Edição 252 | 31 Março 2008

O desafio de traduzir Mallarmé

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

André Dick

O poeta e tradutor Júlio Castanõn Guimarães lança Brinde fúnebre e outros poemas, com traduções do poeta francês

O poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) é visto como um dos escritores mais herméticos da modernidade, situado entre o simbolismo e as vanguardas do início do século XX, entre as quais se incluem o futurismo e o dadaísmo. Se já é difícil de compreendê-lo na língua original, a tradução de sua obra se torna um desafio ainda maior. Mallarmé, igualmente, por meio de Un coup de dés e de seus poemas em prosa, levou adiante as conquistas na dissolução entre gêneros, como antes dele fizeram Baudelaire e Rimbaud, na ligação entre literatura e música, além de ter sido um dos teorizadores da poesia moderna, por meio de Divagations.
Para o poeta e crítico literário Júlio Castañon Guimarães, que está lançando uma reedição de suas traduções do francês, lançadas pela primeira vez em 1997, intitulada Brinde fúnebre e outros poemas (Rio de Janeiro: 7Letras, 2007), “em primeiro lugar a dificuldade está na própria compreensão dos textos”. Essa dificuldade, afirma ele, é “bastante grande; naturalmente, não diz respeito apenas a tradutores, mas a leitores em geral, de que fazem parte os tradutores”.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Castañon também aborda a importância das traduções de Mallarmé feitas pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari, visto como um dos precursores da poesia concreta dos anos 1950.

Castañon possui graduação, mestrado e doutorado em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2006-2007 fez estágio pós-doutoral no Centre d’Etudes de l’Ecriture et de l’Image, na Universidade Paris 7, e no Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Ele é autor, como poeta, de Poemas 1975-2005 (Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2005). Organizou Seleta de prosa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998), de Manuel Bandeira, e Sobre Augusto de Campos (Rio de Janeiro: 7Letras; Fundação Casa de Rui Barbosa), com Flora Süssekind. É especialista na obra de Murilo Mendes, tendo escrito sobre o poeta modernista sobretudo em Territórios/Conjunções (Rio de Janeiro: Imago, 1993). Também traduziu, entre outros, A câmara clara (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983) e Incidentes (Rio de Janeiro: Guanabara, 1988), ambos de Roland Barthes, Extraterritorial (São Paulo: Companhia das Letras, 1990), de George Steiner, e os três volumes de A vida e a obra de Sigmund Freud (Rio de Janeiro: Imago, 1989), de Ernest Jones.

IHU On-Line – Na sua opinião, é possível dividir a obra de Mallarmé em fases, como fez Mário Faustino , em sua conhecida página de poesia, ou acredita que elas se misturam? “Prose”, por exemplo, seria o seu poema mais hermético antes de Un coup de dés?

Júlio Castañon Guimarães – A divisão constitui uma forma de perceber algumas características mais gerais; tem de certo modo uma intenção didática, o que aliás tem a ver com a intenção da página de Mário Faustino, que era a de realizar um trabalho de divulgação. Mas muita coisa não se encaixa nessa divisão. É claro que há uma grande distância entre os poemas iniciais e os poemas ditos herméticos. No entanto, não só há muita coisa que escapa às partes da divisão, como também há elementos que transitam entre os diferentes momentos. Assim, independentemente de interpretações, o estudo das várias fases de redação dos poemas e das datas de publicação em revistas revela às vezes um percurso bem longo, que pode ultrapassar as tentativas de divisão.

IHU On-Line – O senhor juntou a “Toast funèbre” e “Prose”, dois poemas que deram título ao seu livro de traduções original, outros poemas, como “Soupir”, “Hommage” e o seminal “Épouser la notion”. Por que essa nova seleção? Esses poemas trariam aspectos relevantes em comum?

Júlio Castañon Guimarães – Talvez “Soupir” seja o que se distancie mais dos outros textos traduzidos, se encontrando mais próximo das preocupações iniciais, e estando assim longe das dificuldades dos demais. Vários fatores levaram à escolha – entre outros, o gosto pelos poemas e a viabilidade de tradução (às vezes, a gente chega à conclusão de que não conseguirá traduzir determinado texto de modo minimamente satisfatório). No caso de “Épouser la notion” havia ainda o interesse de – até onde sei – se tratar de um texto que não fora traduzido para o português.

Suspiro (Soupir)

Minha alma a tua fronte, irmã, onde devaneia
A estação outonal de manchas ruiva cheia,
E ao céu errante desse teu angélico olhar
Sobe, tal como num jardim de triste ar
Pelo Azul branco jato d’água, fiel, suspira!
- O Azul de Outubro pálido e puro que mira
Nos grandes tanques seu próprio longo langor
E deixa, na água morta em que o rubro estertor
Das folhas erra ao vento e cava um sulco frio,
Arrastar-se fulvo o sol, raio fugidio.


IHU On-Line – “Épouser la notion” lembra os experimentos de Mallarmé em Pour un  tombeau d’Anatole. Há uma aproximação entre esses projetos inacabados também com o Le livre?

Júlio Castañon Guimarães - Há de fato uma aproximação – sempre apontada pelos críticos – entre “Épouser la notion” e Pour un tombeau d’Anatole. Em primeiro lugar por serem manuscritos inconclusos, anotações, mas também por esses manuscritos permitirem a hipótese de projetos na mesma linha, ou seja, prováveis poemas. Já Le livre parece ser algo de outra natureza, não só pelos manuscritos serem completamente distintos, mas por constituírem projeto muito mais amplo do que um poema, envolvendo a própria potencialidade do objeto livro.

Fragmentos de “Épouser La notion”

10

conta – o encontro
- que se ela não está
lá – ele
onde      quando ele está
              ele está –
                      estou ou não?
                      sim      você está
                                mas ela
se ela não está –
                          com um

11

   olhar julga que ela
não existe –
                   é isto

[...]

14

   não pode ser menos
que um isto –
        - ela pode se
reduzir a isto certo
       é tudo,

       de qualquer
modo não have-
ria nada –
         acredito
         acredito

15

    e é preciso que não
haja nada para que
eu a estreite e
acredite nisto totalmente

              nada – nada –
                                tu

nem para outros
      nem para mim

   os outros é
tu e eu
   isto – cisão

IHU On-Line – Por que o senhor acredita que nesses poemas inacabados o verso de Mallarmé é tão quebrado e anti-musical, lembrando o trabalho que mais tarde faria Paul Celan,  um apreciador, aliás, do poeta francês, tão diferente da musicalidade de orquestra pretendida em Un coup de dés, por exemplo, ou no poema “Homenagem”, dedicado a Wagner?

Júlio Castañon Guimarães – No caso desses textos inacabados, talvez não fosse o caso nem de falar em verso. Parece-me que o que explica a conformação deles é o fato de se tratar simplesmente de um conjunto de anotações que talvez ainda não tivessem chegado ao estágio de esboço. Há até quem considere esse conjunto de textos como o rascunho de uma prosa. O mais provável, porém, na verdade o quase certo, é que se trate de anotações para um futuro poema. Então o que se tem como forma é um determinado instante de um texto em início de processo. Assim, o que ficou deles foge em muito à musicalidade, não só a orquestral de Un coup de dés, mas também a de algum outro tipo, talvez de natureza menos estrutural e mais cantante que se possa encontrar no restante da obra poética. Mas acho que sempre será inevitável diante desses esboços ter um horizonte de inquietação diante do que eles poderiam ter vindo a ser.

Homenagem (Hommage)

Silêncio de um tecido em seda cinerário
Mais que uma só dobra pode desdobrar
Sobre o móvel que a queda do grande pilar
Derroca com a memória em estado precário.

O nosso antigo embate triunfal do glossário
Em cifra, hieróglifos de que o milhar
Se ergue a ressoar com a asa um fremir familiar!
Guardem-no, para mim, melhor, em um armário.

Do ridente fragor original odiado
Por entre as claridades mestras viu-se alçado
Até um adro nascido para o simulacro,

Trompas fortes de baço ouro sobre velinos,
Richard Wagner, o deus, a irradiar ritual sacro
Que a tinta mal cala em soluços sibilinos.


IHU On-Line – Ao lado das suas traduções de Mallarmé, figuram, no Brasil, as dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos,  de Décio Pignatari  e de José Lino Grünewald.  Em que medida esses poetas foram importantes para a divulgação de Mallarmé em nosso cenário cultural?

Júlio Castañon Guimarães – Esses poetas foram de extrema importância. Antes de tudo porque pela primeira vez se traduzia um conjunto significativo, isto é, um grande número de poemas de Mallarmé. Até então, só havia traduções esparsas. Além disso fizeram também traduções dos poemas mais longos e fundamentais. Por fim, acompanharam essas traduções de comentários e estudos que sem dúvida contribuíram em muito não só para o conhecimento da obra de Mallarmé, mas também para sua inserção no pensamento crítico.

IHU On-Line – Há, em seus livros, muitos comentários dos poemas traduzidos e sobre suas escolhas. Quais são as dificuldades que o trabalho de Mallarmé impõe para a tradução?

Júlio Castañon Guimarães – Em primeiro lugar, a dificuldade está na própria compreensão dos textos. E essa é uma dificuldade bastante grande; naturalmente, não diz respeito apenas a tradutores, mas a leitores em geral, de que fazem parte os tradutores. Talvez no caso do tradutor haja certas peculiaridades no esforço de compreensão, tendo em vista que esta não se basta, ela tem uma conseqüência, uma continuidade, no trabalho de transposição de uma língua para outra. Sobretudo se pensarmos, com Meschonnic,  como a tradução não é uma questão lingüística, mas literária (para usar uma forma bem simples), essa transposição envolve uma concepção literária dos textos. Na verdade, as dificuldades do texto mallarmeano não estão apenas nos poemas; muitos de seus textos em prosa são de extrema dificuldade, de dificuldade equivalente para a tradução. É claro que é necessário procurar resolver as dificuldades de compreensão do texto, mas isso não é suficiente.

IHU On-Line – O senhor organizou, com Flora Süssekind,  em 1992, na Fundação Casa de Rui Barbosa, possivelmente a maior exposição sobre Mallarmé no Brasil. O que ela apresentava de mais especial? É possível fazer com que o leitor atual se interesse mais por Mallarmé, menos lido ainda que, por exemplo, Baudelaire  e Rimbaud,  outros poetas franceses da modernidade significativos?

Júlio Castañon Guimarães – A exposição não era sobre Mallarmé simplesmente, mas sobre Mallarmé no Brasil. Ela incluía algumas edições de obras de Mallarmé, como uma primeira edição de Les mots anglais e uma edição ainda em vida dele de L’après midi d’un faune com as ilustrações de Manet – essas edições fazem parte de bibliotecas brasileiras. Incluía ainda edições brasileiras, poemas e livros com referência ao poeta, revistas e jornais brasileiros desde fins do século XIX em que foram publicados textos de Mallarmé e textos sobre ele. Além disso, havia poemas de autores brasileiros das mais diversas tendências ao longo do século XX com alguma marca de Mallarmé. Em suma, a exposição procurava mostrar por meio de um amplo conjunto de documentos a existência de Mallarmé no Brasil. Quanto ao fato de ele ser menos lido, isso me parece natural e provavelmente essa situação não se modificará; também em francês, ele é menos lido que os outros. Naturalmente, se há uma leitura mais reduzida quantitativamente, a questão Mallarmé, poética e teórica, é fundamental.

IHU On-Line – Mallarmé possui uma extensa bibliografia de estudos. O senhor poderia destacar aqueles que considera mais relevantes?

Júlio Castañon Guimarães – Como você mesmo já observa, a bibliografia sobre Mallarmé é imensa. Assim, parece-me difícil destacar alguma coisa de uma maneira genérica; melhor dizendo, para destacar alguma coisa é necessário primeiro ver pelo menos aproximadamente qual objetivo mais à vista – se uma abordagem mais geral, se uma leitura introdutória. Falando então do ponto de vista do tradutor, que precisa muito de um entendimento dos componentes dos poemas, eu lembraria alguns trabalhos que estudam os poemas, um a um, procurando destrinchar elementos como o vocabulário e a intrincada sintaxe. Eu mencionaria os trabalhos de Emilie Noulet, Paul Bénichou, Bertrand Marchal. Mas acho importantes também algumas edições da própria obra de Mallarmé, bem anotadas, como a preparada por Lloyd Austin, disponível em edição de bolso, e sobretudo a nova edição da Plêiade, com nova organização e novos materiais.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição