Edição 428 | 30 Setembro 2013

Manifestações expõem fragilidades e limites do projeto constitucional-republicano de democracia

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Redação

“O Facebook era uma miríade de opiniões humildes, ironias vagas, desconfianças tenebrosas e certezas absolutas”

Mozart Teixeira é morador de Brasília, estuda biblioteconomia na Universidade de Brasília - UNB e faz estágio no Senado Federal.

Confira o depoimento.

 

A violência na repressão policial aos protestos do dia 13/06 desencadeou em uma insatisfação que chegou até as portas do Congresso Nacional. Foi em 20/06 que Brasília viu seu terceiro e maior protesto, como não se via, talvez, desde 1992. Nunca me esquecerei do que ocorreu naquele dia.

Por volta das 17h, no meu estágio na biblioteca do Senado, já era notória a inquietação no ar, mas só ao sair do expediente em direção ao protesto é que fui entender a real gravidade da situação. Andei sozinho a pé no trecho entre a parada de ônibus localizada ao lado do Palácio do Planalto e os ministérios. Eram centenas de metros de tropas da polícia, o que me deixou tenso. Mas nenhum policial mexeu comigo. Não me revistaram, nada. Calmamente, cheguei ao protesto. 

Por volta de 18h20min, cheguei ao gramadão em frente ao Congresso Nacional e, realmente, nunca vi tanta gente na minha vida. Nesse momento, o clima era leve, festivo. Rapidamente constatei que não era possível encontrar bandeiras de partidos na multidão. Isso deixa muitas pessoas preocupadas. Algumas falavam em teorias da conspiração, em fascismo, em golpe.

Havia dias eu tinha percebido que, daquilo ali, qualquer partido sonharia em se apossar. Na segunda-feira da mesma semana, três dias antes da manifestação do dia 20, um militante vestido com a camiseta de um partido tentou falar com a polícia em nome da manifestação. Foi prontamente desacreditado e expulso. Tenho certeza de que havia outros partidos, de todo tipo de orientação ideológica, querendo tentar o mesmo. Eu fiquei satisfeito, porque tenho o receio dos protestos se mercantilizarem. De pessoas receberem cachês de partidos para usar camisetas e empunhar bandeiras nesses protestos. Basta pensar em como as coisas são nas eleições. Daqui a pouco estão até distribuindo santinho. Enfim... 

Cheguei sozinho, passei horas perambulando pelo gramado do Congresso e no Eixo Monumental, principalmente no lado do Palácio Itamaraty. Ali, o fluxo de pessoas vindas da rodoviária e do Museu Nacional para o protesto chamava atenção, por ser aparentemente interminável. Muito bonito naquele momento, mas também um prelúdio dos problemas que estavam por vir.

Anoiteceu. Alguns amigos chegaram da Universidade de Brasília (UnB) e nos encontramos embaixo da bandeira do estado de Minas Gerais. Nos dirigimos ao gramado e nos unimos àquele coro colossal de palavras de ordem e frases de efeito, do tipo "policial, pai de família, não defenda essa quadrilha!", "Copa do Mundo, eu abro mão! Quero dinheiro pra saúde e educação!", "Brasil, vamos acordar! Um professor vale mais que o Neymar!". Alguns dizem que os protestos se pautam em conceitos vagos e amplos demais. Eles tentam determinar quais são as pautas comentando o que se grita nas ruas. Não entendem que nenhuma multidão de dezenas de milhares de pessoas se expressa através de discursos elaborados, declamados em uníssono. 

A característica mais marcante ali foi o caráter cosmopolita da manifestação. Lá havia pessoas de todo tipo, que entre si discordavam com frequência: sobre se deviam ou não (tentar) invadir o Congresso; depredar ou não o patrimônio público; insultar, ou até agredir, ou não a polícia; se você devia ou não correr ao chegarem as bombas de gás lacrimogêneo. A maioria parecia tender a um certo pacifismo, mas os elementos belicosos acabam, em algum momento, sendo mais ruidosos. E realmente se fizeram notar. 

E aí o caos deu as caras. 

Metade das bandeiras dos estados foram roubadas ou queimadas. Eu mesmo, junto com alguns amigos, me peguei discutindo aos berros com duas garotas que queriam queimar uma delas. Agora, em retrospecto, acho que isso foi uma grande perda de tempo. Lamento as bandeiras terem sido queimadas, discordo de quem o fez, mas percebo que não estou em posição de julgar qual a forma mais ou menos apropriada de protestar contra tantos motivos de descontentamento que estão nas profundezas há muito tempo, e só agora vieram à tona. 

