Edição 360 | 09 Mai 2011

“A Mater et Magistra deu vigoroso impulso à linha do compromisso social”

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Moisés Sbardelotto

No contexto brasileiro, a Mater et Magistra fomentou o crescente engajamento da Igreja nas questões relativas à reforma agrária, à sindicalização rural e à educação de base no campo, segundo o historiador da Igreja José Oscar Beozzo

“Em termos econômicos e sociais, a novidade da Mater et Magistra foi trazer para o horizonte da questão social os graves problemas do setor agrícola e dos trabalhadores do campo; o grito dos que passam fome; a dificuldade do acesso à terra para os que nela trabalham; os desequilíbrios entre a agricultura; a indústria e os serviços e ainda as injustas disparidades entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, vistas como grave ameaça à paz mundial”. Segundo o historiador José Oscar Beozzo, a encíclica de João XXIII, na prática, “deu vigoroso impulso à linha de compromisso social da Igreja do Brasil”. Para ele, a herança mais fecunda da encíclica em solo brasileiro foi a criação e os trabalhos da Pastoral da Terra, fundada em 1975, e o documento da CNBB A Igreja e os problemas da terra, de 1980.
A entrevista que segue, concedida por e-mail, é uma versão editada das respostas enviadas por Beozzo à IHU On-Line. A versão na íntegra, dada a sua relevância e aprofundamento nas questões históricas analisadas, será publicada em breve em uma edição especial dos Cadernos Teologia Pública.

José Oscar Beozzo é padre, teólogo e coordenador-geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular - Cesep. Tem mestrado em Sociologia da Religião, pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, e doutorado em História Social, pela Universidade de São Paulo - USP. Faz parte do Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina - CEHILA-Brasil, filiado à Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e no Caribe - CEHILA. Também é sócio-fundador da Agência de Informação Frei Tito para a América Latina - Adital. É autor de inúmeros livros, entre os quais A Igreja do Brasil (Vozes, 1993) e A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965 (Paulinas, 2005).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em 2011, completam-se os 50 anos de um dos principais documentos oficiais da Igreja sobre a questão social, a encíclica Mater et Magistra de João XXIII. A que conjuntura mundial o papa buscava se dirigir com esse texto?

José Oscar Beozzo –
O subtítulo da Mater et Magistra apontava como horizonte de sua conjuntura “a recente evolução da questão social”, tomando como ponto de partida a mensagem de Pio XII , na festa de Pentecostes de 1941, por ocasião do 50º aniversário da Rerum Novarum  de Leão XIII .

Para os 20 anos que se seguiram, João XXIII assinalou mudanças em três diferentes áreas: nos campos científico, técnico e econômico (cf. MM 47); no campo social (cf. MM 48); e no campo político (cf. MM 49). Por detrás de cada um dos campos mencionados, encontravam-se eventos, alguns dramáticos, outros espetaculares: na área técnica e científica, a entrada do mundo na era nuclear, com o holocausto da população civil de Hiroshima e Nagasaki, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945; e sua entrada na era espacial, com o lançamento, em 1957, do Sputnik, o primeiro satélite artificial da terra, e a 12 de abril de 1961, do primeiro homem ao espaço, o cosmonauta soviético, Yuri Gagarin , a bordo da nave Vostok 1.

No campo social, o papa apontava o papel crescente dos sindicatos na melhoria das condições de trabalho e da previdência social, mas também o desequilíbrio entre um setor agrícola “atrasado” frente à rápida “modernização” da indústria e dos serviços. Na esfera internacional, acenava já para as desigualdades e tensões entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos que estariam no centro da encíclica Populorum Progressio  (1967) do seu sucessor, Paulo VI .

No campo político, apontava o abalo dos colonialismos, com a sucessão das independências dos países colonizados pelo império britânico, (Índia e Paquistão, 1947; Sudão, 1956, Gana, 1957, Nigéria, 1960), holandês (Indonésia, 1949), italiano (Líbia, 1951, Somália italiana, 1960), francês (Vietnã, 1954; Tunísia e Marrocos, 1956); espanhol (Marrocos espanhol, 1956). A conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, deu vida ao novo protagonismo internacional de muitas ex-colônias da Ásia e África agrupadas no Movimento dos Países não alinhados, consubstanciando seu desejo de escapar do círculo de ferro da guerra fria que opunha Estados Unidos e União Soviética.

