Edição 244 | 19 Novembro 2007

O humanismo do Padre Antônio Vieira

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Atual ocupante da cadeira número 18 da Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier escreve sobre os ideais humanistas que permearam a vida e a obra de Antônio Vieira, no Brasil Colônia. O percurso do texto que apresentamos a seguir começa nos primeiros tempos da nova nação, em que Vieira vai encontrar e criticar as incoerências da Metrópole em sua ação colonizadora. Daí, segue através da participação ativa do jesuíta no combate aos invasores holandeses, e sua ação junto aos judeus e cristãos-novos que aqui vieram viver. E finaliza lançando luzes sobre a inspiração profética de Vieira a respeito das questões políticas e religiosas, que séculos adiante, precisamente no início do século XX, atingiriam a população judaica vivente no Brasil, estendendo-se até o estabelecimento do Estado de Israel.

Portugal era a pátria do padre Antônio Vieira, “esse canteirinho da Europa, cantinho de terra pura e mimosa de Deus”, como definiu num sermão pregado em Roma. Mas o Brasil estava inserido na pátria maior, por cuja glória combatia Vieira, e ele fazia questão de alardear, numa carta de 1673, sua fidelidade “ao Brasil, a quem, pelo segundo nascimento, devo as obrigações de pátria”. Numa carta escrita em seus últimos anos de vida, ele se refere ao Brasil como “essa melhor jóia que Portugal tem fora das correntes do Tejo”.

Mas Vieira nunca deixou de ser altamente crítico do comportamento da metrópole em relação à colônia. Em 1641, pregando na Bahia diante do vice-rei, o marquês de Montalvão, reclamou com dureza: “Tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar”.

Vale transcrever a parte principal deste sermão, não só pela ousadia de Vieira diante do vice-rei, como por sua encarniçada defesa do Brasil:

“Perde-se o Brasil (digamo-lo em uma palavra) porque alguns Ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar nossos bens... El-rei manda-os tomar Pernambuco e eles contentam-se com o tomar. Este tomar o alheio é a origem da doença. Toma nesta terra o ministro da justiça? Sim, toma. Toma o ministro da república? Sim, toma. Toma o ministro da fazenda? Sim, toma. Toma o ministro do Estado? Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos são atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premie; e faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado”.

Faz uso então Vieira de uma admirável metáfora para tornar sua exposição não só mais clara e visual, mas também mais contundente:

“Com terem tão pouco do Céu os ministros que isto fazem temo-los retratados nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio daquela Bahia, lança uma manga ao mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de água, e depois que está bem cheia, depois que está bem carregada, dá-lhe o vento e vai chover daqui a trinta, daqui a cinqüenta léguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na Bahia tomaste essa água, se na Bahia te encheste, por que não choves também na Bahia? Se a tiraste de nós, por que a não despendes conosco? Se a roubaste a nossos mares, por que a não restituis a nossos campos? Tais como isto são os ministros que vêm ao Brasil — e é fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da Linha, onde se diz que também refervem as consciências, e em chegando, verbi gratia, a esta Bahia, não fazem mais que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos, mas sabidos), e ao cabo de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a água que era nossa, abrem as asas ao vento, e vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madri. Por isto nada lhe luz ao Brasil, por mais que dê, nada lhe monta e nada lhe aproveita, por mais que faça, por mais que se desfaça. E o mal mais para sentir de todos é que a água que por lá chovem e esperdiçam as nuvens não é tirada da abundância do mar, como noutro tempo, senão das lágrimas do miserável e dos suores do pobre, que não sei como atura já tanto a constância e fidelidade destes vassalos. O que o Brasil dá, Portugal o leva. Tudo o que der a Bahia, para a Bahia há de ser: tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar”.

A pregação do sermão do bom ladrão

Em 1655, já empenhado na campanha missionária que o manteria durante nove anos no Estado do Maranhão e do Grão-Pará, Vieira vai a Portugal lutar por medidas que pusessem um fim ao cativeiro dos indígenas. Aproveita a ocasião para pregar em Lisboa o Sermão do bom ladrão, diante de D. João IV e sua corte. Embora no púlpito da Igreja da Misericórdia, Vieira começa dizendo que a Capela Real seria o local mais adequado para o seu discurso, porque pretendia tratar de questões ligadas à majestade régia e não à piedade. Podemos bem imaginar o desconforto do auditório - formado por juízes, ministros, conselheiros da coroa e os mais altos dignitários do reino forçados a ouvir Vieira falar obsessivamente de ladrões e ladroeiras. Já a tese inicial é implacável: “Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. O que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno. Prosseguirei com tanto maior esperança de produzir algum fruto, quanto vejo enobrecido o auditório de tantos ministros de todos os maiores tribunais, sobre cujo conselho e consciências costumam se descarregar a dos reis”.

Depois de citar a Bíblia, Sêneca e Santo Agostinho, Vieira vai direto ao assunto, apoiado em São Basílio: “Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, e espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados. Estes furtam e enforcam. Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens viu que uma grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e começou a bradar: lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos... Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter roubado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul ou ditador por ter roubado uma província?”.

Em defesa do Brasil explorado

Mais adiante, no mesmo sermão, Vieira, depois de uma brilhante demonstração de pirotecnia verbal, fala especificamente do Brasil explorado: “Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente, que é o seu tempo, colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quanto eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grande serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas... Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele”.

E Vieira encerra, com endereço certo, visando ao próprio rei: “Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: ‘Principes tui socii furum’: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por quê? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo”.

Resposta ao procurador do Maranhão

Sete anos depois deste flamejante sermão, já de volta a Portugal e prestes a enfrentar o processo que o Santo Ofício lhe movia, Vieira redige a Resposta aos capítulos que deu contra os religiosos da Companhia, em 1662, o procurador do Maranhão Jorge de Sampaio. No documento, especifica as causas da insolvência do Maranhão: “São os interesses dos que governam, porque as rendas dos dízimos de Vossa Majestade em todo aquele estado chegam a montar seis até oito mil cruzados, os três dos quais toma o Governador inteiramente e no melhor parado, e na mesma forma se pagam de seus ordenados os procuradores e os oficiais da fazenda, com que vem a ficar muito pouco para as despesas ordinárias das igrejas, vigários, oficiais de milícia e soldados, aos quais se não paga nem a quarta parte do que lhes pertence, com que é força que busquem outros modos de viver e se sustentar, que muitas vezes são violentos, e todos vêm a cair às costas do povo. Assim também levam consigo os ditos governadores muitos criados, que provêm nos melhores ofícios, e eles com confiança no poder de seu amo os servem com insolência, dominando não só as pessoas, mas as fazendas, de que se recolhem a Portugal ricos e os povos ficam despojados”.

Incansável defesa do Brasil

No ano de sua morte, 1697, envia Vieira uma carta da Bahia em que assinala: “Das coisas públicas não digo a Vossa Mercê mais do que ser o Brasil hoje um retrato e espelho de Portugal em tudo o que Vossa Mercê me diz dos aparatos de guerra sem gente nem dinheiro, das searas dos vícios sem emenda, do infinito luxo sem cabedal e de todas as outras contradições do juízo humano”.

Mas não foi apenas de sua pátria-mãe, Portugal, que Vieira defendeu o Brasil. Um inimigo muito insidioso aprestava-se a conquistar o Brasil a partir de uma invasão da Bahia: os holandeses. Quando os franceses tomaram Dunquerque  aos espanhóis em 1645, Portugal inteira vibrou e comemorou - menos Vieira que, hábil estrategista, previu logo as terríveis conseqüências do ocorrido. Não mais ameaçados por ataques dos espanhóis a partir de Dunquerque, os holandeses passavam a ter várias armadas livres para se aventurar de novo contra o norte do Brasil. Quem relatou com riqueza de detalhes a participação de Vieira neste importante episódio foi o historiador inglês Robert Southey :

“Previsto havia sido o perigo que ameaçava a Bahia, sendo dele advertido o rei de Portugal pelo jesuíta Antônio Vieira, homem extraordinário não só pela eloqüência, mas em todas as coisas. Cantara-se na Capela Real de Lisboa um Te Deum pela tomada de Dunquerque pelos franceses, e tinham os ministros e principais personagens da corte concorrido por esse motivo ao beija-mão em grande gala. Terminada a cerimônia, disse Vieira a el-rei que ia dar-lhe por esta ocasião os pêsames ali fora. Perguntou-lhe D. João como assim. ‘Porque’, respondeu ele, ‘até agora têm-se visto os holandeses obrigados a manter nas águas de Dunquerque uma esquadra, que lhe assegurasse a passagem do canal aos seus próprios navios; aliados aos franceses, já disto não carecem, e a força tornada assim disponível será empregada contra nós, podendo agora Sigismundo Shoppe, que pela segunda vez governa Pernambuco, realizar a ameaça feita no tempo de Diogo Luís de Oliveira, isto é, assenhorear-se da Bahia sem perder uma só gota de sangue, só com impedir-nos por meio da sua armada os suprimentos. Mas, apontando o perigo, não se via Vieira embaraçado em inculcar o remédio. Dizendo-lhe el-rei: ‘E que vos parece que façamos?’”.

