Edição 366 | 20 Junho 2011

A fraternidade cristã diante do abismo da desigualdade social

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Graziela Wolfart



IHU On-Line - Como conciliar, no mesmo discurso, os preceitos da Igreja e a valorização do consumo? E aqui lembramos da Campanha da Fraternidade 2010 (não se pode servir a Deus e ao dinheiro...).

Brenda Carranza - É bom diferenciar os discursos institucionais, entendidos como o pronunciamento oficial da Igreja hierárquica no seu conjunto de documentação doutrinal e orientação pastoral. Dificilmente será encontrada uma valorização ao consumo ou consumismo. Muito pelo contrário, a insistente condenação do individualismo, relativismo e hedonismo do atual Papa Bento XVI é uma prova da preocupação da Igreja por não sucumbir aos apelos do consumo. Porém, isso não impede que nas práticas e discursos de um certo catolicismo carismático sucumba à lógica do marketing religioso, seja por afã de evangelizar com os mais avançados meios tecnológicos, seja em pró de uma modernização eclesial. Do outro lado da balança, a Campanha Ecumênica da Fraternidade de 2010 , com o tema Economia e Vida, enfatizou aspectos muito interessantes que colocam a Igreja Católica, junto a outras igrejas cristãs, numa trilha de educadoras da consciência crítica de seus fiéis e incentivadoras do compromisso social transformador e solidário. O próprio texto-base da Campanha sugere inúmeras ações coletivas que articulem as forças sociais na luta pelos direitos sociais, ambientais, econômicos, a tempo que fortaleçam a construção da cidadania no país.
 
IHU On-Line - Como analisa a questão de que o sucesso econômico seria um sinal de Deus?

Brenda Carranza - Um olhar retrospectivo da teologia protestante, analisada por Max Weber  na sua obra A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004), constatou no início da modernidade que, a exortação de glorificar Deus por meio das obras concretizou-se no trabalho disciplinado e na vida austera, desaguando na tão necessária poupança para a acumulação primitiva do capital. Essa teologia que impulsionou os primórdios das igrejas históricas e do capitalismo encontra-se longe da teologia da prosperidade, propulsionadora do atual neopentecostalismo. O cerne dessa visão teológica encontra-se numa fé defensora da crença de que o fiel adquiriu o direito neste mundo à saúde e vida material perfeita e próspera, livre do sofrimento e das artimanhas do Diabo. Isso é possível porque Deus concedeu tais bênçãos a quem acredita; cabe o cristão tomar posse delas. Ancorados na convicção de que o direito do crente é garantido na fé sobrenatural da retribuição divina, os pregadores disseminam a ideia de que cabe ao fiel “dar para receber”. Alimenta-se a lógica na qual a fé possuidora permite estabelecer uma relação contratual entre Deus e o crente. Deus já cumpriu sua promessa, agora o fiel retribui com dinheiro para receber a multiplicação de seus bens materiais. Após essa abundância vem a ampliação da saúde financeira, o que será lido como expressão de bênçãos e de libertação da pobreza, causada pelo demônio. Mas tudo isso só acontece se o fiel está ligado às obras de Deus que são promovidas nos templos. Assiste-se, então, a fusões interessantes nas quais o templo é sinônimo de máquinas arrecadadoras de dinheiro e os discursos que nele se pregam ativam simbolicamente o imaginário de prosperidade pessoal que os fiéis aspiram perante os obstáculos reais de superar as carências materiais da vida cotidiana. Sem dúvida, as narrativas neopentecostais que prometem o sucesso, como sinais da presença de Deus na vida do fiel, na verdade camuflam perigosas ligações éticas entre ascensão social e experiência religiosa, beneficiando algumas das lideranças, onde muitas delas têm pendência com a justiça.

IHU On-Line - Como o discurso católico se instala nesse contexto?

Brenda Carranza - Em princípio, o discurso cristão, não só o católico, deveria se instalar na contramão da lógica perversa assinalada acima, já que essa mais parece um novo tipo de simonia pós-moderna, para utilizar uma expressão simpática, do que uma experiência religiosa que agregue à vida social a promoção de valores éticos, alicerçados em relações justas, simétricas e fraternas.

IHU On-Line - Em que sentido essa questão se aplica à proposta da Igreja de “sair do comodismo”?

Brenda Carranza - Se comodismo entende-se como uma instituição mais preocupada consigo do que com o seu objeto privilegiado – os mais pobres e excluídos do mundo do trabalho e do consumo – e seu objetivo a evangelização – lutar pela concretização dos valores do Reino pregado por Jesus Cristo –, então a Igreja tem um grande incentivo pela frente. Pois num país que clama para que todas as instituições e organizações da sociedade civil somem esforços na luta por uma vida digna para todos, os crentes e não crentes, as energias religiosas devem canalizar seus suportes subjetivos para promover cidadãos com direitos e corresponsabilidades civis e ambientais. Tarefa que incide diretamente na melhora da estrutura social para além do crescimento econômico, o avanço tecnológico e a dinamização do mercado, ou seja, numa reestruturação dos serviços públicos, na superação da precarização do trabalho, o avanço da reforma agrária e muitos etcéteras estruturais. Dito de outra maneira: deflagrar as condições que garantam a melhora significativa de vida nas maiorias para que diminuam, de fato, as desigualdades sociais. No fim das contas, a fraternidade cristã não almeja eliminar os abismos produzidos por essa desigualdade instalada entre os filhos de um mesmo Pai?

Leia mais...

>> Brenda Carranza já concedeu outra entrevista à IHU On-Line:

* Uma novidade na estrutura de vida consagrada na Igreja. Publicada na edição número 307, de 08-09-2009.

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