Em meio à euforia das independências, a encíclica já advertia para a sombra insidiosa do neocolonialismo, sob o disfarce de cooperação técnica e financeira e de ajuda ao desenvolvimento: “Onde quer que isto se verifique, deve-se declarar, explicitamente, que estamos diante de uma nova forma de colonialismo, a qual, por mais habilmente que se disfarce, não deixará de ser menos dominadora que a antiga, que muitos povos deixaram recentemente. E essa nova forma prejudicaria as relações internacionais, constituindo ameaça e perigo para a paz mundial” (MM 172). João XXIII prega, ao contrário, uma nova postura de cooperação internacional desinteressada e solidária.


IHU On-Line – Quais foram as grandes novidades do documento – em termos eclesiais, econômicos e sociais – e, analisando os percursos históricos desde então, quais foram as suas limitações?

José Oscar Beozzo –
Em termos eclesiais, destacamos três novidades:

1) A Igreja apresenta-se, assim o sublinha o próprio título da encíclica, como Mater et Magistra, Mãe e Mestre. A ênfase, entretanto, recai sobre sua dimensão de Mãe, que mais anima do que reprova, mais corrige do que condena, mais ama do que recrimina. Insiste-se na justiça, mas acompanhada de misericórdia, e faz-se apelo às reservas de altruísmo, bondade e solidariedade presentes nos seres humanos e mesmo nas nações, contrariando o mote corrente, de corte exclusivista e egoísta de que “Nações não têm amigos, mas só interesses”.

2) Antecipa o que será a marca registrada de sua encíclica de dois anos depois, a Pacem in Terris, em que, pela primeira vez, um documento pontifício é endereçado não apenas ao “episcopado, ao clero e aos fiéis”, mas “a todos os homens de boa vontade”. Dirigindo-se João XXIII a grande multidão de fiéis reunidos na Praça São Pedro, no dia 14 de maio de 1961, às vésperas do dia em que deveria ser proclamada a encíclica, ele deixa escapar quais eram, segundo seu coração, os seus destinatários:

“Queremos confessar-vos que o nosso plano era, na verdade, oferecer-vos e a toda a Igreja Católica, justamente no dia do faustíssimo transcurso dos 70 anos da Rerum Novarum – 1891 – 15 de maio – 1961 – este terceiro documento de valor universal, em forma de Carta Encíclica: ampla, solene. Temos a alegria de vos assegurar que a promessa está mantida: a Encíclica está pronta. Mas a solicitude de fazê-la chegar a todos os que acreditam em Cristo e a todas as almas retas espalhadas pelo mundo (grifo nosso), à mesma hora, no texto oficial latino e nas várias línguas faladas, nos aconselha a retardar um pouco a entrega do texto” .
A preocupação de que texto chegasse, ao mesmo tempo e em todo o mundo, nas diversas línguas, e não apenas em latim, fez com que o documento só fosse divulgado dois meses depois em 15 de julho de 1961. Essa preocupação do papa, que ele chamou de “solicitude”, demonstra cabalmente que sua Carta Encíclica estava dirigida não tanto aos estreitos círculos eclesiásticos, que presumivelmente podiam ler e entender o latim, mas aos cristãos comuns e, para além das fronteiras da Igreja e dos crentes, a “todas as almas retas, espalhadas pelo mundo”.

3) Ao apontar os trabalhadores e os leigos em geral como protagonistas da ação pela transformação das estruturas injustas na esfera econômica e social, o papa rompe o círculo estreito do mundo eclesiástico. Afirma que a construção de um mundo mais justo é tarefa de todas as pessoas e também das instituições civis nacionais e internacionais, dos Estados e dos sindicatos. É neste sentido que se deve compreender o inusitado apoio oferecido, num documento pontifício, a duas organizações internacionais, a Organização Internacional do Trabalho – a OIT  e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação – FAO  (cf. MM 103 e MM 156) .

Num plano mais delicado, a Mater et Magistra aborda a cooperação dos católicos na construção de um mundo mais justo, com pessoas de outros credos e ainda com os que declaram agnósticos ou ateus - leia-se, nas entrelinhas, pessoas engajadas em movimentos sociais e políticos de corte socialista (cf. MM 239). Naquele momento, era vivo o debate na Itália acerca de uma “apertura alla sinistra”, “abertura à esquerda”, que propugnava uma aliança entre a Democracia Cristã e o Partido Socialista. No Brasil, era grande a tensão da hierarquia com a Juventude Universitária Católica – JUC, por causa de sua aliança com estudantes de outras forças de esquerda, tendo em vista a conquista nas eleições para a direção da União Nacional de Estudantes – UNE.

