Edição 235 | 10 Setembro 2007

Ética teleológica: solução para o desacordo moral contemporâneo?

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“Precisamos conciliar os antigos com os iluministas, a fim de darmos conta, a uma só vez, das noções de telos e de pluralismo, tarefa que considero assaz difícil, mas nem por isso inoportuna ou improfícua, ainda mais quando leio as obras de John Rawls”, afirma o filósofo Fernando Rodrigues Montes D’Oca, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. D’Oca foi um dos participantes do IV Colóquio Nacional de Filosofia da História e do X Colóquio de Filosofia Unisinos, que ocorreram nos dias 27, 28 e 29 de agosto. Apresentou a comunicação Ética teleológica: solução para o desacordo moral contemporâneo? Considerações acerca de After Virtue, que inspirou a IHU On-Line a realizar a entrevista a seguir.

D’Oca é graduado em Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e em Letras-Português/Espanhol, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). É especialista em Filosofia Moral e Política, pela UFPEL, com a monografia A phronesis na Ethica Nicomachea: as formulações da bouleusis-proairesis e do silogismo prático.

IHU On-Line - A ética teleológica  é a solução para o desacordo moral contemporâneo?
Fernando Montes D’Oca -
Não, a ética teleológica não pode stricto sensu ser entendida como solução para o desacordo moral contemporâneo. Quando falo stricto sensu me refiro ao que os gregos entendiam por telos. Esta noção, que significa fim (finalidade), e que, por sua vez, remete à idéia de felicidade, à busca da vida boa, era entendida na polis como uma noção de bem a ser partilhada por todos os seus membros. Havia, de certa forma, um consenso acerca da idéia de bem (do que seria a felicidade), e, logo, o partilhamento comum dessa idéia por todos. Grosso modo, este é o esboço da ética dos antigos e medievais, ou seja, de uma ética fundada na felicidade e no bem, num telos, num telos único, por assim dizer. Com a Reforma Protestante, no entanto, a noção de telos único, ou ainda, de felicidade igual para todos, cai por terra. Tem-se com a Reforma, o que se pode chamar de advento do pluralismo. Ao invés de uma única concepção acerca do bem, há o emergir de outras concepções. A noção de telos, então, se enfraquece e o modo como os filósofos iluministas dão conta da ética é prescindindo de uma teleologia, pois não mais é possível encontrar uma única concepção de bem, se é que um dia isso foi possível, a ser partilhada por todos consensualmente. A ética que era regulada pela idéia de felicidade passa a se regular pela idéia de dever. Segundo os iluministas, o homem não podia agir consoante a normas para ser feliz, pois isso não o fazia autônomo, mas, sim, agir consoante a normas independente do desejo de ser feliz, porque agindo desta forma estaria então agindo moralmente. A ética, assim, torna-se um catálogo de preceitos morais e a noção de felicidade fica obnubilada, para não dizer inexistente.

O problema dessa ética do Iluminismo é que ela inevitavelmente incorre em aporias, como diria Paul Ricoeur . A busca obstinada pela maior racionalidade possível faz com que a ética se desordene, se irracionalize, e mesmo se relativize. E é tendo presente o caótico quadro da moral contemporânea, que nada mais é do que efeito de uma ética que riscou a noção de felicidade e fez uma aposta alta demais em normas e preceitos, ou seja, um efeito da ética iluminista, que MacIntyre , em After virtue (1981), propõe o retorno à ética dos antigos e medievais, à ética teleológica. Dito tudo isso, parece-me que reeditar a ética dos antigos não é o caso. Reeditar uma teleologia stricto sensu é pouco razoável em nossa contemporaneidade tão plural, pluralidade que nem sempre é nefasta, ao contrário: muitas vezes é riquíssima. Nesse sentido, a ética teleológica não é solução às discordâncias da moralidade. Todavia, estou bastante convencido de que os filósofos iluministas cometeram excessos ao riscar por completo a noção de felicidade, de telos, da ética (afinal caímos em um preocupante relativismo), e creio que essa noção deve ser, sim, reedita contemporaneamente, porém não como MacIntyre propõe, uma vez que a reedição de uma teleologia à moda antiga pode nos levar a banir todo e qualquer pluralismo (o que seria muito controvertido). Destarte, a ética teleológica, por um lado, não é solução para o desacordo, mas, por outro, o é. Estou convencido de que precisamos conciliar os antigos com os iluministas, a fim de darmos conta, a uma só vez, das noções de telos e de pluralismo, tarefa que considero assaz difícil, mas nem por isso inoportuna ou improfícua, ainda mais quando leio as obras de John Rawls .

