Edição 369 | 15 Agosto 2011

Outros critérios: os 300 anos de David Hume

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Márcia Junges



IHU On-Line – O ceticismo é superado por Kant?

César Kiraly – Acredito que Hegel é o responsável pelo estabelecimento de uma relação de superador e superado entre Hume e Kant, ainda que Kant se esforce para resolver problemas colocados por Hume. Mas, apesar da relevância de Hume para Kant, os dois habitam em continentes de ideias bem diferentes. Kant se preocupa com normas, um problema que é rapidamente destruído por Hume. Uma vez que Hume se preocupa com a relação entre crenças e regras, a norma surge como uma crença demasiadamente arrogante, que procura algum privilégio público pelo seu ponto de enunciação, que prevalecerá pela coerência regular e não pela vontade normativa. Mas isso não significa que Kant não tenha superado o seu cético imaginativo. Il faut tuer son mandarin imaginaire. Mas tal superação tem pouca relevância para os problemas que preocupam Hume. Por exemplo, a descrição da experiência pela relação entre impressões e ideias, como percebe Husserl, parece ser a origem, pelo menos indireta, da problemática do transcendental, mas o uso não elementar dessa ideia, como o faz Kant, surgiria em Hume no campo das ideias a serem desmontadas.
Mas não vejo com maus olhos o processo iniciado por Hegel, desde 1802, com o texto A relação do ceticismo com a filosofia, e que já possuía elementos em muitos pensadores como Grotius e Descartes, de pintar um cético que será combatido. Esse procedimento não é muito diferente do dogmático pintado e combatido pelo cético. Diga-se, de passagem, que é uma forma de proceder muito mais elegante do que a contraposição oportunista, e de mão única, entre racionalistas e irracionalistas. Pois sempre se é o irracionalista de alguém. Mas para se ser o cético ou o dogmático de alguém, algum componente dramatúrgico deve ser apresentado pelos enunciados da filosofia examinada que permite a entrevisão da predominância em um dos dois personagens. Num caso há uma classificação de inimigo, injusta, pois arbitrária; do outro lado, há apenas um efeito de superfície discursivo, levado a cabo por vícios presentes no conflito entre as filosofias. Mas vejo um problema em historiograficamente se limitar a imaginação do personagem “o cético”, como é presente no fetichismo de sua superação. Acredito que o procedimento de Hegel deve ser aprofundado, deve se fazer como ele, e não o que ele fez, até mesmo um cético pode ganhar muito imaginando e enfrentando o seu próprio cético, sem falar dos seus já tradicionais dogmáticos.

Cauterização de dogmas
Antes de tudo, cabe dizer que o cético visto por Hegel é simplesmente cético sobre o conhecimento, ignorando, portanto, o ceticismo sobre valores que lhe era contemporâneo. Assim, a imagem de um cético que se opõe a enunciados sobre conhecimento, auxiliando o dogmático a realizar a descoberta de fundamentos, é bem menor do que poderia ser. Poderia nos ser objetado que o ceticismo sobre valores, como aparecerá em Kierkegaard  ou Schopenhauer , não vale como ceticismo, pois não se relaciona com a linhagem de Montaigne, Bayle e Hume. Mas, se apelarmos para uma descrição das condições da ideia, diríamos que Hegel tem uma concepção parcial do ceticismo, porque não pode fazê-lo de modo mais interessante. Ainda que sem a sensibilidade historiográfica e capacidade de pintura de personagem de Hegel, o exercício do ceticismo sobre valores está associado a certo mal-estar com a filosofia universitária, com a centralidade do tema da crença ou da vontade e com a prática estilística da inovação formal da escritura seja pelo ensaio, pelo aforismo ou pelo diário. Não seria irônico notar que a estrutura da obra de Hume é a mesma que a de Schopenhauer: um grande tratado orbitado por ensaios que lhe definem o sentido e dissertações que explicitam pontos. Assim, a imagem do cético de Hegel é pior do que poderia ser, porque Hegel não foi um historiador tão bom quanto poderia ser. Pois, de alguma forma, o ceticismo sobre valores, já está na linhagem fundamental do ceticismo moderno.
Hegel poderia ter visto que o ceticismo sobre o conhecimento não exclui o ceticismo sobre valores, se não encarnasse de modo tão excessivo a filosofia universitária, e que um flerta com o outro. Por isso, superar uma tese cética sobre o conhecimento não ultrapassa a possibilidade valorativa dessa mesma tese. O ceticismo sobre o conhecimento não é capaz de cauterizar um enunciado desmontado, mas apenas abrir a oportunidade para o ceticismo sobre valores fazer o trabalho. Isso pode ser visto no trabalho que Hume empreende de cauterização dos dogmas religiosos naquilo que é aberto com a sua crítica do conhecimento. Além disso, Hegel poderia ser visto, no que concerne a caracterização do cético, que um cético pode ser apenas perspectivo, seja de um modo amplo ou parcial, de maneira tal que uma tese pareça cética com relação à outra, mas que não o seja de nenhuma forma. Ou que o cético pode ter, como dissemos, uma estrutura retórica de amigo e inimigo. Ou, ainda, que estejamos diante de um cético, cuja identidade cética é relevante para seus argumentos, seja em primeira ordem, como em Pirro, que não é outra coisa que não um cético, ou em segunda ordem, na qual ser cético significa muitas coisas, inclusive, ceticismo.

IHU On-Line – E a forma suicidária do pensamento?

César Kiraly – Um dos traços fundacionais do ceticismo moderno é a tolerância religiosa. A releitura da escritura de Sexto Empírico serviu de epistemologia para a admissibilidade da pluralidade de religiões, tal como de sistemas filosóficos. Bastante natural foi que os céticos organizassem a sua identidade filosófica em torno de reflexões de província religiosa, tais com o cotidiano, a morte, a sexualidade e o suicídio. De uma forma bem drástica, eu gostaria de dizer que o ponto de inflexão do cético moderno é a preocupação com o suicídio, ou, até mesmo, com a boa morte. Desse centro, podemos deduzir a relevância do pensamento político cético.
A posição histórica e religiosa com relação ao suicídio pode ser resumida na expressão de Montesquieu : “As leis na Europa são furiosas contra aqueles que matam a si mesmos. Elas fazem com que morram uma segunda vez; eles são tratados com indignidade pelas ruas, nós os marcamos de infâmia, confiscamos seus bens”. É contra esse ambiente que escreve Hume. Mas mesmo ele teve receio de escrever sobre a matéria, como pode ser percebido na sua hesitação para publicar o ensaio sobre o suicídio. Deve-se notar que o suicídio abriga em si um sem número de questões: (1) o problema da pluralidade, (2) o problema da tolerância, (3) o problema da laicidade, (4) o problema da dignidade e (5) o problema da punição. Ou seja, o suicídio é um carrefour político.
Mas Hume faz mais do que escrever um ensaio sobre o suicídio: ele aborda a vida política utilizando este conceito diphônico. Na verdade, Hume tira o suicídio do âmbito das noções, e dos preconceitos, e o transfigura num conceito. Assim, existe uma dupla dimensão complementar no suicídio: os seus aspectos solitário e político. O suicídio político nasce de uma solidão acerca das crenças públicas. E o suicídio solitário, que não tenha na sua justificativa um enunciado explicitamente ligado à soberania ou ao parlamento, também é bastante político em seus efeitos, uma vez que institui uma percepção bastante cruel sobre um estado de coisas. Tanto na esfera solitária, quanto na política, Hume não defende que se pratique o suicídio; ele não é um pensador suicida, mas faz perceber que a dinâmica interna não é condenável. Um suicida não é condenável por ser suicida. Ele é reprovável quando violento com alguém se valendo do suicídio. Além disso, se vinculado a moralidade da boa morte (e isso não inclui a morte dos outros), ele pode ser tomado como um ato virtuoso. Não só não há o que se condenar no suicídio, quanto nele existem elementos com os quais se deve aprender. Dessa forma, nota-se que o suicídio não é bem um ato, mas uma circunstância. Nada mais cético do que isso. O suicídio é algo que leva ao suicídio. Ele é a saída digna a uma situação de estrangulamento. Mas é inegavelmente um problema. Mas o que Hume nos leva a perceber é que o aprendizado com o suicídio, algo que é desenvolvido nos momentos humeanos da obra de Durkheim , não leva a um pensamento suicida, mas suicidário. Porque a investigação das causas do tratamento ignonimioso ao suicida estrangula o dogma e libera a dignidade do suicídio para aparecer. Esse modo de pensar, suicidário, é iniciado pensando o suicídio, mas se torna em modo abstrato e serve para outros dogmas. Se o dogma tornou o suicídio na questão, o ceticismo fez da questão um conceito, um modo de pensar que leva ao suicídio do dogma.

