Edição 378 | 31 Outubro 2011

O corpo: um “santuário” em relação com o outro

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Márcia Junges

 

 

IHU On-Line – Sob quais aspectos a filosofia desse pensador é importante para se repensar a educação em tempos de globalização e de complexidade?

Maria Alice de Castro Rocha – A globalização traz com ela a grande troca entre as pessoas, as várias culturas, uma fluidez imensa de informações e a necessidade de construção de novos conhecimentos. A educação precisa estar atenta a esta diversidade de acessos a dados e trocas empreendidas em redes sociais.

Merleau-Ponty torna-se contemporâneo ao mostrar a necessidade de a educação se focar na compreensão da apreensão de significados, que dependem do horizonte enfocado em cada momento. Nosso olhar para a realidade depende do ângulo do qual partimos. Por exemplo, se vemos uma casa apenas por um de seus lados, podemos nos enganar em relação a seu real tamanho. Ao mesmo tempo, quando se olha por este ângulo podemos captar elaborações anteriores, que podem vir da capacidade de cálculo do engenheiro; do ecologista que valoriza ou não aquela ocupação; da recordação da infância de um quintal semelhante com experiências gostosas.

A cultura de um povo é um dos grandes fatores que direcionam, formam e deformam nossa percepção. Essa elaboração perceptiva precisa ser conhecida e ampliada. Para isso não bastaria numa visão fenomenológica apenas ensinamentos racionais, mas vivências, trocas de visões, ampliação dos dados.

A educação precisa mostrar ângulos diferentes de direcionamento ao mundo, o sentido e o respeito a cada cultura, para que seja possível compreender o sentido de tomada de posições diferentes. Voltando àquela casa do exemplo acima, pensemos que poderíamos ter uma imagem negativa dela; mas quando de repente se me apresentam crianças brincando e sentimos um cheiro de bolo caseiro, isso pode se transformar.

A educação precisa considerar o sujeito como tendo uma intencionalidade encarnada; trata-se, portanto, de pessoas dotadas de sentimentos, emoções, significados que estão sempre presentes no processo de percepção e de conhecimento. É preciso respeitá-las e ajudar cada ser a saber lidar com o caso. É necessário pesquisar dados e ir além deles, criando, dando opiniões e construindo uma identidade.

A linguagem está aqui presente o tempo todo e precisa também ser ampliada para que possa captar formas e noções diferentes. A linguagem matemática, por exemplo, vem permitir ao indivíduo fazer cálculos, resolver problemas, que afetam a si e ao mundo; mas a linguagem poética poderá lhe abrir para formas mais significativas de sentir e usar seus cálculos. Cada forma de linguagem abre a possibilidade ou pode mesmo fechá-la. Ela precisa ser trabalhada.

 

Corpo e complexidade

Merleau-Ponty nos traz um ser dotado de um corpo, o que nos aproxima da ideia de complexidade trazida por alguns filósofos, na atualidade, como Morin[5]. Há o ultrapassar da dialética dos contrários para entrar na correlação circular de várias possibilidades. O homem na complexidade é visto como um ser múltiplo que vai se humanizando por meio do cérebro, mão, linguagem, espírito, cultura e sociedade. Há sempre a presença do lógico, do racional em meio a emoções, sentimentos, sentidos. A lucidez se confronta no homem, segundo Morin, com a demência. Ordem, desordem, interações e organização fazem parte da complexidade. Merleau-Ponty mostra que o conhecimento, a percepção, nunca se fecham, mas se aproximam, se complementam, ilusão e desilusão são possibilidades humanas.

Merleau-Ponty destaca que o homem possui condições físicas, fisiológicas, biológicas que são fundamentais, mas que se subsumem pela ordem humana, dotada de significados existenciais. A educação precisa formar pessoas que saibam raciocinar, mas que ao mesmo tempo saibam fazer uma leitura da relatividade, que se vejam como humanos e que também se voltem para uma sociedade que exista no confronto entre diferenças e aproximações, entre incertezas e planejamentos. Merleau-Ponty nos mostra este caminho da apreensão do mundo, mas não de forma absoluta e fechada, que está sempre aberta a novas visões. Quando mostra que a linguagem e a cultura direcionam nosso olhar, mostra também que a educação é uma das responsáveis por ele, osso olhar, embora não a única, podendo abri-la ou fechá-la mais. Caberia à educação aqui oferecer formas de perceber a inexatidão de uma única visão.

 

IHU On-Line – Em que medida Merlau-Ponty e Piaget contribuem para os estudos sobre a percepção? Suas ideias sobre o tema são complementares e convergentes?

Maria Alice de Castro Rocha – Ambos trazem uma visão interacionista para a percepção. Ela não é vista nem por meio de uma construção racional, nem como uma ação empirista, em que as sensações exerceriam uma função dominante sobre a percepção. Há sempre uma troca entre homem e mundo e esta vai se transformando ao longo do vida do indivíduo.