A capacidade de organização de Vieira

Aqui, o jesuíta mostra outra faceta notável: mais do que o seu grande tino comercial, uma imensa capacidade de organização. Southey transcreve as próprias palavras de Vieira: “Que em Asmterdã se oferecia, por meio de Jerônimo Nunes [judeu, agente do governo luso], um holandês muito poderoso a dar quinze fragatas de trinta peças, fornecidas de todo o necessário, e postas em Lisboa até março por vinte mil cruzados cada uma, que fora o preço da fragata Fortuna que veio a Portugal; e tudo vinha a importar trezentos mil cruzados e que esta quantia se podia tirar facilmente lançando Sua Majestade um leve tributo sobre a frota, que poucos dias antes tinha chegado, opulentíssima de mais de quarenta mil caixas de açúcar, o qual no Brasil se tinha comprado muito barato, e em Lisboa se vendia por subidíssimo preço; e pagando cada arroba um tostão ou seis vinténs, bastaria para fazer os trezentos mil cruzados”.

A proposta de Vieira não vingou porque os ministros consultados alegaram que “aquele negócio estava muito cru”. Seis meses depois, o rei manda chamar Vieira no meio da madrugada e diz: “Sois profeta; ontem à noite chegou uma caravela da Bahia e traz por novas ficar Sigismundo fortificado em Taparica. Que vos parece que façamos?”. Vieira respondeu: “O remédio, senhor, é muito fácil. Não disseram os ministros a Vossa Majestade que aquele negócio era muito cru? Pois os que então o acharam cru, cozam-no agora”. O Conselho de Ministros finalmente admitiu a importância de socorrer a Bahia, mas alegou que não havia meios de conseguir o dinheiro, diante do que Vieira respondeu indignado: “Basta, senhor, que a um rei de Portugal hão de dizer os seus ministros que não há meio para haver trezentos mil cruzados com que acudir ao Brasil, que é tudo quanto temos! Ora, eu com esta roupeta remendada espero em Deus que hoje hei de dar a Vossa Majestade toda esta quantia”.

A tenacidade de Padre Vieira

Vieira foi pedir socorro a um mercador judeu que havia conhecido na Bahia, Duarte da Silva; este, com o apoio de outro judeu, Rodrigues Marques, conseguiu levantar o dinheiro necessário. Seu nobre gesto não impediu que os dois fossem depois perseguidos pela Inquisição, embora valesse muito a Duarte da Silva a proteção do rei. Assim foi que, graças às valiosas ligações de Vieira com os cristãos-novos, D. João IV pôde mandar ao Brasil em 1647 o tão necessitado socorro militar. Os holandeses conquistaram Pernambuco e ali se instalaram por muito tempo. Mas não conseguiriam a Bahia e, neste último esforço desesperado, foram baldados pela tenacidade do Padre Antônio Vieira. Sem ele, a História do Brasil poderia ter sido escrita de outra maneira bem diversa. Segundo João Lúcio de Azevedo, triunfou ele duplamente nesta ocasião: “Deu cheque aos ministros, que lhe contrariavam muitas vezes os intentos, e abriu caminho para o seu projeto das companhias de comércio”.

Antes de regressar para Portugal em 1641, Vieira já possuía uma larga vivência do problema dos judeus e cristãos-novos perseguidos pelo Santo Ofício até mesmo nas lonjuras do Brasil, através das famigeradas Visitações (ele se encontrava na Bahia por ocasião da segunda). A presença dos judeus no Brasil data antes mesmo da descoberta em 1500. Como assinalou o historiador Sérgio Paulo Rouanet , “o converso Gaspar da Gama, fluente em línguas orientais, assessorou Vasco da Gama (1468 (?)-1524) e a monarquia portuguesa na aventura das grandes navegações. Mais tarde, ele acompanhou Pedro Álvares Cabral 1467(?)-1520(?) em sua expedição às Índias, e com isso podemos dizer que um judeu foi co-descobridor na Terra de Vera Cruz”. Com efeito, Gaspar da Gama, conhecido como “o judeu da Índia”, que sabia falar o árabe e os dialetos hindus da costa do Malabar, foi um dos primeiros quatro homens a pisarem na terra do Brasil, a mando de Cabral. (Além dele, desembarcaram Nicolau Coelho, que, como Gaspar, acompanhara Vasco da Gama à Índia, um grumete da Guiné e um escravo de Angola. Eram, pois, juntos no mesmo escaler, quatro homens dos três continentes conhecidos na época e que sabiam falar sete línguas.)

Coincidentemente, a nação hebraica veria o seu destino ser decidido pelas mãos de um brasileiro, Osvaldo Aranha (1894-1960), que teve uma atuação determinante na criação do Estado de Israel em 1948, um antigo sonho que trezentos anos antes já fora profetizado pelo padre Antônio Vieira.

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