Edição 364 | 06 Junho 2011

Os jovens indígenas e a inclusão digital

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Patricia Fachin e Márcia Junges



IHU On-Line - Que relação os jovens das comunidades indígenas mantêm com as novas tecnologias? Como se deu essa relação e como define o interesse deles pelas novas tecnologias?

José Francisco Sarmento - Um ponto que sempre me chamou a atenção, e é impossível não comparar com os jovens da cidade, foi o foco: a capacidade de se concentrar até atingir um objetivo. Posso dar como exemplo as oficinas de edição, em que o aprendizado ocorre de maneira mais rápida, desde a manutenção de equipamentos até o acesso às mídias sociais. É impressionante como essa interação se dá de maneira fluida. Acho que a curiosidade e concentração unidas resultaram neste processo rápido de aprendizagem, que contribui em muito nos processos educacionais dessas ferramentas digitais. Sempre nos surpreendemos com a velocidade desses jovens indígenas no controle e manipulação dessas ferramentas. Eu particularmente, insisto, falo de nossa experiência com os Kaiowá. Nunca vi essa relação se não pelo viés da fluidez.

IHU On-Line - O contato com a internet é uma realidade entre os jovens brasileiros.Como a relação internet/juventude se dá nas comunidades indígenas? Qual o sentido da tecnologia para essa juventude?

José Francisco Sarmento - Na verdade, não vejo diferença na relação. Como falei anteriormente, jovem é sempre jovem. O que me chama a atenção é o olhar e os fins. Parece-me que nas cidades essa relação se tornou mais recreativa, fútil mesmo. Hoje, o jovem acha que internet é rede social. Tenho percebido que, para os jovens indígenas, a web é uma janela para o mundo, não excluindo as redes sociais. Hoje, essa tecnologia tem um sentido que acho que perdemos. Acredito que nossa facilidade de acesso a essas ferramentas banalizou essa relação. Já o jovem indígena vê essa possibilidade de manipulação e domínio como uma ferramenta que possa incluí-lo em uma sociedade que não o vê. Podemos fazer uma reflexão sobre esse assunto quando pensamos na mídia de um modo geral, na qual o índio ainda é retratado como atrasado, arcaico, preguiçoso. E só é notícia quando sequestra agentes da Funai, ocorrem suicídios, brigas por retomada de terra (que a mídia trata como invasão) e, claro, no dia do índio. A internet possibilita a eles criar canais, onde eles são os protagonistas, são agentes. Eles podem colocar na rede e com um alcance grande o que eles realmente são, nem pior, nem melhor, apenas diferentes. Acho que esse processo de relação midiática autônoma pode levá-los a conquistas importantes em nossa sociedade. Podemos citar como exemplo os vídeos que estão sendo postados na internet, em canais criados por jovens indígenas.

IHU On-Line - Como vê a busca da população indígena brasileira pela inclusão digital?

José Francisco Sarmento - Não posso sinceramente responder pela população indígena brasileira. A percepção que tenho dentro da realidade no estado em que moro e alguns outros que conheço, é a de que existe realmente um grande desejo de se inserir nesse processo. Porém, falta um projeto sério estatal que possibilite este acesso. Este caminho não pode ficar nas mãos apenas de organismos não governamentais. Tem que ser um projeto de governo.

IHU On-Line - Quais são as características culturais dos jovens indígenas nos contextos urbanos?

José Francisco Sarmento - Minha resposta à sua pergunta parte muito do meu olhar de professor em uma instituição privada que tem um número considerável de alunos indígenas. Pois bem, quando falamos de manifestações culturais, representação cultural etc., temos que nos atentar para dois fatores importantes. Um importante nome nos estudos interculturais Milton Bennett, em seu artigo Intercultural Communication: A Current Perspective de 1993, caracterizou dois tipos de cultura: a cultura objetiva e a cultura subjetiva. Cultura objetiva, segundo este autor, consiste nas manifestações produzidas pela sociedade, como literatura, música, ciência, arte, língua, enquanto estrutura, entre outras. Por outro lado, a cultura subjetiva pode ser encontrada em manifestações abstratas, como valores, crenças e no uso da língua.

A linguagem é um fenômeno que diz ao mundo quem nós somos e a cultura é atravessada pela linguagem - e nós também. Esse jovem tem outra língua como primeira (que não é obviamente a nossa), estuda em uma escola indígena (que ainda busca uma identidade, um caminho próprio, mas que, com certeza, é diferente da nossa) e cresce em um ritmo e dinâmica diferente da cidade. Ele chega à universidade, em que os alunos estão acostumados com as novas tecnologias de educação, com o ritmo frenético urbano, com a competitividade, com a exclusão e que não sabem lidar com o diferente. Esse jovem, mesmo “travestido” de jovem urbano, apresenta de alguma forma, ou em algum momento, suas características culturais - objetiva ou subjetiva.

IHU On-Line - Como tradição e tecnologia se entrelaçam na cultura indígena?

José Francisco Sarmento - Eu e um ex-aluno indígena do curso de design, da etnia terena e que tem se aventurado no universo do cinema com belos resultados estéticos, Gilmar Galache, estamos à frente de um evento que teve a sua primeira versão no ano passado, chamado Fórum de Discussão Sobre Inclusão Digital nas Aldeias – Fida. Este encontro, que já está caminhando para a segunda edição, tem como objetivo proporcionar uma reflexão junto às populações indígenas, em especial aos atores que de alguma forma estão envolvidos com essas dinâmicas digitais nas aldeias (pessoas que já realizaram filmes e ou estão inseridas nas redes sociais e professores interessados neste processo de inclusão digital). Enfim, pessoas que possuem uma vivência e senso crítico a respeito deste tema nas mais diversas etnias. Reunimos-nos na aldeia Teykue no município de Caarapó, interior de Mato Grosso do Sul, e durante o encontro tivemos depoimentos surpreendentes de como os usos dessas tecnologias podem caminhar e contribuir para a “divulgação” entre os jovens dos vários processos tradicionais. A afirmação da oralidade como instrumento fundamental para o conhecimento de histórias relacionadas aos seus povos, pode receber uma contribuição dessas ferramentas, como, por exemplo, animação de mitos, registro fílmico de anciões contando suas histórias, registro de áudio de rezas para que as crianças possam ouvir em casa etc. Esses exemplos são muito importantes para fazermos uma desmitificação da assimilação dessas tecnologias na cultura indígena. É interessante perceber a preocupação com uso dessas ferramentas para fins educacionais e de registros históricos.

Ferramentas midiáticas
Ainda a respeito do Fida, ocorreu-me a lembrança de questões pontuais que foram discutidas, como a necessidade de projetos nesta área que atendam realmente às necessidades dos indígenas e que seja possível eles participarem efetivamente. Ou seja, projetos que levem em conta a falta de prática na formulação dos projetos, que é extremamente burocrática para se poder participar de editais nas áreas, ficando esses projetos apenas nas mãos de organizações não governamentais, que na sua grande maioria executam os projetos na área do audiovisual e não deixam equipamentos para as produções futuras, nem fazem um aprimoramento contínuo. Outra questão é o uso dessas tecnologias como ferramentas midiáticas que podem exercer um papel fundamental a estes povos que não tem voz na mídia, que é o de mostrar a realidade das aldeias, as injustiças cometidas por quem detém o poder e, claro, de dar visibilidade à sua cultura, criando assim um verdadeiro canal de informação das populações indígenas. Acredito que por meio dessas redes teremos, muito brevemente, uma possibilidade maior de ver expostos esses temas que permeiam a realidade dos povos indígenas no Brasil.

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