Edição 241 | 29 Outubro 2007

A resiliência desconstrói crenças pessimistas

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IHU Online

O que fazer quando nos deparamos com situações de sofrimento? “É preciso buscar ajuda no ‘outro’, ter sabedoria para valorizar as relações e predispor-se a compartilhar os desafios”, aconselha Maria Angela Mattar Yunes, psicóloga e doutora em Educação. Para ela, manter relações afetivas com outras pessoas é importantíssimo para se tornar resiliente. No entanto, superar adversidades não significa que “o indivíduo saia das crises ileso”, explica. E destaca que resiliência tem “tudo a ver com presenças significativas, com solidariedade, com interações de seres humanos verdadeiramente humanos que formam comunidades saudáveis e acolhedoras”. Essas e outras declarações você confere na entrevista a seguir, concedida por e-mail, à IHU On-Line. 



Yunes é graduada em Psicologia pelo Instituto Unificado Paulista, mestre em Developmental Psychology, pela University of Dundee, e doutora em Psicologia da Educação, pela Pontifícia Universidade de São Pulo (PUC-SP). Atualmente, a professora leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordena o Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua da FURG (CEP-RUA/FURG) e do Núcleo de Estudos e Atenção às Famílias da FURG (NEAF).

IHU On-Line -  Como se dá a resiliência na família, uma vez que a resiliência é íntima e pessoal, mas ao mesmo tempo não se é resiliente sozinho?
Maria Angela Mattar Yunes -
Na minha concepção, resiliência não é um fenômeno psicológico meramente individual. As pesquisas mais recentes têm indicado que a resiliência é relativa e que suas bases são tanto constitucionais como ambientais.O “grau” de resistência às situações de estresse não tem quantidade fixa, e sim varia de acordo com as circunstâncias. De acordo com as pesquisas do nosso grupo, resiliência refere-se a um conjunto de processos de vida que possibilitam a superação de adversidades, o que não significa que o indivíduo saia das crises ileso, como sugeria antigamente o termo precursor de resiliência: a invulnerabilidade. Quando se fala de resiliência em família, temos que o sistema de crenças do grupo familiar diante da situação de crise é que poderá ser o sustentáculo dos outros processos de enfrentamento. Algumas famílias, diante de problemas, organizam-se acreditando que a situação de dificuldade é um desafio administrável. Assim, confrontam apenas o que é possível e aceitam o que não pode ser mudado. Buscam explorar o que aconteceu: Como aconteceu?  O que pode ser feito? E, muito importante, toda a família mantém um olhar positivo, otimista, de esperança: “a esperança é para o espírito o mesmo que o oxigênio é para os pulmões” (assim nos diz Froma Walsh, uma pesquisadora americana com quem tive o prazer de trabalhar em Chicago durante o meu doutorado).

Concordo com o que você diz, não há resiliência sozinha. Resiliência é um fenômeno relacional, ou seja, as outras pessoas são importantíssimas quando nos deparamos com situações de sofrimento, mas é preciso buscar ajuda no “outro”, ter sabedoria para valorizar as relações e predispor-se a compartilhar os desafios. Resiliência tem tudo a ver com presenças significativas, com solidariedade, com interações de seres humanos verdadeiramente humanos que formam comunidades saudáveis e acolhedoras. Somente nestes contextos é que se pode pensar em resiliência, do contrário, constatamos o abandono ou descaso individual e social.

IHU On-Line - Que trabalhos são desenvolvidos com as famílias para que elas desenvolvam a capacidade de superar traumas e crises internas?
Maria Angela Mattar Yunes -
Nossos trabalhos de pesquisa e intervenção no Núcleo de Estudos e Atenção às Famílias da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, no extremo sul do Rio Grande do Sul, têm sido elaborados para atingir não apenas as famílias, mas também os agentes sociais que têm contato direto com essas famílias. São eles: agentes comunitários de saúde, professores do ensino fundamental e médio, conselheiros tutelares, trabalhadores de programas de atendimento às vítimas de abuso sexual, profissionais do sistema de atendimento jurídico gratuito, entre outros. Não adianta pensar em fortalecer pessoas se não houver uma rede de apoio social instrumentalizada e com recursos para atender as prioridades das populações.  Por isso, trabalhamos com programas psicossociais e educacionais de reflexão e reunimos as pessoas interessadas em grupos de diálogos, escuta, orientação, informação etc. Isso vem sendo feito nas escolas, nas instituições de abrigo, nos bairros, no Fórum, no Serviço Sentinela, entre outros. A meu ver, o grande benefício do conceito de resiliência foi, e tem sido, trazer para a Psicologia e, conseqüentemente, para a Educação, a ênfase nos aspectos virtuosos e saudáveis dos seres humanos. A resiliência ajuda a desfocar o grande filão da área psi, que tradicionalmente são as doenças mentais e psicopatologias. Pesquisar e pensar resiliência transfere o foco para a saúde e para o bem estar subjetivo e coletivo. Deixamos de olhar os desajustes e falhas dos indivíduos e grupos, para acreditar e valorizar as competências (no sentido amplo), as possibilidades e potencialidades intelectuais, afetivas, sociais e culturais. Resiliência é um conceito otimista que ajuda a desconstruir crenças pessimistas sobre populações que vivem situações de risco e de extrema vulnerabilidade social e ambiental. Em geral, estes grupos são pensados a partir de um pensamento socialmente dominante, e sendo assim são muito desacreditados. Pensar estes grupos sob a ótica da resiliência significa reconhecer as estratégias e as habilidades de sobrevivência destas comunidades que merecem ser pensadas a partir de suas reais necessidades.

