Edição 373 | 12 Setembro 2011

“Enquanto nos contentarmos com o Bolsa Família, não haverá mudanças”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães



IHU On-Line – De acordo com o IBGE, do contingente de brasileiros que vivem em condições de extrema pobreza, quase cinco milhões têm renda nominal mensal domiciliar igual a zero, e mais de 11 milhões possuem renda de 01 a 70 reais. O que justifica esses dados e quais devem ser as ações que o governo deve tomar para reverter este quadro?

Maria Sarah da Silva Telles – O que justifica os dados de miséria são as pouquíssimas oportunidades de inclusão cidadã para uma parte da população brasileira, no caso, milhões de brasileiros. Estes milhões de brasileiros que vivem sem renda, ou com míseros 01 a 70 reais, estão impossibilitados de obter seu direito à sobrevivência biológica: trata-se de fome, da fome que acreditávamos, pela propaganda insistentemente veiculada pelo governo, estaria resolvida. Para reverter esse quadro, só há uma alternativa: universalizar o direito de todas e todos a uma renda mínima, sem qualquer burocracia que impeça aos miseráveis tal acesso. Se o candidato ao benefício tiver de provar uma série de documentos para sua conquista, continuará fazendo parte desta estatística de miséria. Sabemos que a maioria dos miseráveis tem dificuldade de acesso à máquina burocrática.

IHU On-Line – Ainda segundo o levantamento, a grande maioria dos brasileiros em situação de miséria é parda ou negra, tanto na área rural quanto na área urbana. Em que medida a questão racial interfere na questão social e como o governo pode atuar para mudar a situação?

Maria Sarah da Silva Telles – A pobreza no Brasil é parda e negra; o legado da escravidão ainda está longe de ser superado. Não se supera mais de três séculos de escravidão sem uma agressiva política de inclusão social, de expansão dos direitos de cidadania para que todos sejam contemplados. Ainda estamos com esta dívida histórica, que os governos progressistas assinalaram em suas plataformas políticas, mas que até agora ficaram nas promessas: a inclusão racial, a inclusão dos pobres tem ocorrido muito lentamente, o que nos faz chegar à segunda década do século XXI com esta dívida social colossal. O governo, ao atacar seriamente a exclusão social, automaticamente incluirá todos os deserdados pela sua cor de pele, pela sua origem social. Por exemplo, com um valor de salário mínimo que ofereça condições dignas de vida a todos, o quadro da sociedade brasileira seria outro. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese, o valor justo seria a partir de 2 mil reais.

IHU On-Line – Os programas sociais do governo cumprem o papel de erradicar a pobreza e a miséria no país? Deve haver outras estratégias de governo para mudar o número de pessoas que vivem na extrema miséria no país?

Maria Sarah da Silva Telles – Os programas sociais existentes ajudam, mas são insuficientes. Como solução, não vejo outra a não ser a de política universal de inclusão social pela renda universal para todas e todos, pelo acesso à educação de qualidade, à saúde de qualidade, à moradia digna e acesso à infraestrutura, independentemente de origem social, de cor da pele, de região do país, de número de filhos e ocupação. Trata-se da agenda cidadã.

IHU On-Line – O governo criou este ano o Bolsa Verde, componente do programa Brasil sem Miséria que tem como objetivo estimular a proteção ao meio ambiente. De que forma o programa pode melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem no meio rural?

Maria Sarah da Silva Telles – Trata-se de mais um programa pontual, que pode gerar alguma melhoria, mas não vai resolver a situação do pobre no campo. A consciência ambiental é crucial, tem de ser uma prioridade para toda a sociedade. Mais uma vez estamos condicionando o acesso a uma ajuda mínima a certas condicionalidades que acabam por impedir que todos tenham acesso ao benefício: trata-se de um direito de todo cidadão brasileiro.

IHU On-Line – Outro objetivo do programa Brasil sem Miséria é a construção de cisternas (reservatórios de água) para plantio, com o objetivo de atender 60 mil famílias rurais e 650 mil famílias em dois anos e meio. Trata-se de uma saída para a redução da miséria no país? Por quê?

Maria Sarah da Silva Telles – A construção das cisternas é uma alternativa fundamental e louvável, a ser estendida a todas as famílias do semiárido. Mas não resolve todos os problemas. O que se pode fazer para que estas famílias vivam de forma autônoma, sem a ajuda da política social? Sabemos, por experiência de outros países e em outros períodos históricos, que uma parte da população precisará sempre de ajuda: seja porque está impossibilitada para o trabalho, seja porque o tipo de trabalho que existe – além do desemprego – não é acessível para todos, exigiria uma qualificação específica, uma disposição física que muitos pobres já não dispõem, pelas péssimas condições de acesso à saúde, por exemplo. O mais chocante é que parece que nosso governo – e nossa sociedade? – não está disposto a suprir o conjunto dos direitos para todos. E tudo indica que os miseráveis, o mundo popular, tem uma enorme dificuldade de organizar suas demandas, de fazer valer os seus direitos. Os movimentos sociais estão bastante fragmentados em lutas identitárias, que são justas, mas que contemplam parcialmente os direitos de cidadania para alguns grupos, mas não levam a bandeira da inclusão de todas e todos. Enquanto o universo popular se contentar com o Bolsa Família, não haverá mudanças no horizonte. Mas esta situação é provisória, como revela a história da luta pelos direitos humanos, pois direitos remetem sempre a mais direitos.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição