Edição 363 | 30 Mai 2011

A necessidade de compreender a história da linguagem

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Anelise Zanoni e Patricia Fachin

IHU On-Line - Dizem os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs para a Língua Portuguesa que seu ensino deve melhorar a competência dos usuários do idioma e expandir seus usos por parte das pessoas. Isso faz com que a linguagem popular deva ser inserida nos livros didáticos como variação a ser estudada?

Luiz Carlos Cagliari -


IHU On-Line - O senhor declarou recentemente que “a linguística moderna substituiu o antigo ensino da gramática normativa, não desprezando a norma culta, mas mostrando que as línguas evoluem e mudam com o tempo e geram diferentes normas ou variantes linguísticas”. O que isso significa em termos práticos em relação ao uso e escrita da língua portuguesa? Vai se admitir a pronúncia e a escrita de uma mesma palavra de formas diferentes?

Luiz Carlos Cagliari -
A resposta a essa questão já deve ter ficado clara nas explicações anteriores. Vamos pegar um exemplo: um texto do português medieval (arcaico), um texto de cada século, tirado de bons escritores e compará-los. O que aconteceu? Nossos escritores de hoje não escrevem com os escritores de séculos passados. Não podemos fazer o mesmo com gravações da língua (porque antigamente não havia gravadores de som, de vídeo), mas a julgar pela história, sabemos que a fala sofreu modificações no tempo e o que temos hoje são muitos pontos diferentes de chegada, vindos de “um mesmo ponto de partida”. Nem tudo que já foi considerado norma culta tem, hoje, o mesmo status. Não é porque os gramáticos de plantão, defensores da língua (quixotescamente, diga-se de passagem) querem segurar a língua como um monólito de museu, que o que, hoje, representa a norma culta permanecerá assim por toda a eternidade. O máximo que podemos ter é segmentar um tempo e um lugar da língua, descrevê-la em todos os seus aspectos e dizer para os livros de história da língua, como ela é ou foi nessas circunstâncias. Ninguém segura a evolução de uma língua, assim como ninguém segura a evolução (transformação) de uma sociedade. São fatos que estão fora do alcance dos indivíduos. Ao nascemos, mais do que nos apropriarmos de uma língua, é a língua que se apropria da gente, de acordo com nossa situação social, do nosso lugar no mundo, no nosso tempo.
A segunda parte da pergunta volta à questão didática. O que faz uma pessoa que aprendeu a falar o dialeto paulista e se muda para o Rio de Janeiro em definitivo, almejando arranjar emprego, se incluir na sociedade carioca? Aprende a falar como os cariocas, porque assim a vida lhe será mais fácil e agradável. Então, a escola vai ensinar os alunos a falar diferentes dialetos? Não, porque enquanto escola, não há essa necessidade, bastando chegar à variedade de prestígio do dialeto regional e à ortografia, oficialmente estabelecida. À medida que o aluno progride nos estudos, na escola, ele passa a usar apenas o dialeto de prestígio, a norma culta oral e escrita. Isso não o impede de usar sua variedade, diferente da norma culta escolar, em seu ambiente familiar e entre amigos, como uma forma de respeito pelas pessoas, para não ser o chato e o pedante intelectual do grupo. Isso não é tarefa da escola. A escola apenas explica esses fatos. A escola se esquece de coisas fundamentais, que estão na frente dos olhos, mas que não são percebidas. Por exemplo, hoje, ninguém lê Camões no dialeto de Camões, até porque não sabemos exatamente como ele falava. Quando lemos sozinhos, lemos no nosso dialeto. Eu leio no dialeto paulista, que é meu dialeto, não leio Jorge Amado  no dialeto baiano, nem Erico Veríssimo  no dialeto gaúcho. E me sinto muito feliz. Posso também ler esses autores, seguindo o modelo da norma culta falada no estado de São Paulo. Vou fazer assim, necessariamente, quando for ler em público. Portanto, os alunos acabam tendo dois modos bem diferentes de lidar com a pronúncia de sua língua: um, quando leem para si e outro, quando leem, por exemplo, como atividade escolar. A variação linguística está aí, aos olhos e aos ouvidos de todos...