O gás foi se acumulando em grande quantidade a poucos metros do Congresso, entre as bandeiras e o espelho d'água. A multidão segurou a onda o quanto pôde. Ao nosso lado, pedaços de lixo pegavam fogo. Em dado momento a situação ficou insuportável, confesso que até entrei um pouco em pânico. Então alguém gritou "vamos pro Itamaraty!". Se algum dia eu descobrir que isso partiu de algum agente de segurança pública, não ficarei nem um pouco surpreso. Mas também não vou pôr minha mão no fogo por isso. Um cesto tão grande dificilmente passa sem ter alguma maçã podre. A multidão subiu em direção ao Itamaraty fugindo do gás. Algumas pessoas pareciam ter mesmo intenção de invadir. E a gente foi atrás, pra ver no que ia dar. 

Houve corre-corre. Muitas bombas caindo, barulhos de tiro de borracha. Nos abrigamos atrás de uma Kombi, para nos proteger mais do corre-corre da multidão do que de qualquer outra coisa. Levou alguns minutos para percebermos que era uma zona aquilo ali, mas não era o fim do mundo. De repente até começamos a nos habituar com o gás lacrimogêneo. 

Às vezes me pergunto se não é esse o problema, de nos acostumarmos com coisas demais. Os paulistanos e cariocas, com o Comando Vermelho, o Primeiro Comando da Capital (PCC), arrastões e milícias ao longo dos anos, será que não estão ficando habituados ao quebra-quebra? Será que não estão perdendo o medo de barulho de tiro? Para um cara que já vivenciou tiroteio em túnel ali, colado com Copacabana, qual o real significado de umas bombinhas de gás lacrimogêneo e umas balas de borracha? 

A tentativa de invadir o Palácio do Itamaray falhou. Achei estranho. Já viram aquele lugar? Um espelho d'água raso e pouco extenso, vidro pra todo lado. Ouvi dizer que conseguiram fazer uma pichação na área externa. Achei estranho, mas também desconheço a tática usada pela segurança para impedir as pessoas de entrarem ali. Respirei aliviado. Do lado de fora, uma barraca que sobrou de algum desses eventos "pão e circo" da Esplanada dos Ministérios foi atingida pelas chamas que atearam em uma caçamba de entulho cheia de lixo. Mas pelo menos não era a tela Paz e Concórdia, de Pedro Américo, que estava pegando fogo dentro do palácio. 

As coisas foram ficando gradualmente mais calmas. A massa antes concentrada no gramadão se dispersou. Alguns ambulantes aproveitavam pra vender água, refrigerante, cerveja e comida. Pessoas compartilhavam vinagre com quem pedia a todo momento. A multidão oscilava entre momentos de simpatia e antipatia com os PMs, que, inclusive, levaram uma faixa com palavras de apoio à manifestação – um de meus amigos entrou no espelho d'água pra ajudar a segurar a faixa e mostrá-la, para a multidão e para a própria polícia em momentos alternados. 

A multidão ficou em um vai-e-volta por causa do gás, até dispersar de vez. Na confusão mental daquele espetáculo babilônico todo, me descuidei e deixei cair meu celular, que já estava sem bateria de tantos telefonemas e mensagens que iam e vinham a todo momento. Na saída, paramos pra catar alguns restos de bomba e encontramos uma bala de borracha. Paramos pra ver como ficou o Itamaraty no fim da manifestação. Acabamos conversando com dois PMs que, muito cordiais, explicaram que concordavam com as reivindicações dos manifestantes, entendiam seus motivos e compartilhavam muitas das suas opiniões e interesses gerais. Disseram também que acharam linda a manifestação da segunda-feira anterior, enquanto que, a do dia 20, um fracasso total. 

Cheguei então em casa e abri o Facebook. Vi que as informações não paravam de chegar. Era uma miríade de opiniões humildes, ironias vagas, desconfianças tenebrosas e certezas absolutas. Discussões, textos e textos e textos, vídeos e vídeos e vídeos. Com tudo que surgiu na rede relativo a esse assunto naqueles primeiros dez dias, um sujeito sério e analítico pode se ocupar por muito tempo, talvez até o resto do ano. Esses protestos não são como os da Turquia, aonde há um alvo pontual para a insatisfação popular. A presidente Dilma Rousseff até pode estar com a aprovação em queda, mas passa longe de ser um Erdogan (o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan). Há quem fale em impeachment. Eu interpreto isso um pouco como um eco de 1992; aquele não foi um ano qualquer e eu, que na época ainda nem sabia ler, ainda me lembro daquela situação maluca de inflação e insegurança total relativa aos rumos do país. E de como tudo parecia estar bem a partir do momento em que o então presidente Fernando Collor de Mello tinha sido botado pra correr.

Pra mim é clara a relação com o mensalão (esquema de corrupção envolvendo pagamentos a parlamentares) e uma decepção. Duas décadas separam esses dois momentos emblemáticos (impeachment de Collor e mensalão) e muitos dos agentes políticos da primeira época são os que estão aí hoje. O Collor sofreu impeachment em 1992, foi execrado pela mídia e opinião pública, mas hoje está no Senado. A política brasileira às vezes toma rumos que até o capeta duvida, só pra depois voltar ao que era antes, como um grande hímen complacente que não cede nunca.

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