Edição 252 | 31 Março 2008

Pós-máquinas ciberhominizadas? O pós-humano e o movimento social do capital

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Bruna Quadros

A partir do filme Blade Runner – O caçador de andróides, Giovanne Alves destaca a infl uência do capitalismo nos conceitos de humanidade e pós-humanidade, que se ganham mais visibilidade em meio à revolução tecnológica

Para o sociólogo Giovanni Alves, o capital é um modo de controle estranhado do metabolismo social; um modo de controle baseado na propriedade privada e troca mercantil. “Estamos diante de um sistema social do capital em que a tecnologia alcançou seu pleno desenvolvimento”, afirma ele, em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line. A discussão gira em torno da temática do filme Blade Runner – O caçador de andróides, no qual replicantes, com mais força, agilidade e inteligência do que seres humanos, estão em busca de um único fator que os tornariam, também, humanos: o tempo de vida. “Hoje, o hipercapitalismo reduz nosso tempo de vida, a tempo de trabalho”, reforça Alves. Neste sentido, o sociólogo destaca que o problema não é o homem, no sentido metafísico, “mas um determinado tipo de homem, o homem burguês, homem da aquisitividade econômica. E não se trata do homem buscar ser infalível ou ambicioso – no sentido moral –, mas de pertencer a um sistema social cuja lógica visceral é a acumulação de valor abstrato”, enfatiza. Giovanni Alves é professor livre-docente de sociologia da UNESP - Campus de Marilia, pesquisador do CNPq, autor de vários livros sobre trabalho e globalização, coordenador da RET (Rede de Estudos do Trabalho) e do Projeto Tela Crítica. Confira no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu) as entrevistas concedidas por ele, intituladas “Como enlouquecer seu chefe” e “Temas candentes da sociedade burguesa em discussão”. (Nota da IHU On-Line)

O filme Blade Runner será exibido e debatido no próximo dia 02 de abril, pela Profa. Dra. Gláucia Angélica Campregher e pelo Prof. Dr. Celso Cândido, ambos integrantes do corpo docente da Unisinos. A atividade, que integra o evento Uma Sociedade Pós-Humana: uma visão a partir do cinema, é promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e será realizada na sala 1G119, junto ao IHU, em dois horários: pela manhã, das 08h30 às 11h15; e à noite, das 19h30 às 22h15. O evento é uma preparação ao Simpósio Internacional Uma Sociedade Pós-Humana? Possibilidades e Limites das Nanotecnologias, que será realizado de 26 a 29 de maio, na universidade. Para saber mais, acesse: www.unisinos.br/ihu.

IHU On-Line - Em Blade Runner, os seres criados são idênticos aos humanos, porém mais ágeis, fortes e inteligentes. É possível acreditar que os homens estejam perdendo espaço para as máquinas?

Giovanni Alves - Blade Runner é um filme de ficção científica que expõe numa linguagem fantástica, a distopia de uma humanidade degradada pelo metabolismo social do capital. O filme nos apresenta não apenas a degradação social. O estilo noir de Ridley Scott também sugere um mundo social agudamente dessocializado, ecologicamente degradado (a chuva ácida que cai em Los Angeles é resultado de uma deterioração paulatina do ecossistema terrestre). Ora, o capital é um modo de controle estranhado do metabolismo social, um modo de controle baseado na propriedade privada e troca mercantil. Estamos diante de um sistema social do capital em que a tecnologia alcançou seu pleno desenvolvimento. Em Blade Runner, o homem é capaz de produzir outros “homens”, verdadeiros ciborgues, “máquinas” inteligentes, ágeis e robustos, utilizados como trabalho servil. Os replicantes ou andróides são os proletários do tempo histórico de Blade Runner. Talvez a utilização dos replicantes como força de trabalho vivo no filme seja economicamente mais rentável do que a utilização de homens. Nesse caso, os homens na narrativa de Ridley Scott estão perdendo espaço para os replicantes. Na medida em que são trabalho vivo, produzem mais. Entretanto, são máquinas, mas inteligentes. É curioso que, em Blade Runner, os replicantes sejam mais humanos que os próprios homens. Este é um dos paradoxos do filme que explicita uma inversão: máquinas inteligentes num mundo de homens mecanizados. Os replicantes de Ridley Scott têm algo em comum com o computador HAL, de 2001 - Uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick: embora sejam objetos técnicos complexos, criações do homem, conseguem expressar, mais do que o homem, mesmo que numa forma estranhada, sentimentos dignos do homem, para o bem e para o mal. Na ficção científica de Ridley Scott, temos, de fato, o mundo da barbárie social, um mundo social em processo de desefetivação, em que a degradação humana atingiu seu limite irremediável (inclusive, degradação ecológica). É claro que se trata de um filme ficção científica, mas que possui um caráter hiperrealista, pois nos fala de possibilidades candentes (e preocupantes) da ordem estranhada do capital.

