Edição 360 | 09 Mai 2011

Mater et Magistra: uma síntese entre comunismo, socialismo e capitalismo

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Moisés Sbardelotto

A encíclica de João XXIII, “sem fazer condenações, sem entrar em polêmicas, propõe uma síntese entre comunismo e capitalismo, uma alternativa entre os dois modelos, não excluindo um e outro, mas buscando o melhor, o mais permanente”, explica o advogado mineiro Patrus Ananias

“A Mater et Magistra é uma encíclica que inova em relação aos documentos anteriores da Igreja pela dimensão ecumênica. É uma encíclica afirmativa, propositiva, anunciadora, mas sem o ranço das condenações”. Para Patrus Ananias, advogado mineiro e ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo Lula, uma das grandes “surpresas” da encíclica do Papa João XXIII é o uso do termo socialização, palavra que aponta para a perspectiva de uma sociedade em que a dimensão comunitária, societária, tem um peso forte na organização social.

Esta entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, também é uma mistura de retrospectiva política e testemunho cristão de Ananias, especialmente de sua relação com a Igreja a partir da figura marcante de João XXIII desde a sua infância. “João XXIII, para mim, é uma figura de referência, é ‘santo da minha cabeceira’”, reconhece o político.

Patrus Ananias de Sousa é advogado, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais. É funcionário público concursado da Assembleia Legislativa de Minas Gerais desde 1982, onde atualmente atua como professor da Escola do Legislativo. É também mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e membro da Academia Mineira de Letras desde 1996. Participou dos movimentos políticos e sociais dos anos 1970 que resultaram na fundação do Partido dos Trabalhadores - PT. Professor licenciado da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, onde ingressou em 1979, presidiu o Instituto Jacques Maritain. Foi também vereador e prefeito de Belo Horizonte e deputado federal pelo PT de Minas Gerais. De 2004 a 2010, foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, onde promoveu a ampliação e institucionalização da rede de proteção e promoção social brasileira.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – No aniversário de 50 anos da encíclica Mater et Magistra de João XXIII, que avaliação o senhor faz da importância desse documento?

Patrus Ananias –
Eu considero a encíclica Mater et Magistra como um documento histórico. Primeiro, ela está ligada a uma personalidade excepcional, que foi o Papa João XXIII. Além do que deixou em documentos, especialmente a Mater et Magistra e a Pacem in Terris,  João XXIII deixou também o legado dele, pessoal. Nesse sentido, seguindo o exemplo de Jesus, ele uniu muito bem a mensagem com a vida, com o testemunho existencial da bondade, do acolhimento, do compromisso para com os pobres, da atenção às pessoas e da dimensão ecumênica.

A Mater et Magistra, além de atualizar e de trazer para o coração do século XX os temas levantados pela Rerum Novarum, consolidando e ampliando aquelas questões, é uma encíclica que inova também em relação aos documentos anteriores da Igreja pela dimensão ecumênica. Os documentos anteriores da Igreja – a própria Rerum Novarum, a Quadragesimo Anno,  de Pio XI  – refletem também os conflitos da época em um caráter de condenação, especialmente ao comunismo e também ao socialismo – que nesses documentos anteriores eram confundidos – e também uma condenação, ainda que mais tímida, ao chamado capitalismo liberal, ou liberalismo econômico. O primeiro aspecto muito bonito da Mater et Magistra é esta dimensão: ela é uma encíclica afirmativa, propositiva, anunciadora, mas sem o ranço das condenações. Claro que ela estabelece linhas divisórias, marca territórios em torno de valores, de princípios, de convicções, mas em uma linha absolutamente ecumênica e dialogante.


Socialização

Um outro aspecto é que ela avança muito, por exemplo quando o papa usou uma expressão que, na época, causou muita surpresa. Algumas traduções, inclusive, tentaram desaparecer com o termo, que é a palavra socialização. Claro que não é uma palavra que se confunde com o socialismo, mas é uma palavra que aponta para a perspectiva de uma sociedade em que a dimensão comunitária, societária, tem um peso forte na organização social. Quer dizer, o papa valoriza muito as organizações existentes na sociedade e reforça a ideia de que ninguém existe sozinho. É uma superação muito elegante que ele faz com relação ao individualismo, a ideia de que nós somos seres sociais. Então, João XXIII atualiza esses ensinamentos reforçando a dimensão comunitária, dando uma nova dimensão ao bem comum, ou seja, das condições que favorecem o melhor desenvolvimento da pessoa e da comunidade.