Em termos econômicos e sociais, a novidade da Mater et Magistra foi trazer para o horizonte da questão social, até então praticamente identificada com a questão operária, os graves problemas do setor agrícola e dos trabalhadores do campo; o grito dos que passam fome; a dificuldade do acesso à terra para os que nela trabalham; os desequilíbrios entre a agricultura; a indústria e os serviços e ainda as injustas disparidades entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, vistas como grave ameaça à paz mundial. O tema será amplamente retomado e desenvolvido seis anos depois por Paulo VI, na Encíclica Populorum Progressio, expresso de maneira lapidar na frase tantas vezes repetida: “O desenvolvimento é o novo nome da paz” .


Limitações

Levantando-se a questão das limitações da encíclica, vistas a partir de hoje, a mais flagrante talvez, seja sua posição no campo da demografia e da família, e na questão do meio ambiente. Ao tratar do primeiro tema, a encíclica minimiza o desequilíbrio entre o crescimento da população e os meios de subsistência, dizendo: “A bem dizer, no plano mundial a relação entre o aumento demográfico e os meios de subsistência não cria graves dificuldades, seja no momento, seja em um futuro próximo” (MM 188).

A Encíclica apostava que o progresso científico e técnico seria capaz de cobrir a demanda por alimentos e outros bens por parte de uma crescente população mundial. Aposta errônea, pois hoje mais de um bilhão de pessoas segue padecendo de fome crônica, embora não fosse de todo disparatada sua previsão. Com efeito, os rendimentos agrícolas mais que triplicaram em muitos lugares, com a extensão da irrigação, o uso de sementes melhoradas, de técnicas de correção e conservação do solo, utilização de fertilizantes e defensivos agrícolas, aplicação da genética na melhoria dos rebanhos e na produção de carne, leite, ovos, etc. Por outro lado, agravou-se a escassez de água doce, visto que a agricultura e a pecuária são responsáveis por mais de 85% do seu uso e aumentou enormemente a contaminação do solo, do ar e das águas, plantas, animais e seres humanos pelos agrotóxicos. O uso de organismos geneticamente modificados elevou os riscos para a saúde humana. O controle da cadeia produtiva por parte das grandes multinacionais do agronegócio que produzem sementes transgênicas, fertilizantes e defensivos agrícolas prejudicou ou mesmo alienou a agricultura familiar. Sementes híbridas e geneticamente modificadas vêm provocando o desaparecimento da diversidade genética e das sementes caboclas e dificultando o cultivo de produtos orgânicos livres de agrotóxicos. Por sua vez, a produção de alimentos é hoje suficiente para alimentar com folga toda a humanidade, mas o acesso aos mesmos por parte de todos é travado pelo seu alto custo, pela especulação no mercado futuro dos alimentos convertidos em commodities; pela disparidade de renda e pela pobreza de muitos consumidores; por protecionismos, por dificuldades de transporte e armazenamento ou ainda por embargo político, como o que pesa sobre Cuba ou a Faixa de Gaza.
Ao tratar do planeta terra, a encíclica afirma: “Além disso, Deus, em sua bondade e sabedoria, ao mesmo tempo em que espalhou pela natureza uma capacidade quase inesgotável de produzir, dotou o homem de inteligência arguta para que, servindo-se dos meios técnicos adequados, possa transformar os produtos naturais, a fim de satisfazer as exigências e necessidades de sua vida” (MM 190). Visão ingênua esta sobre a capacidade inesgotável da terra, hoje sobre-explorada e incapaz de refazer-se da degradação a que foi submetida. É certo que um pouco mais adiante, ao retomar o tema do “crescei e multiplicai-vos” e do “povoai a terra e dominai-a”, a encíclica introduz uma advertência explícita: “O segundo desses mandamentos, longe de ter em vista a destruição das coisas, destina-as, ao contrário, à utilidade da vida humana” (MM 197).
 

IHU On-Line – Que impactos a encíclica provocou no Brasil, em seu contexto político, econômico, eclesial e social de então, especialmente nas questões da propriedade, da terra e do bem comum?

