Edição 358 | 18 Abril 2011

As marcas indeléveis da tortura

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Márcia Junges

Coisificação do ser humano, que vira apenas um outro perigoso, dá uma pálida noção do que significa a tortura, afirma Cecília Coimbra, ex-presa política. Produção de subjetividades criminosas e criminalização da pobreza esteiam essa prática inadmissível

“Nós, que passamos pela tortura, podemos afirmar que ela é algo indizível. Ela desumaniza, vê o outro como objeto, como seu inimigo”. Contundentes, verdadeiras, essas palavras foram ditas por Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (www.torturanuncamais-rj.org.br), do Rio de Janeiro, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line. Presa política de agosto a novembro de 1970, ficou dois dias no DOPS e o restante do tempo no DOI-CODI. Foi torturada, e garante que as marcas são inapagáveis, pois permanecem na alma de quem passou por esse horror. Contudo, é preciso saber o que fazer com essas marcas: “Elas devem ser instrumentos de luta. Elas mostram como é você ser olhada pelo outro como se fosse um simples objeto perigoso”.

A exportação de know-how de tortura made in Brazil para outros para outros países latino-americanos e a violência de Estado que continua a aterrorizar a população também foram abordados na conversa com a IHU On-Line. Ela enfatiza que a sociedade brasileira deveria indignar-se quando acontece tortura e violência não apenas junto à classe média ou alta, mas também junto às classes mais pobres: “Em nome da história, temos que pensar o presente criticamente”. As conquistas do Grupo Tortura Nunca Mais são outro tema que suscita reflexões.

Militante do Partido Comunista, Cecília Coimbra era estudante do curso de História. A seguir, já professora, aproximou-se do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR8 e iniciou a graduação em Psicologia. É professora aposentada, porém mantendo vínculo com o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense - UFF. Interessada no nexo que une a psicologia à ditadura, afirma que não se trata de acaso o fato desta ciência e da psicanálise terem se desenvolvido tanto em nosso país no período autoritário. Ex-integrante do Conselho Regional de Psicologia, foi presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. À frente do Tortura Nunca Mais, trava batalha incessante em nome da verdade e da memória de um período sombrio de nossa história.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual é a importância de se resgatar a memória histórica do período da ditadura brasileira?

Cecília Coimbra -
No Brasil há uma tendência em se desqualificar a memória, de não ligar para fatos históricos e documentos, de um modo geral, que não são levados a sério ou em consideração pelos diferentes governos. Isso se dá, sobretudo, em relação ao período da ditadura civil militar que se abateu em nosso país, em especial a partir de 1968, com o AI-5, quando se instala o terrorismo de Estado e a tortura passa a ser instrumento oficial. As memórias desse período são fundamentais de serem trazidas e resgatadas para a sociedade, de serem afirmadas pelas diferentes pessoas que foram atores e testemunhas desse período. Essa é a luta do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, que existe há 26 anos, surgido logo após o período da ditadura civil militar, porque as questões referentes a esse período estavam sendo jogadas para baixo do tapete. Assim, o Grupo surge num momento em que havia um clamor na sociedade brasileira para que pudéssemos conhecer nossa história, algo que foi e continua sendo negado.
Aqui existe toda uma lógica de produção de esquecimento e silenciamento, bem diferente do que aconteceu e que vem ocorrendo nos países latino-americanos que passaram por situações políticas semelhantes. A questão da memória é fundamental principalmente para as novas gerações. Sou professora universitária e sei como as novas gerações ignoram esses fatos. É como se houvesse uma lacuna nesse período histórico da ditadura.

Há alguns dias recebi um e-mail de uma ex-aluna, psicóloga, que está trabalhando no Centro de Direitos Humanos de Petrópolis, onde estão fazendo um levantamento e uma campanha muito bonita para que a chamada Casa da Morte (aparelho clandestino da repressão que funcionou em Petrópolis numa casa alugada pelo Centro de Informações do Exército) seja transformada em museu da memória. Isso emocionou-me muito, pois as novas gerações já estão se apropriando da história. Por isso, repito que a questão da memória é fundamental, para que conheçamos mais sobre nosso passado.


IHU On-Line - Por que inúmeros outros países da América Latina já resolveram suas contas com o passado autoritário e nós ainda engatinhamos nesse processo? Por que há tanta dificuldade do Brasil lidar com seu passado ditatorial?