Nós temos aqui em Minas Gerais, já falecido, mas que continua vivo pela sua obra, um extraordinário filósofo jesuíta, que foi o padre Henrique de Lima Vaz.  Ele escreveu um texto admirável sobre as encíclicas de João XXIII, intitulado Pessoa e sociedade: O ensinamento de João XXIII.  Nessa encíclica, há, então, a busca desse equilíbrio que, no campo filosófico, nós chamamos de personalismo comunitário. Ou seja, como preservar a dignidade humana, os direitos individuais, como respeitar a pessoa humana no seu mistério, no mistério de cada um, na sua individualidade, como respeitar os diferentes e as diferenças. Mas, ao mesmo tempo, como também integrar essa dimensão pessoal na dimensão comunitária, como promover também os direitos sociais, econômicos e culturais, os direitos dos pobres. A questão da socialização foi uma janela nova que se abriu na tradição do ensino social da Igreja. Assim como a ênfase muito importante que o papa dá à questão da agricultura familiar, ou seja, a perspectiva da democratização da terra, da própria democratização da propriedade.

Então, nesse sentido, ele afirma, avançando, um princípio muito caro à tradição cristã que é o princípio da função social da propriedade. Uma encíclica mais recente, depois, de João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis,  incorpora uma outra dimensão muito importante. Ele fala da função social da propriedade e do lucro. Então a encíclica também avança nesse sentido de restringir os espaços do capitalismo, especialmente do que nós chamamos de capitalismo selvagem, sem limites. Então, o direito de propriedade é reconhecido, dentro da tradição que remonta aos Padres da Igreja, lembrando que inicialmente a propriedade foi destinada a todos, aquela ideia de que o proprietário é muito mais um gestor em nome do bem comum, e que o direito de propriedade, que é legítimo, historicamente construído etc., tem que se adequar rigorosamente aos princípios superiores do direito à vida, do bem comum, do interesse público, do projeto nacional e da justiça social.


IHU On-Line – Que questões centrais daquele período histórico mundial são abordadas nesse documento?

Patrus Ananias –
Primeiro, é importante lembrar que nós vivíamos naquele período o contexto da Guerra Fria. Esse contexto foi mais tratado, na questão da paz, na encíclica Pacem in Terris. Aí já está muito presente a atenção do papa na questão do desarmamento, não só no sentido direto da palavra, mas também no sentido do desarmamento dos espíritos. A Mater et Magistra, sem fazer condenações, sem entrar em polêmicas, propõe uma síntese entre o comunismo e o capitalismo, ou seja, uma alternativa entre os dois modelos, não excluindo um e outro, mas buscando o melhor, o mais permanente.
 Além disso, no contexto da Guerra Fria, havia também um quadro de grandes injustiças. Além das injustiças e desigualdades existentes no interior dos países, especialmente nos países que naquele tempo eram chamados de subdesenvolvidos ou países do Terceiro Mundo, entre os quais se incluía o nosso país, havia também, como há ainda hoje, mesmo que em níveis diferentes, uma brutal injustiça nas relações internacionais. E esse tema foi mais bem desenvolvido na Pacem in Terris e na Populorum Progressio, de Paulo VI, mas é um tema que já está presente. João XXIII já o está anunciando, na Mater et Magistra, por conta das injustiças nas relações internacionais: os países pobres vendendo matéria-prima barata e comprando depois produtos caros e já industrializados.

É uma encíclica que está também no momento em que se convoca o Concílio Ecumênico Vaticano II. Portanto, também já imbuída do espírito do compromisso com os pobres do que se chamou depois de “opção preferencial pelos pobres”, do compromisso profundo com a inclusão e a justiça social e também do sentimento de ecumenismo. Ou seja, a busca de espaços em que as pessoas de boa vontade – católicos, cristãos não católicos, pessoas de outras tradições religiosas, culturais, e até mesmo pessoas não religiosas, que não professam nenhuma religião, mas que têm um compromisso com a vida, com os pobres, com os valores éticos – possam se encontrar em torno de projetos compartilhados, respeitando, é claro, a especificidade de cada pessoa.

E, na questão ideológica do capitalismo e do comunismo, ela diz exatamente isto: o capitalismo exacerbou o indivíduo através do individualismo; o comunismo exacerbou a dimensão comunitária, o comunitarismo autoritário, que levou ao coletivismo, absolutamente intolerante com os diferentes. Daí a importância dessa compreensão do personalismo comunitário, da socialização, mas de baixo para cima, envolvendo os organismos intermediários da sociedade civil, desde a família, passando também pelas associações de classe, sindicatos, organizações que nós chamamos hoje de não governamentais ou movimentos populares.


Direito a ter direitos

Ela responde muito bem a um momento histórico: o momento em que os direitos dos trabalhadores nos países mais desenvolvidos, o chamado Primeiro Mundo, já estavam colocados. Mas é importante lembrar também que, nos países que nós chamamos hoje de países em vias de desenvolvimento – que naquele tempo eram chamados mais diretamente de países subdesenvolvidos –, os direitos trabalhistas ainda eram muito restritos.

