Edição 238 | 01 Outubro 2007

Uma cristologia gaúcha?

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IHU Online

Antonio Reges Brasil é professor na Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Licenciado em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduado em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, cursou mestrado na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Itália, em Cristologia com a dissertação Significado da morte de cruz de Jesus na Cristologia de Jon Sobrino. Nessa mesma instituição, doutorou-se em Teologia Sistemática, com a tese O presbítero na igreja e a crise da dimensão sacerdotal do ministério segundo ‘Théologie du Sacerdoce’ de Gustave Martelet, SJ. Brasil é, também, diretor do Instituto de Teologia Paulo VI, ligado à UCPEL.

IHU On-Line – Qual a importância de uma abordagem sobre a Cristologia na Igreja do Rio Grande do Sul?
Antonio Reges Brasil –
A importância vem do próprio fato de que a Igreja existe, porque ela é convocada, reunida no Espírito Santo para dar testemunho de Cristo. Sem esta fundamentação cristológica, não existe Igreja, ou talvez existiria uma associação até com fins filantrópicos, mas não exatamente Igreja. Igreja é a comunidade dos que crêem em Cristo, dos que foram incorporados em Cristo. Então, pensar esta realidade na história do Rio Grande do Sul, pensar também desde o presente da vida da Igreja gaúcha para o futuro, é algo realmente importante e decisivo.

IHU On-Line – Falando em Cristologia na Igreja do Rio Grande do Sul, quais são os desafios e as possibilidades de uma Cristologia Gaúcha?
Antonio Reges Brasil –
Em primeiro lugar, eu penso que o primeiro desafio é, exatamente, nós reencontrarmos a alegria de Cristo, reencontrarmos o Evangelho como uma proposta de vida. O Lema do Fórum diz isso: “A Vida se manifestou, nós a vimos e a testemunhamos”, nós somos testemunhas dessa vida, nós vivemos essa vida e nós queremos comunicar esta vida. Parece-me que aqui há um desafio enorme, pois nós vivemos numa realidade na qual, evidentemente, existem muitas ameaças à vida e também muitas formas de fazer com que essa vida não seja feliz. No Rio Grande do Sul, hoje, há a realidade do desemprego e da violência urbana, o estado de abandono em que vivem as populações das grandes cidades, a falta de perspectiva. O horizonte do povo que vive no interior é o desnorteio dos jovens que não têm para onde olhar e são assediados por propostas que são vazias de sentido. São tantas as realidades que negam a vida e fazem a vida menos bela e menos feliz elas realmente e que são desafio enorme para quem tem alegria de Cristo no coração e quer comunicá-la não como um verniz, nem como uma cruz para pendurar no peito, nem como uma superficial religiosidade, mas exatamente como o eixo da próprio vida, o centro da própria vida, a razão de ser. É uma questão que me parece, de saída, muito desafiadora.

O segundo desafio é que nós carregamos uma história de 250 anos. Não é pouca coisa. Embora sejamos uma Igreja jovem, essa Igreja tem uma história e esta história vem também com suas marcas. A Igreja do Rio Grande do Sul certamente nunca causou nenhum escândalo maior para quem não crê. No entanto, todos sabem que somos filhos, continuadores de uma Igreja que tem seus pecados históricos, os quais, muitas vezes, pesam como um entrave para a evangelização. Muitas pessoas se fecham e não tomam em consideração a seriedade da proposta do evangelho pelos contra-testemunhos da história e do passado. É preciso saber ajudar as pessoas a superar isso, não a negar, porque negando nós só agravamos o problema. É importante reconhecer o que aconteceu e sem inocentar-nos de culpas, de erros, de desvios. Acho que é uma tarefa muito importante, e a Cristologia certamente ajuda a fazer esta releitura a partir dos dados históricos.

Então, falar em uma Cristologia na Igreja do Rio Grande do Sul é pensar Jesus Cristo na realidade sociocultural gaúcha. É pensar Jesus na realidade do passado e do presente.