José Oscar Beozzo –
O país vivia grande efervescência no início dos anos 1960, com a inauguração de Brasília, do breve e agitado governo de Jânio Quadros  que condecorara Che Guevara  e cujo vice-presidente encontrava-se na China, quando de sua renúncia; inflação galopante e recessão econômica, tanto mais desconcertante quanto o país havia experimentado décadas seguidas de constante crescimento econômico.
A intensa repercussão da encíclica de João XXIII no Brasil e sua pronta recepção pela Igreja local, em que pesem as polêmicas e divisões que suscitou na sociedade e na própria Igreja, só são compreensíveis à luz de três considerações relativas à encíclica, ao país e à Igreja.

Quanto à encíclica, ela aborda dois problemas até então mantidos na sombra da doutrina social da Igreja, mas que se encontravam no centro do momento histórico brasileiro: o do subdesenvolvimento e o da questão social no campo. Juscelino Kubitschek  (1956-1960) havia convocado a nação a superar seu atraso econômico, crescendo 50 anos em cinco. O país cresceu, modernizou-se aceleradamente, mas ao mesmo tempo colocou a nu o profundo empobrecimento do campo, chamado a favorecer a acumulação do capital industrial e a fornecer alimentos a baixo preço para as massas que migraram para as cidades. Aumentaram também as diferenças regionais entre o sul industrializado, urbanizado e enriquecido e um nordeste abandonado e empobrecido. O exemplo explosivo de Cuba e de sua revolução, expropriando os grandes latifúndios e entregando terra aos camponeses repercutiu profundamente no nordeste canavieiro, onde se viviam situações semelhantes de miséria e opressão no campo.

É no contexto, pois, da rápida radicalização no campo e cenário político urbano, frente ao problema do subdesenvolvimento e de suas saídas e de crescente envolvimento da Igreja brasileira nos embates sociais, que chega a encíclica Mater et Magistra.


O clima brasileiro

Três episódios permitem colher o clima e as condições em que se dá a recepção da Mater et Magistra na sociedade brasileira e na Igreja. Todos buscam valer-se da palavra do papa para legitimar posições cada vez mais antagônicas no campo social e político:

1) Os textos pontifícios eram tradicionalmente publicados no país pela Editora Vozes, Petrópolis-RJ. A Mater et Magistra sai também publicada por editoras leigas, como a José Olympio, em dois formatos, um popular e outro em dois volumes, com amplos comentários. A encíclica é ainda publicada em jornais de grande circulação e por sindicatos. Conhece, ademais, edições financiadas por grupos diametralmente opostos no espectro político, por Leonel Brizola , governador do Rio Grande do Sul e líder do PTB e pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES. Sob uma fachada inocente de estudos sociais, o IPES patrocinava a desestabilização do governo João Goulart . Tentava aglutinar setores importantes do empresariado, tanto nacional quanto internacional, e atrair setores da Igreja, das universidades, da grande imprensa e de sindicatos não combativos. Trabalhou intimamente com a CIA e a Embaixada norte-americana, financiando campanha eleitoral de candidatos anticomunistas através do Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD e preparando o golpe de 1964 que levou o país a sofrer 21 anos de ditadura militar. O IPES foi também um dos responsáveis por preparar projetos “alternativos” de reforma agrária, destinados apenas a bloquear a tramitação do projeto de reforma agrária do governo Goulart.

Inversamente, no Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola, empenhado em iniciar a reforma agrária no seu estado, face às hesitações e tergiversações do congresso nacional, onde a maioria conservadora bloqueava a sua discussão e aprovação, mandou imprimir e distribuir largamente o texto da Mater et Magistra, utilizando-o em sua campanha pela reforma agrária no estado.

2) Enquanto o centenário jornal O Estado de São Paulo, tradicional defensor dos interesses da grande propriedade rural e depois industrial e financeira, dizia que a Mater et Magistra consagrava a inviolabilidade do direito de propriedade e, por isso, condenava a reforma agrária, camponeses sem terra do Rio Grande do Sul, em número de 5 mil, armavam um grande acampamento em terras públicas no município de Sarandi. Ali, ergueram um grande crucifixo de madeira e levantaram faixas com os dizeres: “Acampamento João XXIII. Somos cristãos. Queremos terras” .

