Edição 377 | 24 Outubro 2011

"É preciso outro modelo de desenvolvimento"

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Thamiris Magalhães


IHU On-Line – Até que ponto a incorporação de áreas de produção de agrocombustíveis reduz a produção de alimentos?

Maria Emília Lisboa Pacheco – Essa é outra situação grave. Não só a expansão dos monocultivos desloca as áreas de produção de alimentos, como também no Brasil tem, ao mesmo tempo, hoje, uma certa especialização na produção em algumas regiões de produtos que são básicos para a nossa alimentação. Por exemplo, o arroz hoje está concentrado mais no sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, e isso é uma ameaça para a soberania alimentar, porque, com as mudanças climáticas, se um evento extremo acontece no estado, corremos o risco de ter que importar o arroz. São Paulo já não tem como se abastecer hoje com a produção de alimentos do próprio de seu próprio terrotório; precisa importar. Então, temos uma grande contradição. Na verdade, são duas ordens de contradições. Não só a expansão de agrocombustível reduz a área de produção de alimentos, como também requer mais combustível para garantir o abastecimento de muitas regiões. O passeio dos alimentos no Brasil, como dssemos, é insustentável. É preciso que a gente tenha um controle da expansão dessas monoculturas, que haja, de fato, zoneamentos agrícolas, ecológicos. Os assentamentos rurais do Movimento dos Sem Terra são hoje cruciais dessa região da cana em São Paulo para abastecer circuitos curtos de mercado, porque a dominância na paisagem da cana reduziu a capacidade de abastecimento. Por isso que no debate também de uma política de abastecimento, que hoje fazemos no Conselho Nacional de Segurança Alimentar, dizemos que é preciso ter um sistema de abastecimento descentralizado, com o papel regulador do Estado e com a garantia da produção de alimentos regionalmente, seguindo os padrões alimentares das regiões, as culturas alimentares. A expansão do agrocombustível vai na contramão dessa perspectiva de afirmar a soberania alimentar.

IHU On-Line – Que ações devem ser tomadas para garantir os direitos territorias da população? E quem deve se responsabilizar por tais atos?

Maria Emília Lisboa Pacheco – Primeiramente, já houve um avanço na Constituição brasileira em 1988, que reconheceu terras tradicionalmente ocupadas. Além disso, o Brasil já reconhece os direitos dessas populações. O Estado tem essa responsabilidade de fazer valer a Constituição. E, lamentavelmente, em relação às terras quilombolas, por exemplo, há uma proposta no Congresso de uma ação inconstitucional do artigo que garante o território das populações quilombolas. Na verdade, é fundamental, antes de ter um grande projeto, que o Brasil subordine as decisões econômicas, a garantia da soberania alimentar e dos direitos das populações. Ao Estado brasileiro cabe essa garantia. Agora, a mobilização social para essas conquistas é vital. E a luta nas bases, onde estão essas organizações, é fundamental, além da pressão sobre o Estado. Veja que recentemente o Estado reconheceu mais uma área quilombola, apenas mais uma, mas reconheceu. Então, é a combinação da luta do território com as articulações regionais, nacionais, essa interação de várias redes para apoiar essas lutas que tem o sentido histórico importante e pode gerar vitórias. Assim esperamos.

IHU On-Line – De que maneira o direito à terra e à água, à soberania alimentar e à saúde estão fortemente associados?

Maria Emília Lisboa Pacheco – Não há soberania alimentar sem a garantia da terra e do território. Quando nós falamos do território é porque várias populações do Brasil não vivem somente daquela terra demarcada em que plantam. A terra tem um sentido mais amplo; por isso que dizemos território. É um lugar de vida, um lugar em que, em geral, para essas populações, as áreas de uso comum, combinadas com as áreas próprias das famílias para pequeno cultivo, combinam as atividades de pesca, extrativismo, vegetal e, ao mesmo tempo, algum plantio. Isso é básico. Sem a terra e o território não há como garantir a soberania alimentar. E o papel das populações, de garantir e conservar a nossa biodiversidade, está intimamente associado ao direito de termos uma alimentação adequada, saudável. Por isso que é indissociável. Falar da terra, do direito à terra e ao território, é falar na concepção agroecológica, na diversificação da produção, na conservação da biodiversidade, na valorização das culturas alimentares locais, além de uma alimentação adequada e saudável, trazendo consequências à saúde, com uma alimentação livre de agrotóxicos e transgênicos; uma alimentação diversificada garante seguramente mais saúde. Há estudos que mostram isso. A nossa observação mesmo, empírica, pode constatar isso. Onde há diversidade com qualidade as pessoas estão com mais saúde.

IHU On-Line – Quais as principais razões para que a senhora seja contra o atual modelo de desenvolvimento brasileiro?

Maria Emília Lisboa Pacheco – O conceito de sustentabilidade socioambiental, que deveria presidir o processo brasileiro, está longe de acontecer. Nós somos um país megadiverso. Portanto, há campos do conhecimento, da pesquisa, que precisariam ser mais desenvolvidos. Para termos uma ideia, nós não sabemos no Brasil o que nós já perdemos, o que já aconteceu de erosão genética da nossa biodiversidade. E isso representa um potencial enorme. Nós não temos no Brasil estudos nutricionais que mostrem o valor dessa diversidade de alimentos. E somos um país que continua com essa perspectiva central de ser agroexportador, mesmo que isso signifique esses impactos negativos enormes sobre a população e meio ambiente. Por isso que é preciso outro modelo de desenvolvimento, que seja centrado nos direitos das populações, na valorização do meio ambiente. Nós não teremos saída na nossa história brasileira, mas também no planeta, se a gente não retomar um debate sobre a relação com a natureza, porque historicamente as mudanças que se deram, impulsionadas por esse modelo de desenvolvimento, foram subjugando cada vez mais a natureza. Precisamos, então, repensar isso. E hoje há um reconhecimento internacional sobre o que representa a agroecologia como ciência e também como movimento social que se baseia em outros paradigmas. Ademais, é possível alimentar a população sem destruir o meio ambiente, sem homogeneizar, porque se nós formos contabilizar esse modelo produtivista que se baseia para afirmar a sua superioridade, que se baseia somente de produtividade, veremos que isso é uma falácia, porque não é só o Estado que garante isso como também não se avalia o que esse fator está representando para o meio ambiente e para a saúde. Nosso país é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, e vemos como crescem também no Brasil várias doenças que são consequências desse modelo, que vai homogeneizando, desde a produção até o consumo. Por isso que eu aposto na contracorrente que tem contramovimentos, os quais precisam mostrar, cada vez mais, para a sociedade que há outras possibilidades, alternativas, e que seguramente trarão economia de outra ordem, porque uma população menos doente, menos afetada pelo impacto dos agrotóxicos, com alimentação mais saudável, seguramente vai representar menos gastos aos cofres públicos e um ambiente também restaurado, a natureza valorizada que, com certeza, nos proporcionará melhores condições de vida.

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