Edição 370 | 22 Agosto 2011

“O ecumenismo é movido pelo Espírito e não pode ser considerado propriedade de nenhuma igreja”

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Moisés Sbardelotto


IHU On-Line – Nos anos 1970, o senhor foi preso e torturado por mais de 20 dias pela ditadura militar, quando militava por meio dos movimentos ecumênicos de juventude. Passado quase meio século, que frutos o senhor percebe ter colhido desse seu compromisso?

Anivaldo Padilha –
A prisão me fez ver o lado mais sombrio e mais sublime do ser humano. O lado sombrio foi constatar que o ser humano é capaz de praticar brutalidades inimagináveis quando o mal que está dentro de nós se sente livre para agir sem freios de qualquer natureza. A maioria dos torturadores era movida por uma ideologia de ódio que se tornava mais agudo na medida em que percebia que o prisioneiro se recusava a cooperar. Eles sabiam que a tortura era não somente um método de interrogatório, mas também parte de uma política de Terror do Estado. Não torturavam por prazer, mas para atingir um objetivo político, que era o de quebrar todo e qualquer tipo de resistência. Sabiam claramente que tipo de tortura deviam usar de acordo com o momento. E isso incluía tanto as torturas físicas quanto as morais e o assassinato.
Ao mesmo tempo, experimentei a prática de um dos valores mais nobres e profundos do ser humano, que é a solidariedade e o amor ao próximo. Isso se manifestava de várias maneiras: a força que cada um de nós tentava transmitir ao companheiro que era levado para ser “interrogado”; a manifestação de solidariedade e de cuidados quando um companheiro voltava das sessões de torturas; os momentos de descontração – apesar da tensão real que existia – que nos ajudava a recompor as forças e o senso de autoestima; as discussões sobre o porquê de estarmos lá, que nos ajudavam a renovar nossos compromissos; o espírito de doação e de entrega expressas na compreensão de que a prisão era também uma frente de luta e de resistência, e que poderia nos levar à morte.

A prisão me fez amadurecer como ser humano, aprofundar minhas convicções de Fé e meu compromisso ecumênico. Além de tudo, fortaleceu minha oposição a todo e qualquer tipo de autoritarismo e de intolerância, como valores a serem preservados e inegociáveis.


IHU On-Line – Por outro lado, como o senhor vê a relação entre democracia e ecumenismo?

Anivaldo Padilha –
É da natureza do ecumenismo ser democrático e, portanto, desafiar todo e qualquer tipo de estruturas autoritárias. Essa é uma das razões pelas quais as instituições eclesiásticas, em geral, encontram dificuldades para viver o ecumenismo porque, internamente, elas nem sempre são democráticas. Creio que um dos papéis fundamentais do movimento ecumênico é o de educar para a prática democrática e contribuir para o aprofundamento de uma cultura democrática e da democracia em nosso país.


IHU On-Line – É preciso “reencantar” o compromisso político das igrejas cristãs diante do cenário atual?

Anivaldo Padilha –
As igrejas, como instituições, sempre têm compromissos políticos, sejam eles explícitos ou não que, infelizmente, tendem a ser conservadores. Agora, se entendemos compromisso político como uma ação profética de denúncia das iniquidades sociais acompanhadas de ações concretas de promoção da Justiça, eu diria que o “reencantamento” deve ser visto como uma tarefa permanente. É importante recordar que, mesmo no período da ditadura, quando o regime militar era um divisor muito claro, as igrejas tiveram comportamento contraditório. Foram alguns setores delas que se colocaram contra o regime militar. Outros ou apoiaram ou se omitiram.

A realidade é muito mais complexa hoje. Não há um “inimigo” comum e as opções são mais difusas e, portanto, as ações também. Encontro pessoas e setores das igrejas envolvidos nas mais diversas lutas pela defesa de direitos, inclusive daqueles que parte importante da hierarquia das igrejas considera pecados, como os direitos sexuais e direitos reprodutivos. Se essa participação não é tão visível, talvez seja porque é realizada de forma autônoma e fora do controle das instituições eclesiásticas. De certo modo, isso é positivo porque significa que os cristãos, motivados por sua fé, agem cada vez mais como cidadãos, de acordo com suas consciências, e em parceria com outras forças democráticas da sociedade. Vejo isso positivamente, pois evita a tentação que as igrejas sempre tiveram de “batizar” ou de tutelar os processos sociais e políticos.