3) Em 1960, reagindo à tímida regulação agrária (como foi chamada) de Carvalho Pinto no governo paulista, que alocava pequenos lotes de terras públicas ociosas a trabalhadores rurais sem terra, dois bispos, Dom Antônio de Castro Mayer de Campos-RJ e Dom Geraldo Proença Sigaud, na época, bispo de Jacarezinho-PR e, posteriormente, arcebispo de Diamantina-MG, reagiram fortemente contra. Escreveram, com o conhecido fundador da TFP (Tradição, Família e Propriedade), Plínio Correa de Oliveira, e com o economista de associações patronais, Luiz Mendonça de Freitas, o alentado volume: Reforma Agrária: Questão de Consciência . O livro descreve toda e qualquer reforma agrária, que tocasse a propriedade da terra, como programa intrinsecamente socialista e anticristão. O arcebispo de Goiânia, D. Fernando Gomes, reagiu à publicação do livro, interpelando os autores, para que explicitassem qual seria a “reforma agrária de inspiração cristã” que estes se diziam dispostos a apoiar. Denunciava, ao mesmo tempo, sua “preocupação absorvente de ver ‘socialismo’ em quase tudo”  . D. Castro Mayer respondeu longamente ao arcebispo, reiterando seus pontos de vista . D. Fernando voltou a lhe responder, valendo-se desta vez da recém-publicada Mater et Magistra e buscando colocar um ponto final na polêmica:

“Quanto às outras considerações do artigo (...), temos, para júbilo de todos, a palavra autorizada e esclarecedora do Santo Padre, João XXIII, na recente encíclica Mater et Magistra. Que mais poderíamos dizer? Nela, o caminho seguro para a solução dos problemas sociais de nossa época. Nela, em termos altos e definidos, os princípios de uma Reforma Agrária Cristã” .
Na prática, a Mater et Magistra deu vigoroso impulso à linha de compromisso social da Igreja do Brasil e, de modo particular, ao seu crescente engajamento nas questões relativas à reforma agrária, à sindicalização rural e à educação de base no campo .


A declaração programática da CNBB

A 5 de outubro de 1961, a Comissão Central da CNBB publicou declaração programática, tomando por base a Mater et Magistra e aplicando-a à realidade brasileira. Após manifestar seu regozijo pela publicação da encíclica, diz que ela era “oportuna para o mundo e oportuníssima para o caso especial do Brasil” . Do conjunto dos temas tratados na encíclica, a CNBB volta-se exclusivamente para o meio rural “cuja situação é grave e que mereceu todo um longo capítulo da Encíclica, a propósito de ‘exigências de justiça em relação aos setores de produção’. Dele, extraímos um roteiro de atividades que, para os católicos, é um programa ideal, mas que é válido para todos, independentemente de religião” .

A Declaração repassa, resumidamente, os principais tópicos da encíclica, para concluir com dois blocos de recomendações especiais, voltadas para a situação brasileira: “Na esperança de ver, quanto antes, aplicadas a nosso meio rural essas diretrizes, merecem-nos recomendações especiais, os seguintes movimentos:

— Ação Católica Rural (ACR), a Juventude Agrária Católica (JAC) e a Liga Agrária Católica (LAC) são dignas de apoio prioritário, traduzido em tempo, interesse e sacrifício. São, por excelência, a presença de Cristo entre os trabalhadores do campo. Ajudar a afirmar a Ação Católica Rural e assegurar ao meio rural mística bastante forte para contrabalançar e superar a mística comunista.

— Sindicalização Rural. A experiência iniciada no Nordeste, de formação de líderes para a sindicalização rural é digna de ser estendida a todos os centros rurais, sobretudo quando agitados por reivindicações justas, mas conduzidas com segundas intenções. O Secretariado Geral de nossa Conferência está apto a fornecer aos bispos interessados pelo assunto todos os dados necessários.

— Frentes Agrárias. Sugerimos às dioceses rurais que acompanhem, com o mais vivo interesse, a experiência das Frentes Agrárias surgidas no Paraná e no Rio Grande do Sul. Talvez, um dia, se possa pensar na articulação nacional das Frentes.

— Movimento de Educação de Base. Para a divulgação do roteiro de atividades, como para expansão da JAC, da sindicalização Rural e das Frentes Agrárias, o instrumento providencial que temos em mãos é o Movimento de Educação de Base – MEB, através de Escolas Radiofônicas. Reiteramos nossa confiança no MEB e estamos certos de que, sem educação de base, será vão o esforço de mera recuperação econômica, por mais aparato técnico de que se revista o planejamento.

— Planejamento Apostólico. A Comissão Central da CNBB vê, com o maior interesse, as experiências pastorais que se realizam em diversas dioceses, dentro da prudência e do zelo apostólico, adaptadas às exigências da hora atual”  .

