Edição 366 | 20 Junho 2011

A supressão da Companhia de Jesus: episódio-chave de sua ação nas fronteiras da fé

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Moisés Sbardelotto



IHU On-Line – Como a expulsão dos jesuítas, o antijesuitismo e o anticlericalismo de Portugal, em 1759, na pessoa do Marquês de Pombal , influenciaram na decisão espanhola?

Pedro Miguel Lamet – Portugal foi o primeiro país europeu a expulsar os jesuítas. O ambicioso Pombal, em minha opinião, é a mais cruel dos déspotas da época. Seus interesses eram sobretudo econômicos, de centralização do poder. Depois de reconstruir Lisboa habilmente após o terremoto, esse aspirante à nobreza quis controlar as explorações lusitanas na América, depois da partilha das reduções. Aproveitou a tentativa de atentado, quando regressava de se encontrar com sua amante, contra José I, outro monarca medroso que vivia em uma luxuosa tenda de campanha em Ajuda, temendo uma repetição do terremoto, e ao qual atribuiu aos jesuítas. Ele executou o padre Malagrida  e manteve encarcerados em lôbregas masmorras muitos jesuítas, principalmente missionários alemães trazidos da América. Foi tão duro, servindo-se de seus parentes, um no Brasil e outro como embaixador em Roma – o “jumento português”, chamava-lhe o agente espanhol Azara –, que o Vaticano rompeu relações com Portugal. Era mais drástico do que o rei espanhol. A Espanha estreitou relações com Pombal quando da expulsão, mas se atrasou em dez anos com relação à expulsão portuguesa, entre outras razões porque a rainha mãe de Carlos III, Dona Isabel Farnésio , era muito amiga dos jesuítas. Os padres portugueses sofreram maiores necessidades do que os espanhóis, já que estes – seguramente porque o monarca espanhol queria salvar sua “pia consciência” – foram expulsos com um modesto soldo vitalício como súditos espanhóis, que se converteu também em uma forma de controle dos expulsos por parte dos comissários do rei. Outro caso também diferente é o da França, onde a figura poderosa é o ministro Choisseul. Ali, propriamente, foi supressão mais do que expulsão, embora, no final, muitos tenham cruzado a fronteira para se refugiar na Espanha. Na França, mistura-se com o fenômeno jansenista  e com a funesta atuação econômica de um equivocado administrador jesuíta na Martinica. Em cada país, a tragédia tem acentos diferentes, mas a mais cruel foi, sem dúvida, a provocada por Pombal.

IHU On-Line – Ao serem expulsos de Portugal, por exemplo, os jesuítas foram tratados como bandidos. Como os jesuítas, especialmente o então superior geral, Pe. Lorenzo Ricci , foram tratados por parte da Igreja e do Estado após a supressão?

Pedro Miguel Lamet – A detenção nos colégios e residências espanholas no dia 2 de abril de 1778, mediante um cerco simultâneo em toda a Espanha e à ponta de baioneta, foi vergonhosa. Mantida em segredo absoluto e efetuada pelas Forças Armadas, seguramente por medo de uma rebelião dos “poderosos jesuítas”, ela não encontrou a menor resistência, nem o menor episódio de violência. Humildemente e de carroça, com seu breviário e pouco mais, foram transferidos para os portos onde havia sido preparada toda uma complicada logística de barcos de guerra e de outras embarcações que foi preciso alugar de países como Holanda e Inglaterra. A viagem, nos barcos a vela da época – apesar de terem sido previstos a intendência, os salários dos oficiais e a adaptação dos buques – foi muito penosa. Amontoados em depósitos, comidos por insetos, mareados porque a maioria nunca havia navegado e com pouca comida, tempestades e a terrível prolongação da viagem por causa da rejeição do papa, ela foi recolhida pelos diaristas jesuítas, sobretudo pelo Pe. Manuel Luengo , que chegou a escrever um diário de 33 tomos, obra monumental que se conserva praticamente completa, e agora a professora [Inmaculada] Fernández Arrillaga está publicando. Literalmente jogados nas praias da Córsega, conseguiram dar um jeito para sobreviver e inclusive reconstruir a vida comunitária e até mesmo seus escolasticados no desterro. Os que mais sofreram foram os noviços, pressionados até o último momento, sob ameaça de pecado mortal, a abandonar a Companhia, sem pensão e à mercê da ajuda dos padres. É exemplar que, em tais circunstâncias, só 20% dos jesuítas expulsos abandonaram a Companhia. Alguns, em meio a essas tragédias, conseguiram alcançar a santidade, como José Pignatelli. Muitos outros, mesmo depois de extinta a ordem, contribuíram com seus estudos, livros e investigações para o florescimento da cultura na Itália e em outras partes do mundo, como o Pe. Miguel Batllori  estudou sabiamente. Em minha opinião, o geral padre Ricci foi superado pelos acontecimentos. Culto, tímido, de família aristocrata, era uma boa pessoa, mas se deixou levar, não foi valente. Ajudou como pôde os portugueses, muito pouco aos espanhóis, e acabou sendo injustamente encarcerado no Castel Sant’Angelo, em Roma, onde morreu de frio e de solidão, sem ser realmente acusado nem julgado. Só foi questionado sobre o único tema que interessava a todos: onde estava o famoso “ouro dos jesuítas”, que nunca foi encontrado, apesar de terem sido escavados porões, pomares e jardins. Isto sim, as obras de arte de suas igrejas e os livros de suas esplêndidas bibliotecas foram mal vendidos e dilapidados. Na Espanha, seus colégios acabaram sendo, em sua maioria, seminários, e suas igrejas se converteram em paróquias.

IHU On-Line – Que sintonia há entre as questões históricas da época – como o iluminismo, o Tratado de Madri ou as reduções jesuítas na América – e a decisão do rei Carlos III?

Pedro Miguel Lamet – Como se sabe, 15 anos antes dos episódios que meu romance relata, o Tratado de Madri foi um documento assinado por Fernando VI  da Espanha e por João V  de Portugal em 13 de janeiro de 1750, para definir os limites entre suas respectivas colônias na América do Sul. Esse tratado faz parte da sucessão de tratados de limites firmados entre Espanha e Portugal desde o século XV, quando foi assinado o de Alcáçovas. Um tratado baseado no princípio de direito romano Ut possidetis, ita possideatis (quem possui de fato deve possuir de direito), ampliou os domínios de Portugal, deixando os limites do Brasil praticamente em seu estado atual. Como consequência da demarcação das novas fronteiras, a região das Missões Orientais havia de passar para as mãos portuguesas. Essa resolução, no entanto, tinha maior importância do que podia parecer, já que, nos territórios de Portugal, se permitia a escravização dos indígenas (naquela região eram guaranis), enquanto que, nos territórios espanhóis, todos os índios eram automaticamente súditos de Sua Majestade e, portanto, gozavam de sua proteção, razão pela qual não podiam ser escravizados. Essa diferença de status legal da população indígena provocou a resistência a se entregar aos portugueses, resistência que acabou estourando a Guerra Guaranítica, que o famoso filme A Missão evoca. Portanto, as reduções, que haviam sido modelos de sociedades autogestionadas, uma espécie de “socialismo cristão”, embora não carente de um certo paternalismo, tiveram muita importância nas decisões de Pombal e de Carlos III, pois havia interesses econômicos no meio e o fantasma de que os jesuítas estavam por trás da Guerra Guaranítica. Sobre o Despotismo Iluminado que eu mencionei, a importância do regalismo e do galicanismo: trata-se de uma contradição em termos, já que um despotismo nunca pode ser iluminado, e um autêntico iluminismo não pode ser déspota. Seus defensores, no entanto, argumentam que, assim, o Estado se libertou da tutela da Igreja, que está na origem da Revolução Francesa. Mas, na realidade, esta última se rebelou, depois, precisamente contra os déspotas. É preciso acrescentar a importância dos enciclopedistas no chamado Século das Luzes. Mas não deixa de ser uma contradição que os “iluminados” destruíram a instituição eclesiástica mais iluminista da época. Em seus colégios, com o método da Ratio Studiorum , haviam educado as elites do continente e das novas terras além-mar. Mantinham observatórios astronômicos. Tinham inclusive chegado às massas, graças às missões populares e estrangeiras. Haviam se vestido de mandarins  para entrar nas cortes do Oriente, dando lugar à famosa disputa dos ritos chineses. Na Alemanha, o clero secular lhes havia acusado de monopolizar as cátedras universitárias, enquanto que, em Roma, os cardeais lhes imputavam publicamente o fato de se toparem com eles em quase todos os escritórios da Cúria. Depois da expulsão, Carlos III teve que trazer matemáticos da Itália, porque os únicos matemáticos que havia na Espanha eram jesuítas.

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