uma figura de muitos lados ou um número muito grande.

 

Distanciamento

Para Merleau-Ponty, a forma é uma configuração, é a própria aparição de mundo e não sua condição de possibilidade; com ela nasce uma norma; ela é a identidade entre exterior e interior. Esses pensamentos quando assumidos para explicitar a construção do conhecimento matemático leva-nos a afirmar que o triângulo, é uma configuração cujos elementos: lados, ângulos e vértices possuem valores sensoriais que são determinados por suas funções no conjunto. Assim, os três segmentos de reta tornam-se lados do triângulo ao fundar três vértices, e os pontos de encontro dos segmentos de reta tornam-se vértices ao fundar lados. Dá-se assim, o nascimento de uma norma. O triângulo, agora como um objeto percebido é a identidade entre aquele que percebe e o mundo que se mostra.

O mesmo se dá ao pensarmos as formas numéricas, uma explicitação já posta em Husserl a partir da ideia de ser os números uma pluralidade determinada. Não vou me ater a isso. Ao articularmos as ideias de Merleau-Ponty com o corpo de conhecimento matemático, vemos ser explicitada a percepção de mundo como o primado de seu conhecimento numa concepção fenomenológica de homem e de mundo.

Não vejo nos pensamentos de Merleau-Ponty os mesmos princípios que regem a explicitação dos juízos sintéticos a priori de Kant, pois os juízos são imagens do mundo, enquanto que os núcleos de significação que compõem o primado do conhecimento em Merleau-Ponty são presença de mundo corporificada, relações orgânicas entre sujeito e mundo explicitadas na noção de corpo próprio como sujeito da percepção.

 

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