IHU On-Line - O fator econômico-social tem influência na superação de traumas? Por quê?
Maria Angela Mattar Yunes -
Pobreza é um fator de risco reconhecido por pesquisadores nacionais e internacionais. Entretanto, é preciso problematizar essa constatação no cenário brasileiro. Na realidade, pouco se sabe sobre os processos e a dinâmica de funcionamento de famílias pobres, mas alguns estudos brasileiros demonstram que estas famílias mostram-se, muitas vezes, hábeis na tomada de decisões e na superação de grandes desafios, evidenciando uma unidade familiar e um sistema moral bastante fortalecido diante da proporção das circunstâncias desfavoráveis de suas vidas. As condições indignas e a precariedade das contingências econômica e social, que castigam a maioria das famílias brasileiras, podem ser constatadas em qualquer cidade do Brasil, seja capital ou interior. Ou seja, as condições de pobreza, podem realmente afetar de forma adversa o desenvolvimento de crianças, adolescentes e adultos, mas, isso não pode ser considerado regra sem exceção, pois, muitas vezes, alguns grupos desenvolvem processos e mecanismos que garantem sua sobrevivência física e cultural com muita competência. Assim, muitos grupos familiares que vivem situações de risco cumprem seu papel de proteção e cuidado de si mesmo e de seus filhos e não são inevitavelmente “disfuncionais”.

IHU On-Line - Por que a senhora diz que é necessário ter cautela ao tratar de resiliência em famílias pobres? Como esses três temas: pobreza, família e resiliência se relacionam? 
Maria Angela Mattar Yunes -
É preciso ter cautela com o uso adjetivado do fenômeno da resiliência. Temo que resiliência venha a ser mais um rótulo classificatório gerado pelos estudos da Psicologia e que com isso provoque instrumentos de medidas de resiliência. Se admitirmos que há pessoas resilientes, ou “mais resilientes”, de alguma maneira estaremos sugerindo que há também pessoas não-resilientes ou “pouco resilientes”. Será que isso é pertinente? Será que nós, psicólogos, devemos colaborar com mais essa categorização quantificada de fenômenos humanos inquantificáveis? Já temos os inteligentes, os agressivos, os sociáveis etc. Muitos autores já se posicionaram de maneira crítica sobre o uso adjetivado da resiliência. Na minha tese de doutorado, realizada sob orientação da Dra. Heloisa Szymanski, da PUC-SP, e defendida em 2001, nós construímos um discurso contrário a esta “coisificação” da resiliência. Sou adepta de uma visão de resiliência como fenômeno humano que se refere a sistemas e processos de “adaptação” das pessoas em situações de crises. Não me refiro à adaptação no sentido conformista, mas no sentido de movimento, de busca de bem-estar e de melhor qualidade de vida. Quem de nós não vive dificuldades e crises? Quem de nós não procura solucionar os problemas da melhor maneira possível, possível na ótica de cada pessoa. Estes processos de resiliência fazem parte da nossa condição humana e estão presentes ao longo do ciclo de vida, do desenvolvimento de todos nós, seres humanos. Tais sistemas e processos possibilitam que indivíduos, grupos e comunidades enfrentem dificuldades sem apresentar sofrimento psíquico no sentido psicopatológico. Estas reflexões que apresento sucintamente não são apenas minhas elaborações pessoais, mas são resultantes de estudos de outros pesquisadores brasileiros e também de pensadores, canadenses, americanos e europeus. 

IHU On-Line - A senhora afirma que a resiliência deve ser estudada com base em processos chaves sobre três domínios compreendidos na perspectiva bioecológica de desenvolvimento humano. Como se dá esse estudo? Que diferenças ele apresenta?   
Maria Angela Mattar Yunes -
A diferença entre estudar resiliência enquanto conjunto de processos e na ótica da abordagem bioecológica é fundamentalmente conceitual e epistemológica e nos conduz a escolhas metodológicas de cunho qualitativo. Muitas destas pesquisas qualitativas, com diferentes composições de estratégias e procedimentos, têm sido realizadas por diferentes grupos aqui no Rio Grande do Sul e em outros estados. Estes processos não devem ser considerados pressupostos para uma definição “engessada” de resiliência, pois o fenômeno pode apresentar-se de diferentes formas e possibilidades em cada contexto. Atualmente, há uma constante tentativa dos pensadores para colaborar teórica e metodologicamente e esclarecer algumas das inúmeras controvérsias que norteiam este fascinante construto.