A outra parte dessa questão tem a ver com a escrita. Certamente, a preocupação da pergunta revela um desconhecimento básico do que vem a ser a ortografia. Todos os sistemas de escrita do mundo só sobrevivem porque definem uma ortografia. Ao fazer isso, a ortografia define os valores fonéticos e semânticos. Para quem fala caza, incontremu, acharu, lâmpida, a letra A tem os sons de [a], [e], [u] e de [i]. Para quem fala rapais, caxa, a letra A tem o som de [ai] e as letras AI tem o som de [a]. Quem guia o valor das letras não é o princípio alfabético, segundo o qual uma letra representa um som e vice-versa, porque a ortografia mudou essa relação. Se a ortografia não fizesse isso, cada falante escreveria como fala e, na sociedade, uma palavra teria muitas formas de escrita. Para evitar isso, ou seja, para neutralizar a variação linguística da fala na escrita, a ortografia congelou a forma de escrita das palavras. Disso se conclui que a nossa escrita ortográfica não é fonética, não pretende ser. Como sistema de escrita, ela permite a leitura, deixando para o falante nativo a tarefa de interpretar os sons e os sentidos que as palavras têm e o significado geral e particular do enunciado. Escrever fora da ortografia é burrice e é desnecessário. Portanto, desde o começo, o professor vai escrever as palavras na forma ortográfica, porque ele sabe como se escreve ortograficamente. Os alunos, porque não sabem a ortografia, vão se arriscar, escrevendo segundo as hipóteses que formulam nas suas mentes de como aquilo que eles falam deve ser escrito. Se o aluno foi bem instruído nas questões de variação, saberá que, partindo de sua fala, terá algumas dicas de como se escrevem as palavras, mas não a forma ortográfica de modo automático. Se ele fala lâmpida, irá escrever lâmpada. Quando ele vir a palavra lâmpada escrita, saberá que a professora ensina a dizer lâmpada, mas no seu dialeto se diz lâmpida. Quando vir escrito dia irá ler djia com o mesmo raciocínio. Nem na palavra lâmpada, nem na palavra dia, nem em nenhuma outra palavra escrita ortograficamente está registrada diretamente a pronúncia. Em alguns casos, a pronúncia está mais próxima, em outros casos, mais distante.


IHU On-Line - Com a adesão das novas tecnologias, os estudantes costumam abreviar palavras e simplificar a escrita. O senhor acredita que a língua portuguesa poderá ser reestruturada em função do uso da internet, por exemplo?

Luiz Carlos Cagliari -
Alguns usuários da internet não escrevem as palavras seguindo rigidamente a ortografia da língua. Fazemos isso, não raramente, quando escrevemos notas para nós mesmos, sem a intenção de mostrar a outras pessoas. A internet tornou-se o lugar particular compartilhado pelo público, um lugar público de marcar individualidades, diferenças, estilos pessoais, idiossincrasias com relação aos costumes, em geral, incluindo a linguagem. O que se constata nessas escritas é o desejo de ser diferente, mas, no momento em que muitos escrevem “do mesmo jeito”, cria-se uma ortografia e o resultado é exatamente igual ao de qualquer ortografia. Há regras e limites: pode-se escrever “risadas” com rsrsrs, mas se alguém inventasse de escrever essa ideia com apapap, ninguém iria conseguir ler “risadas”. No primeiro caso, a nova escrita remete à velha forma “risadas”, mas o segundo caso é incompreensível. Então, temos uma outra coisa: a escrita da internet não pode fugir muito da ortografia tradicional da língua (ou das línguas). Na prática, funciona como uma “redução” ou “abreviatura”. Lemos rsrsrs como “risadas” do mesmo modo que lemos Av. como “Avenida”, etc.

Muito raramente, a forma escrita influencia a fala, mas a fala está sempre influenciando a escrita e esta precisa se fechar para não introduzir variação na forma escrita das palavras, o que em excesso seria catastrófico no uso social da escrita. Portanto, a escrita da internet dificilmente irá influenciar a linguagem oral. O uso da “ortografia da internet” é peculiar desse meio e, fora dele, seria desnecessário e estranho.
Por outro lado, a internet veio mostrar muitos problemas de variação linguística, não apenas em termos fonéticos e fonológicos, mas também morfológicos, sintáticos, semânticos e discursivos. A questão da variação escrita é, sem dúvida, a menor de todas essas. Através do uso da linguagem, de como se expressam, vemos na internet como as pessoas pensam, e isso é mais perigoso do que abrir a boca e falar ou fazer um redação padronizada. É um prato feito para a semântica cognitiva e para a psicologia, em geral, ficando apenas na questão linguística e comportamental desse fato.


IHU On-Line - Como o PNLD tem abordado/considerado a contribuição da linguística brasileira ao longo das últimas décadas?

Luiz Carlos Cagliari -
Como esclareci de início, não conheço bem o PNLD para responder a essa questão de modo como se esperaria de uma pessoa especialista no assunto. Vou apenas fazer um comentário. A educação no Brasil, como costumo dizer, é patética e é assim por vários motivos. Vou apenas dizer um deles: a partir da política equivocada de um ministro da educação que era economista e que somente sabia ver qualquer coisa em termos de estatística, o que era ruim ficou pior, o que era estranho ficou patético, na educação. Nunca, neste país, se estudou tanto em função apenas de provas, notas, avaliações e coisas semelhantes. Tudo gira em torno de avaliações federais, estaduais, municipais, de concursos, de vestibular, etc. (Não vou mencionar todos os nomes oficiais que temos.) Esse objetivo se justifica não pelo caráter científico que deveria ser o objetivo primeiro da educação, mas para permitir fazer estatísticas. Avaliações são sempre necessárias, mas as estatísticas nem sempre revelam toda a verdade e podem até mascarar e trazer conclusões equivocadas. No caso da avaliação da educação no Brasil, as estatísticas tornaram a avaliação equivocada e a educação patética. Bastar perguntar a um professor como anda sua classe, fulano ou sicrano que são seus alunos, e teremos uma resposta muito mais próxima da realidade, muito mais saudável, mais honesta, e verdadeira. Isso, porém, não dá estatística.

A supervalorização das provas, das notas, dos testes, enfim, de tudo o que é feito com o objetivo de gerar estatística ou classificação de seleção, tem levado os autores de livros didáticos e de projetos educacionais (livros didáticos mais abrangentes através de apostilas e de livros) a se orientarem para essa finalidade. Então, quando pego o material de projetos curriculares, de ensino e de aprendizagem, de orientação para o professor, o que encontro são conteúdos selecionados para esse fim e tratados de forma que o aluno aprenda a fazer testes e a passar nessas avaliações. A educação chegou ao ponto tão patético que um grupo de grandes recursos financeiros não se conformou de ter pegado o segundo melhor lugar no Enem e resolveu treinar um grupo selecionado de alunos para que eles consigam o primeiro lugar no Enem. E publicou isso em folha inteira de um grande jornal. Mais patético do que isto, impossível.

Com essa política e com esses objetivos, noto que muita informação importante que deveria aparecer nos currículos das escolas, em todas as sérias, ficou de fora, porque não pertence àquele “conjunto de pontos de caem em provas”. Por outro lado, como as perguntas oriundas desse conjunto são sempre as mesmas, depois de alguns anos, as perguntas se repetem em sua grande maioria, às vezes, disfarçadas na redação. Muitos autores já perceberam isso e transformaram o currículo ideal de uma disciplina em um rol de questões, tratadas de modo a treinar o aluno na resposta. Isso irá garantir a eles um resultado no mínimo satisfatório nessas avaliações oficiais. No melhor dos mundos, um professor mais responsável ensinará tais conteúdos, como assunto sério, como forma de educação e de erudição, eventualmente, com alguma informação complementar.
Retornando à pergunta: é ridículo o conteúdo de linguística que aparece nos livros didáticos, nos projetos de grandes e de pequenas empresas educacionais, nos documentos oficiais. Voltando à situação patética da educação, só mais um comentário, porque a realidade é por demais conhecida: um professor alfabetizador, que tem de trabalhar a todo instante com muitos problemas linguísticos, não é formado em cursos de Letras, com programas linguísticos, mas em faculdades de educação, onde raramente recebem uma formação linguística minimamente decente. Vocês, inconformados com a tradicional decepção no processo de alfabetização do país, estão reclamando de quê? Ser professor no Brasil não é nada fácil e ser professor alfabetizador é um milagre.

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