IHU On-Line – E relendo a história, olhando o passado e o presente, podemos reconhecer diferentes cristologias?
Antonio Reges Brasil –
 Eu acredito que o Fórum da Igreja do Rio Grande do Sul nos ajuda ao nos faz pensar várias coisas. Podemos pensar, por exemplo, nos Sete Povos das Missões  . Nós nos perguntamos qual Cristo foi vivido lá, qual Cristo foi testemunhado lá, que Cristo é anunciado desde a realidade dos povos indígenas hoje presentes no Rio Grande do Sul. Existe uma Cristologia Indígena no Rio Grande do Sul ou não tem?  É possível elaborar uma Cristologia a partir da experiência dos nossos herdeiros dos povos indígenas? Que elementos ela deve pesquisar e reforçar, e o que se diz dos povos indígenas? O que se deve dizer dos negros, dos descendentes dos africanos? Talvez não haja grandes culpas do nosso passado como na Europa, mas nós não podemos esquecer a escravidão africana do Rio Grande do Sul. Nós não podemos esquecer que em algumas regiões do Estado as comunidades indígenas simplesmente desapareceram, foram varridas. Não há mais nenhum vestígio, a não ser no mapa genético das pessoas.

Além disso, existem outras situações a serem consideradas e questões que precisamos nos colocar. Há a situação da mulher gaúcha, toda a realidade da história carregada de machismo de nossa cultura: será que ela foi superada? Há uma Cristologia que interessa à mulher gaúcha? Como é que a cristologia pode ser pronunciada, afirmada nos novos movimentos populares, nas lutas dos sem terra, das organizações populares, nas cidades, nas esperanças que os jovens carregam no coração? Tudo isto aí tem a ver com Cristo.

Talvez tenhamos que abrir todo um capítulo novo nos nossos Institutos de Teologia e também nas Universidades Católicas para estudar estas questões, porque nós nos contentamos muito em assimilar aquela cristologia que é pensada na Europa e publicada lá. Ansiamos pela tradução dos grandes textos dos Teólogos europeus e não investimos e nos animamos a fazer uma pesquisa aqui e a refletir desde aqui. Penso que o Fórum na Igreja no Rio Grande do Sul vai marcar época no sentido de nos estimular a um novo processo metodológico.

IHU On-Line – E o surgimento e crescimento novos movimentos religiosos na realidade gaúcha também implica algo novo para a Cristologia?
Antonio Reges Brasil –
Em geral, estes movimentos têm uma tendência neo-conservadora e, como tais, eles repetem tranqüilamente a Cristologia do Concílio de Calcedônia , por exemplo, a cristologia do catecismo da Igreja Católica.  Não admitem nenhuma reflexão a partir dali e são bastante fechados do ponto de vista teológico, portanto, da Cristologia. Eu não sei se eles vão trazer alguma contribuição nova. Eu temo que eles tragam, simplesmente, uma mentalidade de restauração de um catolicismo que não tem mais lugar na sociedade como ela é hoje.

Então, nós teremos umas tentativas canhestras de restauração de um velho catolicismo que existe talvez na mentalidade e na ideologia que eles propagam. De um conservadorismo que ao, meu ver, é bastante docetista , próprio de um passado mais antigo do que eles. Voltando ao passado, nós vamos encontrar muitas tendências docetistas já no início da reflexão cristã, que, me parece, que são retomadas por alguns movimentos hoje. Elas apresentam um Cristo sem história, um Cristo sem o Reino e a causa do Reino. Tudo é pensado numa forma espiritualizada e dentro da perspectiva de um certo escatologismo. Neste sentido, eu acredito que os movimentos deveriam, honestamente, olhar os apelos que vem das realidades onde estão se inserido, toda prática cristã vivida no passado e no presente, num esforço de sintonia com o Jesus histórico e com os desafios que a realidade apresenta, com os sinais dos tempos. E isto eu não vejo muito, infelizmente.

IHU On-Line – Existem diversas questões postas em torno à problemática ambiental, no âmbito da ecologia. Isso teria alguma implicação para nossa Cristologia?
Antonio Reges Brasil –
Sem dúvida, porque o Concílio Vaticano II coloca Cristo como o sentido mais profundo não só do ser humano, mas da própria criação. Esta visão, que estava na Gaudium et Spes, não só nos abre para uma antropologia mas também para uma teologia da criação e para a ecologia, que vai nos ajudar a relacionar em Cristo todas as coisas. Houve um período no Rio Grande do Sul que Teilhard de Chardin , por exemplo, era muito lido e estudado. Eu vejo que ali há uma contribuição enorme para as questões que hoje são levantadas na ecologia. Há até a expressão do “Cristo cósmico”, que é paulina, mas ela que foi muito recuperada e retomada a partir dos estudos de Teilhard de Chardin. Eu acredito que aqui há todo um terreno a ser aprofundado, que é muito fecundo. Nós estamos enfrentando o desafio nos graves problemas que ameaçam o planeta. Certamente, podemos encontrar no mistério de Cristo profundas intuições que nos ajudarão a tomar decisões existenciais e, quem sabe, decisões políticas de grande alcance para vivermos em comunhão com o criado, como guardiãs da criação e não como dominadores, predadores e gente inconsciente, que vive como se fosse a última cadeia das gerações.

IHU On-Line – E para finalizar: olhando as múltiplas transformações que observamos no mundo de hoje, o que você sinalizaria como as questões mais desafiadoras e como as principais esperanças no que se refere à Cristologia?
Antonio Reges Brasil –
 Eu colocaria em primeiro lugar a questão do mundo dos pobres. Eu vejo que este continua sendo o grande desafio da Igreja no Rio Grande do Sul, no Brasil, na América Latina, no Mundo. Porque, realmente, se nós queremos ser discípulos e discípulas de Cristo Jesus nós precisamos nos converter para os pobres no sentido de que Ele é um pobre, Ele é O pobre. E O pobre só pode ser solidário com os pobres. Ora, como se entenderia um discípulo que toma o caminho alheio ao que o mestre tomou? Eu creio que, neste sentido, esta percepção de Cristo, do Verbo divino que se encarnou e que se fez homem pobre e se encarnou no meio dos pobres, é um grande desafio para a Igreja do Rio Grande do Sul e do mundo todo. Quando o Papa João XXIII, logo depois de ter convocado o Concílio retomou o tema da Igreja dos pobres num programa radiofônico em Roma, ele abriu, certamente, um horizonte que nós palmilhamos minimamente até agora, em que, talvez, apenas tenhamos engatinhado. Mas mesmo apenas tendo engatinhado neste caminho novo, que é o velho caminho da revelação de Deus, que está na Bíblia, nós já tivemos muitas conseqüências muito lindas para a vida da Igreja e do mundo. Há tanta força de testemunho, que vai até o derramamento do sangue. Podemos constar isto, por exemplo, no episódio recente do assassinato de Ir. Dorothy , que une cristologia, ecologia, vida religiosa, comunidade de base, movimentos populares, defesa da Amazônia, une tudo isto naquele corpo frágil de uma mulher estrangeira, que se fez coração brasileiro, que foi capaz de dar a sua vida, derramar o seu sangue. É evidente que o fato, em si é muito triste, mas paradoxalmente, por ser um fato pascal, ele não nos entristece, mas nos enche de alegria e esperança, porque é assim que Jesus é testemunhado hoje, é assim que a vida de manifesta hoje: quando nós não fugimos dos problemas e dos desafios, mas nós encontramos alegria, entusiasmo e força evangélica enfrentando os problemas e desafios. Este é o caminho retomado pela Igreja, que não quer mais ser a Igreja do Poder do Império, a Igreja das concordatas, dos acordos diplomáticos, mas que quer ser uma Igreja Livre, Discípula, testemunha fiel. Este testemunho que entre nós tem sido tão abençoado por realmente dar de novo ao mundo dos pobres a companhia de Jesus, a parceria de Jesus, a presença de Jesus, é algo que tem um valor infinito, um valor de eternidade e tem valor fecundo para o futuro, porque é esta alegria do evangelho reencontrado e abraçado com autenticidade, com coragem, que vai dar ao mundo esperança e um futuro realmente.

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