Cecília Coimbra -
Realmente, o Brasil ainda está engatinhando nessa questão. Somos o último país na América Latina a efetivar um processo de reparação. Nos anos 1970 fomos campeões na exportação do know-how de tortura para as ditaduras latino-americanas. Exportamos manuais de tortura e torturadores. Temos informações de que no Chile, Argentina e Uruguai havia torturadores brasileiros participando de interrogatórios. O Brasil, que foi o campeão de exportação de tortura nos anos 1970, hoje é uma das nações mais atrasadas do continente. Isso porque o processo de reparação, como a própria ONU diz, é um processo no qual primeiramente se investigam e esclarecem as circunstâncias das mortes, desaparecimentos e das prisões arbitrárias cometidas naquele período. O Brasil é o último, nesse sentido. Isso porque começamos pelo final do processo de reparação. É como se fosse um “cala a boca”.


Vontade política

Desde 1995, com Fernando Henrique Cardoso, foi instalada uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e, muito timidamente, vai-se tentando esclarecer algumas questões relativas a esse assunto. Por que isso? Por muitos fatores. Temos uma história muito diferente dos demais países da América Latina, de colonização espanhola. Vemos a participação da população da Argentina de forma ativa na questão dos mortos e desaparecidos políticos. O Brasil caminha timidamente nessa direção. A sociedade brasileira não sabe, em absoluto, dos arbítrios e das perversidades que foram cometidos durante aquele período. Isso é desconhecido pela maioria da população. É uma série de forças que entram em jogo nessa questão.

Na Argentina, com o governo de Alfonsín , houve uma ruptura com o conservadorismo anterior. No Brasil não houve essa ruptura. O que houve, aqui, foi uma política de continuidade, tanto que a anistia vem em pleno período de ditadura. A anistia foi imposta. Nós perdemos no Congresso Nacional por cinco votos. Em 1978-79, exigíamos, junto dos movimentos sociais, uma anistia ampla, geral e irrestrita. Ela não veio assim. A anisitia que foi vencedora no Congresso nacional foi a anistia que vinha do governo militar, extremamente reduzida, fruto de alianças que continuam hoje. Os governos civis de 1985 para cá fizeram parcerias e alianças com as forças conservadoras e até reacionárias que respaldaram o período de terrorismo de estado. Por isso, até hoje não há vontade política efetiva dos governos para que essa história possa ser contada efetivamente. Boa parte de nossos arquivos foi queimada, mas ainda resta outra parte. Isso é dito pela imprensa. Alguns militares, como Sebastião Curió, um dos repressores da guerrilha do Araguaia, e o falecido general Bandeira, têm arquivos ditos pessoais. Quero dizer claramente que esses arquivos não são pessoais coisíssima alguma. Esses arquivos são roubados da nação. Isso é crime e o governo federal sabe disso em suas diferentes gestões.


IHU On-Line - Qual é a expectativa sobre esse tema a partir do governo Dilma?

Cecília Coimbra -
Como ex-presa política que fui, e com todo respeito pela história da Dilma e de outros companheiros, digo que a tortura, a prisão e o testemunho de sofrimento de vários companheiros e da morte de outros são marcas que estão nos nossos corpos, invisibilizadas, muitas vezes. Aqueles que conseguiram sobreviver, como nós, sabem que essas marcas não se apagam nunca. Espero que essas marcas que estão no corpo e na mente da presidenta possam ter um eco mais forte do que as alianças políticas que estão sendo feitas.


As diferenças entre as ditaduras latino-americanas são várias. No Brasil sempre houve uma propaganda intensa com relação aos direitos humanos. Nos anos 1940 e 1950 tratava-se de um anticomunismo ferrenho. Hoje, vemos os meios de comunicação de massa fazerem uma espécie de continuidade a essa posição. Precisamos pensar em não naturalizar o que está acontecendo hoje com relação à violência urbana e rural. Rotula-se para que se criminalizem e desqualifiquem os diferentes movimentos sociais. Antes éramos chamados de terroristas, de inimigos da pátria, aqueles que colocavam em risco a segurança nacional. Hoje, o alvo é a pobreza, que cada vez mais, sobretudo em função desse período autoritário, é apontada como perigosa. O Brasil promove uma forte desqualificação e criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. Isso ocorre também no restante da América Latina. É a chamada formação das “classes perigosas”, daqueles que põem em risco nossa segurança, algo que tem muito a ver com a doutrina de segurança nacional, instaurada em toda a América Latina naquele período.

Atualmente, vemos os mesmos dispositivos que foram aplicados pela ditadura sendo aplicados à pobreza. Temos que chamar a atenção para isso. Os pobres são criminalizados como se todos fossem traficantes e bandidos. Como se toda favela fosse reduto de assassinos. Essas políticas são planetárias, fascistas e mais do que conservadoras, discriminatórias. O pior é que a população aplaude. Produz-se algo muito parecido com o que se produziu naquele período em termos de propaganda oficial. Em nome da minha segurança, devo vigiar o outro e, se possível, prendê-lo e eliminá-lo, pois ele é um perigo para a minha segurança. Isso é doutrina de segurança nacional.

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