IHU On-Line – A pluralidade cultural e religiosa existente no Brasil hoje é um desafio para as igrejas cristãs? Por quê?

Anivaldo Padilha –
Sem dúvida, é um grande desafio porque as igrejas se acostumaram a pensar que o cristianismo tem o direito adquirido de exercer o monopólio religioso no Brasil. No entanto, a realidade sempre foi diferente porque outras formas de práticas religiosas sempre existiram, mesmo quando foram oficialmente desconsideradas e perseguidas.

Um dos grandes desafios para as igrejas, hoje, é o de reconhecerem que representam somente uma parcela, sem dúvida numericamente relevante, da realidade religiosa do Brasil. E que não poderemos desenvolver e fortalecer uma cultura verdadeiramente democrática se elas não reconhecerem a legitimidade das outras religiões dentro da diversidade cultural brasileira. A importância desse reconhecimento não pode ser subestimada, porque isso contribuirá também para a superação do racismo. Refiro-me de forma especial às religiões indígenas e afro-brasileiras que têm sido historicamente discriminadas e demonizadas pelas igrejas.


IHU On-Line – O tema do Mutirão Ecumênico deste ano é “Unidos em Cristo na defesa da Criação” Em sua opinião, que papel tem o ecumenismo perante a questão ambiental?

Anivaldo Padilha –
O ecumenismo já tem dado algumas contribuições importantes, mas, obviamente, é preciso avançar. As reflexões teológicas e os processos de consultas e de mobilizações ecumênicas nacionais e internacionais têm contribuído para desconstruir o discurso teológico Ocidental de que o ser humano não é parte da natureza e que foi criado para dominá-la. Nesse processo, houve uma nova leitura da narrativa da Criação, no Gênesis, que possibilitou o reencontro com as culturas ancestrais e o reconhecimento de que fomos criados juntamente com todas as outras formas de vida e com as quais temos que conviver em harmonia. Isso nos ajuda a olhar o universo em toda a sua totalidade e compreender que fomos criados também para zelar e cuidar dele e não para usá-lo de forma exclusivista.
Temos que avançar na crítica teológica ao modelo econômico hegemônico e continuar a desafiar a sua lógica de progresso e de crescimento ilimitado baseado na busca frenética do lucro e da acumulação e concentração da riquezas. A reflexão teológica e crítica é uma das contribuições específicas que o movimento ecumênico pode dar.

Um desafio que temos é como envolver cada vez mais igrejas e comunidades nessas reflexões e como inspirá-las a se envolverem mais nas lutas por um novo modelo econômico socioecologicamente sustentável, economicamente viável e socialmente justo e respeitoso para com as culturas locais. É uma equação difícil e, por isso mesmo, desafiante.


IHU On-Line – A reflexão ecológica, especialmente no Brasil, passa também pela justiça ambiental e pelos direitos dos povos indígenas. Como a ação ecumênica colaborou e pode ainda colaborar para o avanço de propostas concretas em torno desses eixos?

Anivaldo Padilha –
Vários estudos mostram que os que mais sofrem as consequências da degradação ambiental, no Brasil, são os pobres, especialmente a população negra e os povos indígenas. Portanto, ao falar de justiça ambiental, temos que ter claro que estamos falando também das suas consequências sociais e do racismo ambiental.

O movimento ecumênico há muitos anos tem tido papel importante nas lutas para a superação do racismo, pela defesa dos direitos dos pobres e pela defesa dos direitos culturais e territoriais dos povos indígenas. Seja atuando diretamente junto dos povos indígenas em apoio aos seus projetos e na divulgação nacional e internacional de suas lutas, seja em ações conjuntas de igrejas, por meio de suas organizações ecumênicas, em ações diretas de incidência sobre os governos.

Em termos de propostas concretas, creio que o papel do movimento ecumênico é o de atuar junto com outras organizações da sociedade civil na busca e no desenvolvimento de propostas. Ele não pode ter a pretensão de que deve ou que tem condições de conduzir processos. Por isso, qualquer proposta concreta terá que nascer da interação com as comunidades mais atingidas. Creio que o papel do movimento ecumênico é diaconal (serviço ao próximo) e não de protagonista principal.


IHU On-Line – Que “sinais dos tempos” da sociedade contemporânea mais interpelam as igrejas cristãs hoje, em sua caminhada ecumênica?

Anivaldo Padilha –
Creio que o os “sinais dos tempos” estão na crise do sistema financeiro mundial e na crise ambiental que são sintomas de uma crise mais profunda. A crise não é conjuntural. É sistêmica e, como tal, deverá ter impactos profundos em todo o mundo. Como cristãos somos chamados a lançar nosso olhar para além dos vagalhões e identificar quais são as ondas pequenas que estão se movendo no meio desse maremoto. Creio que essas pequenas ondas podem ser identificadas nas ações antissistêmicas, que vão desde as experiências concretas comunitárias que gestam novas formas de relações sociais, políticas e econômicas às grandes manifestações nacionais e mundiais contra o sistema econômico, passando também pelas mobilizações de setores historicamente discriminados em luta por seus direitos, especialmente as mulheres, os negros, os indígenas e homossexuais. São sinais de um novo mundo que está surgindo mas que não sabemos o que será nem quando. Temos que observá-los com os olhos da Fé e interpretá-los com esperança.


IHU On-Line – Recentemente, o senhor participou de debates e da organização de um abaixo-assinado em apoio à proposta de criminalização da homofobia, por ocasião da Parada Gay. Como debater a questão de gênero de forma ecumênica? É possível um compromisso cristão em torno dessa luta?

Anivaldo Padilha –
Alguns levantamentos indicam que um homossexual é assassinado a cada 36 horas no Brasil. E tudo indica que esses dados não são completos, uma vez que muitos assassinatos de homossexuais não são registrados como tal. Essa é a realidade e é contra ela que temos que reagir.

Temos que reconhecer que as igrejas têm uma grande parcela de responsabilidade pela disseminação do preconceito e do estigma contra pessoas cuja orientação sexual não coincide com os padrões estabelecidos pela nossa cultura, baseada em valores patriarcais. Nesse sentido, as igrejas são corresponsáveis por essa violência.

Creio que é mais fácil discutir a questão da diversidade de gênero no âmbito ecumênico do que nas igrejas porque encontramos mais liberdade de pensamento, de expressão e de ação nos espaços ecumênicos. Em minha opinião, a abordagem a partir de uma visão democrática e republicana é mais fácil e mais produtiva.

Para mim, a discussão teológica e dos textos bíblicos é muito importante e é isso que temos feito nos círculos ecumênicos nos quais transito. Entretanto, não considero importante a discussão sobre se homoafetividade é ou não pecado quando se trata de garantia de direitos civis. Essa é uma questão política e deve ser considerada no âmbito do Estado, e o Estado brasileiro é laico. Portanto, não compete ao Estado tomar decisões com base em princípios religiosos de nenhuma religião em particular.

As igrejas têm o direito garantido na Constituição de definir o que é pecado e estabelecer regras para qualquer tipo de comportamento e exigir que seus membros sigam rigidamente essas regras. Mas não têm o direito de impô-las a toda sociedade nem de ofender ou violentar a integridade moral das pessoas que estão fora do seu aprisco.

Felizmente, o que parecia unanimidade nas igrejas há algum tempo deixou de sê-lo. Os conflitos sobre sexualidade nas igrejas mostram que essa unanimidade não existe e que as igrejas deixaram de ser impermeáveis às demandas por respeito e justiça por parte da comunidade LGBT. Atualmente, testemunhamos o crescente engajamento de cristãs e cristãos nas lutas pela defesa de direitos e pela superação da homofobia. Portanto, já há um crescente compromisso cristão-ecumênico em torno dessa luta, mesmo porque, grande parte de gays e lésbicas professam a fé cristã, apesar de serem rejeitados pela maioria das igrejas.

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