O corpo é fundamental para a percepção em Merleau-Ponty – é o corpo que se movimenta, que tem sentimentos, emoções, que sente tristeza, alegria, dor. Há sempre um movimento de busca numa intencionalidade encarnada. Piaget mostra o corpo, sem usar esta expressão, sobretudo ao analisarmos o primeiro período de desenvolvimento da criança, no estágio sensório motor. A criança tem um potencial de desenvolvimento, mas ela precisa agir para construir essa percepção e o conhecimento. A criança, experimentando movimentos e sensações, vai organizando-os. Por meio deles ela cria formas de organização; é capaz até, mais ou menos, 18 meses de ter elaborado as relações de causa e efeito, a temporalidade, a espacialidade, a noção de que o objeto pode permanecer em sua ausência.

Merleau-Ponty traz o corpo como fundamental na percepção por uma troca com o meio, mas coloca em evidência a força da intencionalidade, em que se evidência o existencial. Dá o exemplo de um trem em movimento: se estamos no trem e olhamos distraidamente pela janela a paisagem corre em disparada. Por outro lado, se prestamos atenção à paisagem, somos capazes de percebê-la inerte. Na percepção há sempre um movimento interativo, em que entram significados humanos que abrangem e subsumem o cultural.

Para Merleau-Ponty, a linguagem é um dos fatores organizadores da percepção; ela nos ensina a ordenar as coisas e olhá-las de forma diferente. Podemos dizer que ela nos orienta, em um primeiro momento, a organizar objetos, uni-los, separá-los, abstraí-los. Para Merleau-Ponty, o intelectual é um dos fatores organizadores da percepção, mas não o único. Piaget já destaca este como principal ao lado do biológico.

A nosso ver, os dois podem ser olhados como complementares, pois é importante vermos que a criança precisa ser estimulada a agir sobre o meio e que esta ação não é pré-determinada, mas que ela é extremamente rica e inteligente, pois a criança está corporalmente construindo noções que a ajudarão a perceber o mundo de forma mais rica e organizada. Merleau-Ponty, por outro lado, nos chamará a atenção para outros fatores norteadores da percepção, como os sentimentos, a linguagem, a emoção, a cultura. Organização, desorganização e reorganização fazem parte do pensamento da complexidade, e nesse ponto Merleau-Ponty nos ajuda.

 

IHU On-Line – Em que consiste a fenomenologia da percepção? Nesse sentido, como podemos compreender o falar como expressão do ser na visão de Merleau-Ponty?

Maria Alice de Castro Rocha – A fenomenologia tem por característica a busca do fenômeno, mas de uma forma contínua e aberta, por meio da “consciência de”. Como já destacamos, é uma consciência intencional que se direciona ao mundo. Esta consciência pode abranger o racional, mas não é racional em sua essência. Há aqui um forte componente pré-reflexivo. O ser quando faz algo tem uma intencionalidade na relação com o objeto, mas não necessariamente é capaz de tematizar isso ou saber que o faz.

O objeto, o mundo, estão lá; dão-se de uma forma própria. A coisa em si nunca pode ser conhecida, mas se doa de uma dada maneira e pode ser apreendida por um ser em situação. Esse ser tem uma intencionalidade formada na sua corporeidade, em meio à história, à cultura, à linguagem. A fenomenologia da percepção vai estudar a relação entre o homem capaz de captar o mundo ao seu redor e as coisas em seu entorno que se doam de uma maneira múltipla e própria.

Merleau-Ponty vai estudar essa apreensão, como já foi destacado, por meio de um homem encarnado, isto é, um homem dotado de um corpo, dotado de uma natureza física e biológica que abrange o neurológico, mas que é subsumido pela ordem humana. Essa ordem humana é o que caracteriza o ser em sua existência como homem, como tendo uma intencionalidade, uma corporeidade, como vivendo no presente, banhado no passado e se lançando ao futuro, num vir a ser constante.

Este potencial biológico ajuda o homem a perceber o mundo, mas não isoladamente. A percepção vai se formando ao longo da vida do indivíduo, não no sentido desenvolvimentista de Piaget, mas como se embebendo da cultura, da linguagem, de significados múltiplos que são construídos e desconstruídos.

 

As palavras fluem do ser

A fala é dos meios de comunicação mais ricos do indivíduo, porque ela permite desenvolver a troca de visões entre os homens e a aquisição de linguagens que, como já colocamos, norteiam nosso olhar. Isso não deve ser visto como um aprisionamento, mas como abertura para buscas e de significados. É um elo operacional entre o ser e o outro, entre o ser e o mundo.

A fala é a concretização da linguagem, ela é para Merleau-Ponty uma ação encarnada. Ela depende de um equipamento anatômico e fisiológico, mas transcende-o, dá-se na expressão com o outro. Para o filósofo, ela permite que o indivíduo se expresse e se constitua, pois ele destaca que as palavras fluem do ser, sem precisar que ele pense e depois fale.

O falar é uma troca intencional com o outro que se dá num mundo-vida, dotado de intenções e significados, mas que tem objetos com seu potencial próprio a ser desvelado. Na fala há uma troca de apreensões que me ajudam a descortinar o entorno.

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