IHU On-Line - Podemos pensar as máquinas como extensões do homem?

Giovanni Alves - Em Blade Runner, os replicantes não são, a rigor, meras máquinas. São objetos técnicos complexos, ou o que eu denomino “pós-máquinas ciberhominizadas”. No meu ensaio “Fetichismo e ciberespaço”, publicado no livro “Dialética do Ciberespaço” (Ed. Praxis, 2002), desenvolvo o conceito de pós-máquina e ciberhominização. É uma tendência do desenvolvimento tecnológico sob o capitalismo hipertardio a produção de novas máquinas que são, na verdade, pós-maquinas, isto é, objetos técnicos inteligentes que almejam adquirir atributos tipicamente humanos. Inclusive, eles contêm, em sua forma material, traços virtuais ou espectrais de emancipação humano-genérica, como os replicantes, que aparecem como homens e mulheres perfeitos, em seus atributos demasiadamente humanos. Quando falamos em máquinas, temos em mente objetos tecnológicos que nasceram da segunda ou da terceira Revolução Tecnológica. Mas, hoje, vivemos a quarta Revolução Tecnológica, a revolução informacional e biotecnológica, marcada pela manipulação do código genético. Depois da revolução da informática e informacional, a próxima “revolução”, no bojo desta quarta revolução tecnológica, é a revolução biotecnológica. Surge a possibilidade real da produção de novos homens, uma nova hominidade desumanizada, não apenas por conta do arcabouço tecnológico, mas das próprias condições sociais de dominação do capital. Na medida em que esta nova tecnologia se desenvolve no seio do mundo do capital, ela não pode servir aos homens, embora contenha promessas candentes de emancipação humana. O homem é um animal social. Na verdade, o que oprime os homens e mulheres são as condições sociais de sua existência humana e não os objetos técnicos que eles possam produzir. Quando as máquinas aparecem como “vilãs da história”, elas apenas expressam, de forma mistificada, relações sociais estranhadas, o capital. Precisamos ter cuidado para não “culpar” as máquinas, ou os replicantes, no filme Blade Runner, pela desgraça humana.

IHU On-Line - A realidade social apresentada no filme se volta para o capitalismo. Que relações podem ser estabelecidas, diante da sociedade atual, onde a cultura capitalista também impera e os avanços tecnológicos são constantes?
Giovanni Alves
- O mundo social de Blade Runner é um mundo capitalista em sua forma monopólica. O poder social e político está com as grandes corporações, como a corporação Tyrell, que produziu os replicantes como uma nova força de trabalho barata e descartável. Todos os elementos da sociabilidade capitalista estão presentes no filme, a exemplo do domínio da forma-mercadoria e a divisão hierárquica do trabalho. Inclusive, a produção dos replicantes, seres humanóides produtos da sofisticada engenharia genética, ocorre de forma parcelar. Temos um trabalhador coletivo altamente qualificado, mas proletarizado, como Sebastian, o criativo engenheiro que fez o design dos replicantes. É um mundo da manipulação social e do aparato midiático que divulga insistentemente as mercadorias das corporações industriais. Nesse sentido, o capital como metabolismo social articula tecnologias avançadas, manipulação midiática e exploração humana e humanóide. 