É bom lembrar, por exemplo, que, em 1961 – daí a atenção especial do papa, que conhecia bem essas questões, por ser um papa camponês –, no Brasil, não havia direitos trabalhistas para os trabalhadores rurais. Não tinham férias, nem salário mínimo, nem jornada máxima de trabalho, nem repouso semanal remunerado, nenhuma legislação previdenciária. Em caso de doença, de morte, o trabalhador rural e sua família ficavam totalmente dependentes da filantropia, da boa vontade de pessoas, da caridade pública, não de direitos. Nessa época, eu era criança no interior de Minas, eu tinha nove anos de idade – eu sou filho de fazendeiro. E essa realidade perdurou praticamente por toda a década de 1960. O Estatuto do Trabalhador Rural foi votado, se não me falha a memória, em fins de 1963; logo depois veio o golpe, uma retração no campo dos direitos sociais, e só a partir da segunda metade dos anos 1960 é que, muito timidamente, os direitos trabalhistas começam a chegar ao campo.

Então, é importante lembrar isso para podermos entender também o carinho e a atenção que o papa deu, por exemplo, à questão da função social da propriedade, na perspectiva já da reforma agrária e de políticas rigorosas de apoio aos pequenos produtores que nós chamamos hoje de agricultores familiares.


Certamente, a encíclica teve um impacto muito grande. Foi exatamente nesse período que começou no Brasil – é importante lembrar –, no início da década de 1960, o processo de sindicalização dos trabalhadores rurais. Ao lado das ligas camponesas, que surgiram um pouco antes, o processo de sindicalização, portanto de luta efetiva pelos direitos dos trabalhadores rurais, começa nesse período. E é o momento também em que a Igreja começa a afirmar o seu compromisso com o princípio da função social da propriedade, especificamente no Brasil com a reforma agrária e depois, é claro, integrando também a questão da reforma urbana, na medida em que o país começa a viver um grande processo de urbanização.

Foi um pouco antes da encíclica que foi lançada a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene, no governo do presidente Juscelino Kubitschek, atendendo a uma manifestação profética e anunciadora de personalidades como D. Helder Câmara.  Dom Helder, na época, era bispo auxiliar do Rio de Janeiro, mas ele conhecia profundamente a realidade do Nordeste, de onde ele vinha e para onde voltou depois. E ele, em nome de lideranças e militantes cristãos católicos do Brasil, propôs a criação da Sudene, que foi acolhida pelo presidente Juscelino, e que inclusive indicou uma pessoa muito identificada com o conteúdo do ensino social cristão que foi o economista Celso Furtado.

Então, a encíclica entrou com muita ênfase, e a partir daí alguns bispos começam a ter uma posição mais aberta e ecumênica, como o próprio D. Helder Câmara, de maior compromisso com os pobres em uma perspectiva de transformação social. D. Helder é uma pessoa extraordinária, que já vinha fazendo no Rio de Janeiro um trabalho humanitário extraordinário, por meio da Cruzada de São Sebastião,  do Banco da Providência,  muito voltado para os pobres. E a Igreja começa a compreender que a questão social deve ser trabalhada na sua raiz, por meio de reformas, mudanças mais profundas, como a questão da reforma agrária, do empoderamento dos pobres, o processo de sindicalização, ou seja, assegurar, efetivamente, direitos para os pobres. Dom José [Vicente] Távora  foi outra figura notável nesse processo. Surge também nessa época o Movimento de Educação de Base – MEB, sob a coordenação e a referência do professor Paulo Freire.  E a encíclica certamente teve um grande impacto sobre isso.
O nosso querido mineiro D. José Maria Pires  disse que a encíclica teve um papel muito importante na sua vida, experienciando uma “segunda conversão”, que corresponde também ao período em que ele assume a diocese de João Pessoa-PB, no Nordeste. E ao mesmo tempo a encíclica teve um impacto muito grande no laicato. Seguramente o maior pensador católico brasileiro leigo, que foi o Alceu Amoroso Lima,  descreveu várias vezes o impacto que teve sobre ele a encíclica. Ele já vinha, claro, em uma posição cada vez mais avançada, acompanhando todo aquele processo do Pe. [Louis-Joseph] Lebret,  Economia e Humanismo , de [Jacques] Maritain,  [Emmanuel] Mounier  – que faleceu precocemente, mas que deixou seu legado com a revista Esprit. O Alceu sempre dizia isto: a encíclica de João XXIII foi uma libertação para ele. E para os jovens católicos da época, como os intelectuais Paulo de Tarso,  Plínio de Arruda Sampaio,  Alfredo Bosi,  ou militantes como o Dazinho,  uma figura admirável que nós tivemos aqui em Minas. Ele foi deputado estadual pelo Partido Democrata Cristão – PDC, cassado em 1964. Ele era mineiro – mineiro das minas, não das Minas Gerais – e foi presidente do Sindicato dos Mineiros. E vários outros militantes sindicais da época deram vários testemunhos dizendo que a encíclica do papa foi uma espécie de libertação: “Então nós podemos avançar! Nós podemos ousar nas lutas, nas reivindicações sociais, na perspectiva de uma sociedade mais justa, igualitária, fraterna. Não é mais uma questão meramente de caridade, no sentido tradicional da palavra. É uma questão de justiça, de direitos, de assegurar oportunidades”.

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