Ceticismo, política e linhagem anômala
Acredito que podemos continuar com o suicídio para explicar o modo anômalo pelo qual o ceticismo, junto com outros pensadores, pensa a política. Digamos que o suicídio pode ser pensado de duas formas: de modo soberano ou de maneira anômala. A maneira soberana se preocupa com as possíveis implicações de descumprimento hierárquico da ação sobre a vida, ou, até mesmo, da simples reflexão sobre a matéria. Nessa chave o suicídio pode significar descumprimento das obrigações com Deus, com a Instituição, o uso indevido de uma propriedade – aquela sobre a própria vida – etc. O modo anômalo tentará explicar sem recorrer excessivamente às hierarquias, mas sim às circunstâncias. Sem o mandamento essencial da hierarquia, restou ao cético indagar sobre as condições do suicídio, das pessoas e das ideias, e o que sobre ele se fala, comparando, portanto, a experiência cotidiana da presença do suicídio, seja como notícia do feito ou manifestações de horror, com a narrativa soberana. O cético não supera o mandamento soberano, mas o destrói por redução aos seus elementos compositivos. Se a soberania pode abandonar, por oportunismo, a sua narrativa sobre o horror do suicídio, isso não significa superação da condição cética, mas reconhecimento, puro e simples, de um argumento que a derrotou.

Esse modo anômalo de pensar problemas políticos pode ser muito limpidamente coerente, mas a sua construção, por assim dizer, o seu modo de ver, é construído com muita dificuldade, porque a linhagem anômala se constitui pelo acidente e não pela substância. Existe muito pouca afinidade metafísica entre Maquiavel, Spinoza e Hume, mas o reconhecimento que o componente cotidiano é prioritário à política os faz complementares, mas de modo fortuito, na percepção da crueldade. Por essa razão justifica-se o uso da expressão “linhagem anômala do pensamento político”, pois são bem poucos os pensadores que se reconhecem de modo direto e que pensam no contrapé da hierarquia. Hume, com a descrição de crenças políticas, seja de modo abstrato, ou, como na História da Inglaterra, pela história das representações, não inicia a anomalia, mas a desenvolve e a aperfeiçoa. Essa linhagem, como dissemos, inicia-se com Maquiavel e com a percepção de que a política descreve a crueldade como prática cotidiana e a crueldade no discurso soberano, em Maquiavel representado pelo cristianismo, como modo de encobrimento para aprofundamento do vício. Montaigne e La Boétie exercitam o mesmo modo de ver, mas atrelam a falta de inteligibilidade à servidão, pelo menos a percepção imediata do discurso hierárquico na vida pública. Spinoza, por outro lado, atrela a liberdade à percepção da crueldade – não ver como político, mas ver os políticos – e Hume, no ensaio Que a política pode ser reduzida numa ciência, utilizando redução no sentido nominalista de imagem elementar, atrela a liberdade política ao modo de conhecer que exercita o estabelecimento de princípios a partir da descrição das circunstâncias. Pode-se dizer que a linhagem anômala faz uma filosofia ontologicamente democrática da política.

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