Por outro lado, o documento não esconde sua preocupação com a movimentação dos partidos de esquerda, ao arrepio do tradicional controle da Igreja sobre as populações rurais. Alarmava-se com o sucesso das Ligas Camponesas de Francisco Julião na zona canavieira de Pernambuco e dos estados vizinhos, no Nordeste, e denunciava improvável movimento guerrilheiro na região.
Os bispos, ao mesmo tempo em que se posicionam claramente pelas reformas e pelo compromisso da Igreja em sua efetivação, veem todos os perigos subirem pelo lado da esquerda. É interessante notar que, na mesma época, o principal líder do laicato católico apontava as nuvens que se acumulavam noutro horizonte, com prenúncios de golpe pela direita.

A encíclica que havia tirado as questões ligadas ao secular problema do latifúndio e da exploração dos trabalhadores no campo de manifestações isoladas, como a do bispo de Campanha, D. Inocêncio Engelke, com sua pastoral de 1950: “Conosco, sem nós ou contra nós, se fará a reforma rural”, ou de pronunciamentos regionais, como o do episcopado paulista de 5 de dezembro de 1960, acabou trazendo-as para um amplo debate nacional, como vimos acima .


Na Igreja latino-americana as reações não foram nem podiam ser uniformes. O México já havia passado pela revolução camponesa de Emiliano Zapata , em 1910 e pela reforma agrária de Lázaro Cárdenas na década de 1930, com a Igreja sendo mantida longe das questões sociais, desde a violência antirreligiosa do governo de Plutarco Elias Calles  (1924-1928) e dos acordos que se seguiram ao levante Cristero ; Bolívia havia conhecido sua revolução camponesa e a reforma agrária, em 1953. Na década de 1960, à raiz da revolução cubana, por toda a América Latina o tema da reforma agrária estava entrando na agenda social e política dos movimentos sociais e partidos políticos, mas também das Igrejas. Neste clima, foi intensa a repercussão da Mater et Magistra e em todo o continente. Ela plantou as sementes do amplo movimento de apoio da Igreja aos movimentos camponeses e indígenas que ganhou corpo com Medellín, em 1968.

No Brasil, a herança mais fecunda da Mater et Magistra encontra-se na criação e nos trabalhos da Pastoral da Terra, fundada em junho de 1975 e no documento da CNBB, maduro e inovador, em termos de doutrina social da Igreja, A Igreja e os problemas da terra (1980) . Ali se introduz a distinção entre “terra de trabalho” e “terra de negócio”, ao lado da “terra comunitária” dos povos indígenas e se proclama o apoio da Igreja às iniciativas e organizações dos trabalhadores e dos seus movimentos, assim como à reforma agrária e à mobilização dos trabalhadores para exigir sua aplicação.
 

IHU On-Line – A partir das ideias defendidas na Mater et Magistra e em suas demais encíclicas, que avaliação o senhor faz da figura de João XXIII dentro do seu contexto histórico? Qual o significado do seu papado e seu legado?

José Oscar Beozzo –
João XXIII é figura maior para a virada de uma Igreja focada menos em si mesma e mais nas necessidades e angústias de toda a humanidade. Ao deslocar o esforço eclesial para estar atento aos sinais dos tempos e para e responder grito dos pobres, escapou da secular armadilha de que bastavam enunciar a doutrina correta e condenar os erros, para se resolver os ingentes problemas da humanidade e da Igreja.

O seu papado foi capaz de convocar, abrir e colocar num bom rumo, o Concílio Vaticano II, o mais importante evento eclesial do século XX levado a bom termo por seu sucessor Paulo VI.
João XXIII inseriu a Igreja Católica no amplo movimento ecumênico do século XX, abriu o diálogo com os judeus, com os crentes de outras religiões e com os não crentes, na convicção de que todos os seres humanos fazem parte da mesma família de Deus e têm responsabilidades recíprocas.

Teve decidida atuação em favor da paz, superando os limites, insuficiências e falácias da assim chamada guerra justa, para proclamar com toda clareza que, diante das modernas armas químicas, biológicas nucleares que colocam em risco a sobrevivência, nenhuma guerra pode ser considerada justa. Para proteger os fracos de agressões injustificadas, ele pediu o reforço e aperfeiçoamento de instâncias internacionais de diálogo, mediação e superação dos conflitos.

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