IHU On-Line - Quais são as principais ações, atualmente, que fazem com que as famílias se desestruturem?
Maria Angela Mattar Yunes -
Não aplico e não concordo com o termo “família desestruturada”. Essa é uma desconstrução terminológica pela qual  nosso grupo de pesquisa vem lutando durante os projetos de intervenção junto aos profissionais sociais. O que seria uma família que se desestrutura: uma família que se separa? Ou uma família que não compõe o modelo nuclear burguês formado por pai, mãe, filhos? É importante relevar que toda e qualquer família tem uma estrutura (que pode não corresponder ao modelo nuclear, mas que pode funcionar efetivamente e garantir o desenvolvimento de seus membros, e é isso que importa!) e tem uma organização, por mais caótica que pareça aos nossos olhos. É preciso pensar que julgamos as famílias a partir do nosso olhar, das nossas crenças e com isso, muitas vezes, ficamos impedidos de ver as reais condições de grupos sociais que vivem realidades diferentes das nossas. Por isso, não acho que as famílias se desestruturam. As famílias contemporâneas são dinâmicas em todas as classes sociais e se movimentam, mudam de “cara” com muita velocidade (como todas as instituições sociais deste nosso tempo histórico). Portanto, as famílias se reestruturam e se reconstituem e não se desestruturam.

IHU On-Line - O filme Tropa de elite apresenta jovens ligados ao tráfico de drogas, sem esperança e com o objetivo de viver intensamente. Como a senhora percebe o sentimento dessas crianças e jovens, em relação ao futuro? Eles estão, em boa medida, desiludidos?
Maria Angela Mattar Yunes -
Não assisti o filme Tropa de elite , mas  é fato que convivemos com diferentes situações  de ameaças sociais, independente de lugar e classe social. Penso que nossos governantes ainda têm muito trabalho a fazer para buscar soluções para a questão da segurança pública, do tráfico de drogas e do desmonte destes grandes esquemas que imperam nas “favelas de ouro” e nas favelas e vilas de verdade das grandes e pequenas cidades do Brasil. Sem dúvida nenhuma, todos estes aspectos corroboram para compor ambientes socialmente poluídos ou socialmente tóxicos ao desenvolvimento de crianças, adolescentes e famílias. Para “estimular” processos de resiliência, temos que pensar em políticas públicas mais humanas e que minimizem as situações de risco  da comunidade. Sabe-se que a maioria da população brasileira está exposta a uma gama de condições de muita adversidade, violência urbana, desemprego, ausência de recursos materiais, de informações, mau funcionamento de serviços públicos de saúde e de educação etc.Tais condições de vida são ainda piores quando se trata de populações de baixa renda. É preciso maximizar formas de proteção, ou seja, oportunizar vivências em ambientes socialmente saudáveis e protetores. Ambientes socialmente saudáveis são, por exemplo, as boas escolas, lideradas por bons diretores, professores, cuidadores. Estas escolas se fazem não pela beleza do prédio, pelo número de salas e de computadores, mas pela qualidade das relações entre as pessoas, pelo preparo humano e profissional dos trabalhadores sociais, enfim pela atmosfera de mutualidade de pré–ocupação com a felicidade das pessoas.

IHU On-Line - Crianças de rua se tornam adultos resilientes?
Maria Angela Mattar Yunes -
Não é possível responder esta tua questão linearmente com um SIM ou NÃO. Eu diria que depende da pessoa, do contexto social, histórico, cultural, dos sistemas de influência no desenvolvimento da criança, dos adultos significativos com os quais ela conviveu, da eficiência da rede de apoio social, enfim, são muitas variáveis. Deve-se partir do princípio que resiliência não é apenas uma habilidade inata para superar adversidades, mas refere-se aos processos que resultam da dinâmica interação entre a pessoa e os seus ambientes. O que vai explicar por que as pessoas enfrentam as mesmas situações de dificuldade através de diferentes maneiras é a interação entre as suas características pessoais e os sentidos que cada uma atribui às suas oportunidades e às experiências vividas nos seus ambientes de influência. Não se trata apenas de aspectos individuais, compreende? Muitas vezes as pessoas são fortes, perseverantes, esperançosas, mas se defrontam com situações de obstáculos “quase” intransponíveis. Basta pensar nas famílias que perderam seus entes queridos no último acidente aéreo em 17 de julho. Qual é o grau de apoio social, governamental, que elas estão recebendo? Como podemos nos preparar ou “estar treinados”  para enfrentar tamanha tragédia. Ainda temos muito que estudar sobre resiliência e aprendemos muito com as pessoas que passam por tais sofrimentos.

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