Edição 367 | 27 Junho 2011

As raízes do riso e a ética emocional brasileira

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Márcia Junges



IHU On-Line – Sob quais aspectos o humor é expressivo da época em que é produzido?

Elias Thomé Saliba – O humorista faz um retrato instantâneo e efêmero da história das sociedades, mas nem por isso, menos verdadeiro. A anedota colocada na abertura do livro – um inglês, um francês e um alemão descrevendo um camelo (a qual eu acrescentei também um brasileiro) – mostra que quase toda piada (não apenas as chamadas “piadas étnicas”) exige uma espécie de cultura silenciosa para o seu completo entendimento. A produção humorística é um espelho no qual as sociedades podem mirar-se, mesmo quando as piadas sejam vistas como “ruins” ou de “mau gosto”.
Outra das teses centrais do livro é que quando o rádio brasileiro, nos seus primeiros tempos, precisa de uma linguagem rápida, concisa, feita daquelas palavras “portáteis à memória” na expressão de Bastos Tigre (humorista do começo do século XX, criador de lemas famosos, como “Se é Bayer é bom”) – ele vai encontrá-la na produção humorística. Agora, não se pense que é uma linguagem “culta”. Pelo contrário, é uma linguagem que surge da mistura das duas culturas: uma mais culta e a outra mais “popular”. É por isto que chamei a linguagem humorística brasileira quase da mesma forma que Mário de Andrade  chamou a autêntica música brasileira: o “ruim gostoso”.

Mas, afinal, por que tanta produção humorística? O livro sugere a existência, no Brasil, de uma espécie de cultura tácita, silenciosa – embora hipócrita – de ampla aceitação daquela música ritmada e daquele humorismo impertinente, talvez porque tais elementos já faziam parte da vida cotidiana de cada um. Ninguém admitia publicamente gostar do samba ritmado, herdado do “maxixe desavergonhado”, das piadas de caipiras ou das anedotas obscenas. Mas dificilmente resistia à sedução de tamborilar com os dedos, chacoalhar os pés ou ouvir e difundir, ao pé do ouvido, “a última piada”. Parece que a sociedade delegava aos humoristas, os “palhaços por um dia” ou “engraçados arrependidos”, a representação, em relances rápidos e efêmeros, desses desejos sutilmente recalcados ou encobertos. Tudo indica que, pelo humor, o brasileiro apropriava-se, por momentos, do espaço público, que lhe era negado pelo poder republicano nas suas mais variadas e perversas formas de exclusão social.

IHU On-Line – Uma inovação do humor em nossos dias é o programa jornalístico CQC. Como compreender que se pode informar através do humor?

Elias Thomé Saliba – Aquilo não é um programa jornalístico, é um programa humorístico. Agora, se o público entende que é um programa jornalístico – isto diz muito sobre o público que o assiste. Ou seja, continua sendo um público que só consegue lidar com a informação no tom da galhofa – estamos, de novo, em pleno país da piada pronta.

IHU On-Line – Há um humor tipicamente brasileiro, uma linguagem dessa natureza que nos diferencia dos demais países?

Elias Thomé Saliba – Eu acho que é difícil definir uma vocação típica do humor, não só brasileiro, mas de qualquer outra cultura, porque o humor é uma modalidade de experiência tão diversa, tão multifacetada, que é difícil teorizar sobre ele. Mas eu arrisco: eu acho que o humor brasileiro típico é paródico. Mas não paródia no sentido original, de “canto paralelo”. A vida do brasileiro é tão cheia de incongruências que, para fazer humor, ele faz uma paródia da vida real. Eu me lembro aqui, por exemplo, da frase do Paulo Emílio Salles Gomes  analisando o Mazzaropi  e a chanchada: ele dizia que nossa capacidade paródica resulta “daquela nossa incapacidade criativa de copiar...” Eu acho que isso tem a ver com a nossa história brasileira, porque, se a realidade já é engraçada, basta que façamos uma paródia do real. Eu vou citar um exemplo de que eu gosto muito e que está narrado em detalhes no meu livro: em 1912, quando se abriu a Avenida Central no Rio de Janeiro, durante a grande reforma urbana que a cidade sofreu, o único prédio que ruiu por erro de cálculo foi o do Clube de Engenharia. Ao viajante alemão, que contaram a mesma história, ele perguntou: “Mas isto é uma piada?” Resposta: “Não é uma piada. É um fato. Aconteceu realmente”. E aí vem o dilema: se a realidade já é engraçada, não há contraste para produzir o senso de humor...

Experiência humana diversificada

O humor, em geral, é um dos mais elevados instrumentos de comunicação. Rir aproxima as pessoas, provoca suas emoções e mobilizam suas mentes – além, é claro, de aliviar a tensão. Isto é universal. Basta ver alguns ditados folclóricos que são comuns a todos os povos, tanto ocidentais como orientais, e que existem, com pequenas alterações, em todas as línguas – como “O mais perdido dos dias foi o dia em que não se riu”, ou “Quem não sabe sorrir, não deve abrir uma loja.”

Como produção cultural, o humor exerceu um papel importante em várias sociedades e em várias épocas. Tanto na Antiguidade quanto no período medieval, o humor era mais difuso por não existir ainda uma separação entre as esferas pública e privada. A comédia originalmente era um evento no qual todos participavam e todos riam em conjunto. Quando a modernidade cria propriamente uma esfera pública – o que ocorre, na história ocidental, entre os séculos XVII e XVIII – é que o humor se fortalece como uma das mais disseminadas e universais formas de comunicação, já que todos os comportamentos humanos ganham repercussão coletiva (pública), suscitando reações emocionais (que incluem, é bom que se digam, tanto o choro quanto o riso).

Mas o riso é uma experiência humana tão diversificada que não necessariamente ele resulta sempre do “bom humor”. Portanto, como ele é uma experiência extremamente rica e variada, ele se liga a muitos aspectos da vida humana. É impossível enumerar todos. Por exemplo, o humor seduz? Sim, primeiro porque ele tende a produzir intimidade e proximidade. Neste sentido, rir é como almoçar ou jantar juntos – em certos casos, favorece até a aproximação sexual.

Lembrar, portanto, que o humor – sobretudo o humor que nasceu com o século XX – possui uma fortíssima vocação para a ambiguidade: se uma piada agrada e gratifica alguns, ela acaba por ferir outros. Não há remédio. Se fui eu quem escorreguei na casca de banana, eu não vou rir... Se o escorregão for de alguém que tem poder (político, pessoal ou qualquer outro), ele não só não vai rir, como vai proibir os outros de rirem.

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