IHU On-Line - O conceito de ser ou não humano se confunde, ao longo da trama. Em que medida o filme contribui para a construção da identidade do homem?
Giovanni Alves
- Blade Runner trata da desefetivação humana. Este é o significado do conceito de barbárie social, perda do sentido de realidade, devido à aguda manipulação da subjetividade humana. É o que constatamos hoje de forma intensa com o capitalismo manipulatório, o capitalismo da “captura da subjetividade”. O filme trata da degradação do homem e de seu meio ambiente. É importante não esquecer que o filme se passa num planeta Terra em extinção, degradado ecologicamente. Acredito que hoje, mais do que nunca, coloca-se, sim, a possibilidade da catástrofe ecológica. Outro elemento de degradação ou desefetivação da identidade humana é a perda da memória pessoal. Existe uma obsessão nos replicantes: possuir uma memória pessoal, pois é ela que nos dá a identidade humana. Nos dias de hoje, sob o capitalismo da “presentificação crônica”, como nos diz Hobsbawm,  se manipula em demasia a memória social e pessoal. Enfim, manipula-se e nega-se o âmago da identidade humana. A sociedade de Blade Runner é uma sociedade negada em sua capacidade de se afirmar como sujeitos de sua própria história. Os únicos personagens que buscam fazer a sua história e que se insurgem no filme de Scott são os replicantes. Talvez, eles nos façam lembrar o que somos e o que podemos perder, na medida em que nos integramos num sistema social do controle estranhado do capital.

IHU On-Line - Em que sentido esse tipo de filme revela o sentimento do homem contemporâneo em ser cada vez mais infalível e sem limites no sentido de alcançar seus objetivos?
Giovanni Alves
- O problema não é o homem, no sentido metafísico. O problema é um determinado tipo de homem, o homem burguês, homem da aquisitividade econômica. E não se trata do homem buscar ser infalível ou ambicioso – no sentido moral –, mas de pertencer a um sistema social cuja lógica visceral é a acumulação de valor abstrato. Enfim, a tecnologia se desenvolve de forma intensa e irracional, não porque o homem seja ontologicamente um ser pretensioso que busca ser Deus (como o mito hebreu da Torre de Babel supõe), e sim porque o modo de organização da produção da vida social e o modo de produção capitalista assim o exige. O lema do capitalismo é: acumulai, acumulai, e acumulai. A natureza e a humanidade que se danem. É urgente, hoje mais do que nunca, mudarmos a lógica social que organiza a sociedade humana, abolindo o capital como modo de controle do metabolismo social.

IHU On-Line - Como seria uma sociedade controlada e manipulada por homens-máquina? Como fica a questão de valores e crenças?
Giovanni Alves
- Nesse caso, seria melhor assistir Matrix.  Em Blade Runner, a sociedade é controlada por homens poderosos, personas do capital, que perseguem replicantes proletários, máquinas inteligentes que se insurgiram. Os pobres replicantes buscam apenas ser o que têm supostamente a possibilidade de ser: homens. Eles não têm apenas memória pessoal, mas desenvolvem habilidades emocionais e afetivas. O que lhes falta é o que falta a todos nós hoje: tempo de vida. Hoje, o hipercapitalismo reduz nosso tempo de vida, a tempo de trabalho. Na verdade, posso dizer que todos nós somos replicantes. E como nos disse Chaplin,  em O grande ditador: “Sois homens. Não sois máquina”. Este é o valor fundamental: buscar ampliar o tempo de vida como sendo o campo de desenvolvimento humano. Mas os replicantes eram homens tecnicamente programados para durarem pouco.

IHU On-Line - É possível estabelecer um limite entre o humano e o pós-humano? Que limite seria esse?
Giovanni Alves
- O pós-humano é o homem negado pelo movimento social do capital. É o hominídeo desumanizado que perdeu a capacidade de transcender o dado imediato, de ser livre e racional, qualidades imanentes do animal que trabalha e que através do trabalho se tornou homem. Não estamos tratando de limites quantitativos, mas sim qualitativos. Hoje, sob o hipercapitalismo, sem qualidade de vida humana, não temos tempo de vida para desenvolvermos nosso núcleo humano (o que não ocorre se estivermos submersos no trabalho estranhado). Por isso, nos desumanizamos irremediavelmente. A luta hoje é a luta pela redução da jornada de trabalho que assola nossa vida. Eis o tema de Blade Runner. Tempo de vida implica desenvolver os valores de liberdade e solidariedade e, acima de tudo, sermos homens e mulheres ativos (isto é, criativos) e não meramente contemplativos, paralisados pelo mero consumismo.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição