Edição 369 | 15 Agosto 2011

Hume e a razão provável

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Márcia Junges



IHU On-Line - Em que aspectos se pode falar de uma inteligibilidade da existência externa na filosofia de Hume?

Andrea Cachel - Entendo que o objetivo central da seção 2, da quarta parta do primeiro Livro do Tratado da natureza humana, é defender a consistência da crença do senso comum nos objetos externos. Hume inicia a discussão afirmando que sua intenção não é discutir se os corpos existem ou não. Segundo ele, devemos tomar a existência dos corpos como pressuposta. Porém, reconhece que não temos acesso a esse suposto “mundo exterior”. Nessa medida, propõe-se a discutir apenas as causas da crença que depositamos na existência de objetos externos. E esclarece: a noção de “objeto externo” deve ser traduzida como a ideia de que há existências que continuam a existir mesmo quando não percebidas (existência contínua) e que são independentes das situações observadas no sujeito cognoscente (existência independente).
Hume analisa três possibilidades para a origem da crença nos corpos: sentidos, razão e imaginação. Ele argumenta ao longo do texto que nem os sentidos, nem a razão podem dar origem à nossa crença de que há objetos que continuam a existir mesmo quando não percebidos e que têm uma existência que não se modifica a partir das alternações que ocorrem na situação do sujeito que percebe. Desse modo, mostra que não é simplesmente na forma como certas impressões aparecem aos sentidos que se origina a ideia de que há um mundo exterior e, ainda, que não se pode fazer uma inferência das nossas percepções para um suposto objeto externo, ao contrário do que tentaria fazer a grande parte da filosofia moderna, em especial a partir de uma divisão entre qualidades primárias e secundárias.
Sua resposta à origem da crença no mundo exterior, portanto, identificará a imaginação como a responsável por tal noção. Cabe observar que a imaginação, na filosofia humeana, consistirá em um vasto campo de atividades cognitivas, dentre as quais algumas integrarão o conceito de racionalidade experimental, nos termos que expus na questão anterior. No caso da formação da crença nos corpos, contudo, os princípios e tendências da imaginação envolvidos são os que Hume chama de “irregulares”. Ele explica que essas tendências e princípios fariam com que a mente humana considerasse as impressões coerentes e constantes como existências contínuas e distintas, a partir da pressuposição vulgar de que não há uma diferença específica entre percepções e objetos.
A crença nos corpos, nessa medida, seria fruto de uma ficção natural da mente humana. Ela partiria, sobretudo, da tendência da imaginação de estender as regularidades observadas e da impossibilidade da mente humana de suportar uma contradição entre princípios regulares e irregulares da imaginação, origem, principalmente, da noção de identidade e da substancialização das percepções.

IHU On-Line - Em que medida Hume dialoga com Berkeley no que diz respeito à questão da inteligibilidade da existência externa? Quais são os pontos em que ambos divergem?

Andrea Cachel - O desafio enfrentado por Hume na discussão sobre a crença nos corpos é precisamente aquele colocado por Berkeley , em especial nos Princípios do Conhecimento Humano. Hume reconhece o que Berkeley já havia admitido, a saber, que, supondo-se uma diferença entre objetos e percepções, não é possível explicar porque acreditamos que há um mundo externo. Para defender a consistência da crença vulgar na matéria, enquanto a crença de que nossas impressões coerentes e constantes são também contínuas e independentes, uma das etapas centrais será refutar o princípio berkeleyano segundo o qual ser é ser percebido. Para tanto, coube à filosofia humeana mobilizar uma série de princípios da imaginação, e, mais especificamente, elaborar uma nova “teoria da mente”. A concepção da mente como um feixe de percepções – ou um teatro sem palco – explicaria, segundo Hume, em que medida não é contraditório pensar que algumas percepções podem se ausentar da mente sem que isso implique a sua não existência enquanto percepções e, no sentido contrário, que novas percepções possam se conectar ao feixe sem que isso implique a criação constante de novas existências.

IHU On-Line - Ainda sobre esse tema, qual é a influência de Hume nas concepções kantiana?

Andrea Cachel - Ao procurar vencer os desafios colocados pelo idealismo berkeleyano, defendendo a inteligibilidade da ideia de objeto externo, Hume já prefigurou um novo horizonte de compreensão sobre a natureza da “representação”, dando impulso às tentativas de superação da teoria das ideias modernas. Nesse contexto, apontou a necessidade do percurso a ser trilhado por filósofos a ele posteriores, tais como Kant. No caso específico da discussão sobre a crença nos corpos, entendo que a tentativa de defender a consistência da mesma dos desafios colocados pelo idealismo berkeleyano implica a prefiguração da nova forma de se interpretar o problema da “correspondência” entre mundo e representação, conforme já indiquei na questão anterior. Isso, sem dúvida, influencia o criticismo kantiano. Porém, a discussão humeana que reconhecidamente apresenta consequências na filosofia de Kant é a pertinente à relação causal. Mencionando-a, Kant afirma que Hume o “despertou de seu sonho dogmático”.
O debate quanto à extensão dessa influência na filosofia kantiana ainda está aberto. Contudo, de modo geral, podemos perceber que as evidências apresentadas por Hume quanto à impossibilidade de se fundamentar a relação causal na percepção direta dos objetos ou numa razão compreendida ainda à luz do paradigma clássico inspiram toda a constituição kantiana de um campo de determinação a priori dos objetos, em especial o campo das categorias do entendimento. Isso não significa ignorar as diferenças cruciais entre esses autores, tampouco incorrer no erro do anacronismo. Entendo que a maioria das respostas dadas por Hume às questões por ele discutidas, sobretudo as atividades da imaginação implicadas nessas respostas, seria completamente rejeitada por Kant. Porém, aquilo que hipoteticamente Kant poderia compreender como um equívoco parece fazer parte do espírito das respostas oferecidas pela sua filosofia. Hume parece ser um autor fundamental para a percepção kantiana da necessidade de se estender a espontaneidade da consciência na constituição daquilo que entendemos por “objeto”. Entretanto, ressalto novamente que a importância da filosofia humeana nas observações de Kant é um tema ainda a ser mais explorado pelos comentadores.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da filosofia de Hume? Quais são suas contribuições ao debate quanto à possibilidade do conhecimento?

Andrea Cachel - Penso que a atualidade da filosofia humeana está ligada precisamente ao seu viés crítico, por um lado, e, por outro, ao naturalismo característico das suas tentativas de resposta aos problemas por ele próprio formulados. Quanto ao primeiro aspecto, podemos citar o exemplo da análise humeana sobre a causa e efeito. A argumentação humeana, segundo a qual não há uma base racional para a passagem da observação presente de uma conjunção constante para uma inferência futura, ainda é uma das grandes questões filosóficas a respeito do conhecimento. Ela inspira opiniões como a de Popper, que diz que as teorias científicas devem ser falseáveis e não propriamente confirmadas. Assim, suas percepções quanto aos limites à possibilidade do conhecimento mantêm seu espírito inovador. Por outro lado, o enfoque humeano nas tendências naturais da mente humana e no hábito parece bastante compatível com as discussões epistemológicas contemporâneas que procuram debater os temas pertinentes ao conhecimento à luz de ciências como a biologia e a neurociência.

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