IHU On-Line - Que possibilidades e limitações essa ética teleológica oferece para a realidade contemporânea?
Fernando Montes D’Oca -
Eu costumo brincar dizendo que a ética teleológica é bastante empática, enquanto a deontológica (dos iluministas), fundada na idéia de dever, é pouco empática. Essa última se preocupa com a forma e com o maior grau de racionalidade, busca se afastar das afecções. Já aquela, a teleológica, eu acredito que leva mais em conta o homem real, suas motivações, seus desejos, a busca da felicidade… Isso eu considero interessante na ética teleológica. Ela apresenta uma idéia de unidade e de substancialidade, não é desencarnada. A limitação, contudo, dessa ética, reside justamente no fato de ela, stricto sensu, não salvaguardar o pluralismo. Parece ser uma questão de tudo ou nada, isto é, ou todos os membros de uma comunidade (instituição) partilham de uma mesma idéia acerca do bem (telos, felicidade), ou não temos uma ética teleológica, ou ainda, na pior das hipóteses, “os incomodados que se retirem”, ou seja, “quem não partilha de determinada concepção de bem que vá procurar outra turma”. Isso, a mim, soa muito problemático. O bônus de termos uma ética bastante empática, fundada na idéia de telos, de termos uma ética à antiga, que soluciona o desacordo moral da contemporaneidade, parece ser menor do que o ônus que teremos de pagar ao banirmos o pluralismo.

IHU On-Line - Como essas idéias são desenvolvidas por MacIntyre em After virtue?
Fernando Montes D’Oca -
MacIntyre, em After virtue, engendra um complicado raciocínio para chegar ao que para ele seria a solução para o desacordo moral contemporâneo, a saber, uma disjunção entre Aristóteles  e Nietzsche . O futuro da ética hodierna estaria ou no projeto aristotélico ou no nietzschiano. Eu discordo de MacIntyre, mas acho interessante seu raciocínio. MacIntyre levanta duas hipóteses: uma de que Aristóteles estaria equivocado em sua ética (a teleologia não seria tão boa, por assim dizer), de que os iluministas estariam certos em rechaçar Aristóteles, e de que mesmo certos em tal rechaço fracassaram como propositores de algo. Diante disso, Nietzsche apareceria, mais tarde, com um projeto alternativo ao aristotélico e melhor elaborado que o dos iluministas. Logo, Nietzsche seria a solução para o desacordo moral. A outra hipótese é de que Aristóteles estaria correto em sua ética teleológica, de que os filósofos ilustrados estariam não só errados em rejeitar Aristóteles como inevitavelmente fadados ao fracasso, e de que Nietzsche, embora crítico implacável dos iluministas estaria na mesma esteira deles, pois o Übermensch, que nada mais seria do que a radicalização do individualismo liberal, não encontraria, como todos os reles homens, uma noção de bem dentro de uma comunidade (instituição). Destarte, reeditar Aristóteles seria a solução para o descordo da moral contemporânea. Embora controvertido em alguns pontos, eu considero muito perspicaz o raciocínio macintyreano. A escolha pela hipótese que cogita Aristóteles como estando certo em sua ética parece ser legítima. Eu me questiono, no entanto, acerca do preço que teríamos de pagar por reeditar Aristóteles.

IHU On-Line - Em tempos de niilismo ético e político, em que medida uma ética teleológica pode contribuir para diminuir esse relativismo que dissolve tudo? Como ficaria a questão da tolerância e pluralidade de credos?
Fernando Montes D’Oca -
Creio que uma ética teleológica pode, sim, ser solução para o desordenado relativismo que vemos hoje, aliás, creio que tal ética baniria por completo o relativismo, mas não creio que a “ditadura do bem”, e, para mim, a ética teleológica não expressaria outra idéia senão essa, seja plenamente viável. E uso o termo “ditadura” justamente em sentido provocativo para contrastar com as idéias de tolerância e de pluralismo. Quando defendo pluralismo, não penso em relativismo, de forma alguma. Um pluralismo pode cair em relativismo, isto é, pode se desordenar e se transformar em um vale-tudo ético. Pensar pluralismo como um vale-tudo é problemático. É preciso que haja um consenso mínimo, em sociedade, acerca do que seja o bem, e nesse sentido eu dou o braço a torcer a uma teleologia e aplaudo MacIntyre, mas não um bem em sentido privado ou moral, segundo o que “eu creio como certo e bom para minha vida”, mas um bem em sentido público, ou político, conforme o que todos os cidadãos consensualmente podem minimamente conceber como sendo bom. Estas idéias, que aqui apresentei grosso modo, encontram-se na obra de Rawls, autor que, para mim, dá conta muito bem do desacordo moral contemporâneo mediante a perspicaz distinção entre público e privado, ou político e moral. Estou bastante convencido de que a idéia de bem que precisamos conceber para por fim às discordâncias morais não está no campo da moral, mas, sim, da política. Pensar determinada concepção moral como certa, inevitavelmente, condena as outras a estarem erradas, e isso é controvertido, pois para pôr fim ao relativismo ter-se-ia que banir o pluralismo, e esta seria uma atitude intolerante. Conceber que cada indivíduo em sua vida privada, moral, faça o que bem entender, contanto que respeite a uma idéia de bem em sentido público (político) na sociedade, não é relativismo, mas pluralismo, e um pluralismo do gênero não só é salutar como deve ser fomentado. A ética teleológica (stricto sensu), ou “ditadura do bem”, só é viável contemporaneamente ou mediante a força ou mediante a concepção de que a idéia de bem tem de ser política, e não moral. Eu acredito na segunda opção.

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