Edição | 15 Agosto 2011

Ceticismo, naturalismo e sentimentalismo: as contribuições de Hume

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Márcia Junges



IHU On-Line – Quais são as principais conclusões a que chegou com o acompanhamento da evolução do conceito de simpatia no pensamento de Hume? Como o conceito de simpatia implica na constituição das sociedades humanas, educação moral dos indivíduos e no estudo dos fenômenos históricos e sociais?

Lívia Guimarães – Hume introduz o conceito de simpatia na seção “Do amor à fama”, livro 2, parte 1 do Tratado, ao analisar as paixões do orgulho e humildade. Segundo ele, o orgulho é um sentimento agradável, causado pela boa opinião que temos de nós mesmos, devido a possuirmos ou termos associadas a nós qualidades e objetos de valor. Todavia, adverte que essas causas pouco valem se não são confirmadas por outras pessoas. A razão disso é nossa propensão à simpatia – “a receber por comunicação suas inclinações e sentimentos, por diferentes ou mesmo contrários que sejam aos nossos próprios”. No orgulho e demais paixões indiretas (amor, ódio, humildade e suas variantes), a comunicação de sentimentos intensifica, modera ou até mesmo extingue o prazer e dor originais.
No Tratado, Hume também define simpatia como conversão de uma ideia em impressão pela força da imaginação, que se traduz na força dos princípios de associação de impressões e ideias. Uma paixão ou inclinação de outrem primeiro nos aparece como ideia – seu comportamento é um efeito, que nos conduz à ideia da causa, a paixão. Nossa associação a ele, por contiguidade e semelhança, confere força e vividez a essa ideia, convertendo-a em impressão – ou seja, na própria paixão, que agora passamos a sentir.

Simpatia e moral
Para haver simpatia, é suficiente a mera proximidade de alguém que percebamos como semelhante e, portanto, sujeito a experiências de prazer e dor semelhantes às nossas. Quanto mais forte nossa relação, mais fácil será a transição pela qual a vívida concepção que temos de nós mesmos transmite vividez à ideia da dor ou prazer alheio. A simpatia pode dirigir-se a seres presentes, passados e até mesmo imaginados no futuro. Pode limitar-se à sensação e momento imediatos, ou se estender a todas as circunstâncias de seu objeto, tornando-nos interessados em sua felicidade. Pode resultar em sentimentos contrários: grande dor ou grande simpatia dão origem à benevolência e à compaixão, enquanto um grau pequeno origina desprezo ou ódio.
A simpatia explica a uniformidade de sentimentos e opiniões entre os membros de uma nação. Ela explica mudanças de humor quando estamos em companhia. Nas palavras de Hume: “ódio, ressentimento, estima, amor, coragem, alegria, e melancolia; todas essas paixões sinto mais por comunicação do que pelo meu próprio temperamento e disposição naturais”.
Definida como operação original da mente humana, a simpatia é também condição necessária da moral. O sentimento moral de aprovação depende de uma simpatia isenta das flutuações relacionadas a proximidade e distância. Nós a obtemos ao assumirmos pontos de vista gerais, adotando uma posição imaginativamente próxima de um indivíduo e todos à sua volta, de modo a sentirmos, por simpatia, os efeitos de sua ação sobre eles. O prazer que ele causa induz nossa aprovação, a dor, desaprovação. Portanto, o ponto de vista geral, a partir do qual emitimos juízos morais, resume-se à expansão reflexiva de nosso envolvimento simpático com outros indivíduos humanos (podendo se estender, em nossos dias, a não humanos) e à regulação de nossa tendência à simpatia. É por isso que dizemos que a simpatia nos torna seres morais.
O Tratado investiga a influência da simpatia nas paixões e na moral em grande detalhe e sugere, mas não elabora, uma influência comparável na esfera do conhecimento. Hume alude à simpatia nos casos onde há transmissão de crenças pelo simples contágio das opiniões e sentimentos. Este é um modo não filosófico da crença, em que a força da mera contiguidade toma o lugar de raciocínios e argumentos – seria exemplo de uma experiência não reflexiva de simpatia na cognição. Mas o Tratado pouco faz além de mencioná-lo, e jamais aborda a questão de uma possível influência da simpatia reflexiva sobre as crenças.
A comunicação de crenças por meio da simpatia só se torna, de fato, relevante quando a filosofia de Hume dirige-se mais particularmente às relações humanas em sociedade, cuja base repousa em paixões compartilhadas. Afinal, observando-se que, pela simpatia, somos susceptíveis às emoções de outras pessoas (a simpatia estende nosso interesse para além de nosso círculo imediato; ela é causa da benevolência, compaixão, afabilidade, generosidade e outras virtudes sociais), conclui-se que a simpatia é causa da nossa própria existência em sociedade, ao estabelecer laços afetivos, padrões de convívio e conduta, e experiências e conceitos compartilhados. Ademais, as paixões e as crenças associadas a elas são causas dos acontecimentos históricos e representam poderosos fatores de mudança. Aqui se insinuam os perigos da simpatia não reflexiva – um exemplo são consequências sociais e políticas da superstição e entusiasmo religioso moderno. Evidenciam-se aqui também as vantagens da simpatia reflexiva, que nos torna perceptivos em relação a contextos morais e que favorece o cultivo das virtudes sociais.

Instrumento moral
Um outro sentido em que a simpatia adquire relevância está nos casos em que a simpatia pelos participantes e práticas é necessária para se obter verdadeiro conhecimento acerca dos fatos. A obra História da Inglaterra (1754-62) nos conduz das ações às paixões e qualidades de caráter dos atores. Ela, inclusive, pressupõe que a narrativa de eventos históricos pouco instrui se não ensina sobre a felicidade e miséria dos protagonistas. Mas não podemos julgar, não podemos sequer compreender os fatos sem exercitarmos simpatia. Afinal, para se explicar as ações humanas, é preciso antes perceber as paixões que as motivam. Creio que não exagero ao afirmar que simpatia reflexiva é condição para o conhecimento da totalidade dos fenômenos humanos. Parece-me que nem o Tratado prevê essa cláusula, nem seus intérpretes geralmente a reconhecem, muito embora, de certo modo, ela represente um desdobramento natural do programa filosófico que, no Tratado, trouxe “sentimento” e agora traz “simpatia” para o interior da cognição. (Vale, porém, lembrar que, já no Tratado, a fonte de normatividade mais abrangente – a extensão dos sentimentos – dá-se por associação e transferência imaginativa e deriva, portanto, do conceito de simpatia.)
Por fim, através da simpatia, Hume faz de sua ciência, ou filosofia, um instrumento moral. Ao nos apresentar um grande número de cenas de prazer e dor, ele nos incita ao exercício da imaginação moral, levando-nos a ampliar a esfera de nossa simpatia para muito além do próximo e imediato. Ele excita nossas paixões e nos faz, como ele mesmo diz, sentir a diferença entre virtude e vício. Para Hume, a felicidade associa-se a virtude, conhecimento, indústria, ação, prazer e repouso. Condições que promovem as virtudes sociais, que contribuem para a paz social e para o desenvolvimento das artes e ciências são propícias à felicidade. Apontando-as, ele procura nos predispor favoravelmente a elas. Mais que isso, ele procura regular nossa conduta. Sem precisar ensiná-la ou advogá-la diretamente, Hume promove a virtude pelo cultivo das paixões calmas, combate às violentas e às falsas crenças, em cada leitor de sua obra. Temos aqui, decerto, um Hume diferente daquele que foi criticado por Hutcheson, por não ter sido mais caloroso a favor da virtude no Tratado e que, na ocasião, defendeu-se dizendo não ser esta a tarefa do cientista moral. Mas é este o Hume que me parece se revelar no pervasivo alcance da simpatia.

IHU On-Line – Do que tratam os conceitos de superstição e entusiasmo em Hume?

Lívia Guimarães – Originalmente, para Hume, no ensaio Da superstição e do entusiasmo (1741), ambos designam manifestações religiosas vulgares. A superstição resulta do medo, justificado pelas circunstâncias adversas da vida humana, mas intensificado nos indivíduos com disposição melancólica e exacerbado sob a forma de terror, no caso do crente religioso. Temeroso de catástrofes reais e imaginadas, este dedica-se à prática constante de rituais e sacrifícios a fim de propiciar poderes invisíveis desconhecidos. Hume afirma: “Fraqueza, medo, melancolia, juntamente com ignorância, são, portanto, as verdadeiras fontes da superstição”. O catolicismo vulgar é o caso paradigmático. Já o entusiasmo é característico de uma disposição otimista e confiante, exacerbada em exaltação, que faz crer numa relação privilegiada, inspirada e direta com divindades benéficas. Para Hume: “Esperança, orgulho, presunção, uma imaginação viva, juntamente com ignorância, são, portanto as verdadeiras causas do entusiasmo”. As seitas calvinistas manifestam essa tendência.
Ocorre que, além de seu papel na explicação da credulidade e da religião vulgar, estes são conceitos que Hume emprega também como divisores entre orientações políticas, morais e filosóficas. “Timorosa e abjeta”, a superstição favorece o poder clerical e hierárquico, é contrária à liberdade civil e impõe sujeição aos governados. Pela ação incansável dos seus defensores, o domínio que ela conquista sobre a sociedade culmina em governo tirânico. O entusiasmo inicialmente produz “desordens cruéis”, ao se manifestar com maior violência, mas esta rapidamente se abate. E, como se caracteriza por independência e aversão ao intermédio de sacerdotes, ele propicia maior tolerância política. Tolerância, estabilidade, sujeição e liberdade são problemas nas relações políticas os quais, em Hume, explicam-se pelo uso das categorias da superstição e entusiasmo. Na História, aquela define os conflitos da Inglaterra medieval, e este, os conflitos que resultam na Guerra Civil que depôs Charles I.
Além disso, como observou Knud Haakonssen, estes conceitos indicam dois tipos de orientação teórica na esfera política. Hume associa as teorias de origem aristotélica à superstição, e as teorias contratualistas modernas ao entusiasmo. Ou seja, enquanto aquelas propunham uma teleologia das formas políticas, culminando numa rígida hierarquia, estas enfatizam a livre vontade individual dos contratantes. Desse modo, Hume se apropria, na explicação das teorias e práticas políticas, de sua tipologia das formas religiosas. Essa apropriação acontece relativamente cedo. Suas linhas gerais já se encontram, como disse, delineadas no ensaio intitulado Da superstição e entusiasmo. Na História da Inglaterra, ela se concretiza em definitivo, voltando a se afirmar no Da origem do governo, publicado em 1777.

“Entusiasta sem religião”

Na esfera moral, Hume elabora um sistema geral de oposições, onde os tipos derivados da religião vulgar com frequência representam o oposto dos seus próprios ideais. Na coluna dos vícios, ele inscreve as virtudes monásticas do celibato, jejum, penitência, mortificação, autonegação, humildade, silêncio e solidão, às quais se opõem as virtudes sociáveis do “partido da humanidade” humeano. No Diálogo que acompanha a Investigação sobre os princípios da moral, ainda servindo-se do entusiasmo e superstição, Hume cunha o conceito de “vidas artificiais” – vidas que não seguem os princípios do útil e agradável, por efeito ou de entusiasmo filosófico, ou de superstição religiosa. Os últimos desvalorizam o mundo natural em proveito de uma obscura existência sobrenatural. Mais dignos de pena do que de condenação, eles são vítimas de autoengano, perseguem fins ilusórios e, tendo que reconciliar contradições insolúveis (por exemplo, na concepção de um Deus ao mesmo tempo benevolente e punitivo), têm suas condutas fadadas ao fracasso.
Por fim, Hume utiliza-se destes conceitos para indicar posições filosóficas. Ele denomina entusiasta a filosofia dos cínicos antigos, personificada no feroz Diógenes. Na modernidade, condena a superstição religiosa, por corromper o pensamento de Malebranche, na formulação do ocasionalismo. Ecoando sua advertência, nos Diálogos sobre a religião natural (1779), quanto à contaminação da filosofia pela superstição, numa carta para Edward Gibbon, ele diz: “entre muitos outros sinais de declínio, a prevalência da superstição na Inglaterra prognostica a queda da filosofia e decadência do gosto”. Referindo-se a si próprio, numa carta de juventude para Henry Home, Hume afirma ter excluído do manuscrito original do Tratado certas partes que poderiam parecer ofensivas. Ele procurou assim se precaver contra o entusiasmo filosófico. Em suas palavras: “Eu estava decidido a não ser um entusiasta em filosofia, enquanto denunciava outros entusiasmos”. Ao mesmo tempo, como relata uma anedota presente em várias biografias de Hume, certa vez, entre amigos, ele se descreveu como “um entusiasta sem religião, um filósofo que não espera alcançar a verdade”.

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